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Navio Negreiro por Rugendas |
(Dionigi Carli, frade capuchinho italiano, sobre os navios do tráfico de escravos)
O navio negreiro era “uma estranha combinação de máquina de guerra, prisão móvel e fábrica”, na definição do historiador Marcus Rediker.[1] Armado de canhões, tinha um grande poder de destruição, usado tanto para se defender de piratas, atacar fortificações e navios de adversários europeus quanto para ameaçar negociantes de escravos mais relutantes em fechar negócios na costa da África. Havia, ao mesmo tempo, um permanente estado de guerra dentro da própria embarcação, onde tripulantes armavam barricadas para se precaver contra eventuais insurreições dos cativos. O navio era, por fim, também “uma fábrica de mão de obra”, cujo valor ia aumentando de acordo com a quantidade de escravos estocados e a maior proximidade do continente americano, onde seriam vendidos. Havia uma rigorosa organização do trabalho a bordo, com hierarquias, papéis, turnos e tarefas cronometradas, de modo a tornar o mais eficiente possível a produção desse misto flutuante de fábrica, máquina de guerra e presídio.
No topo da hierarquia da peculiar organização do trabalho no navio negreiro, estava o capitão, o primeiro a ser contratado pelo dono da embarcação ou pelo organizador da viagem. Era também o último a ser dispensado, depois de completadas todas as etapas da jornada. Cabia a ele recrutar o restante da tripulação, providenciar todos os recursos necessários à viagem, organizar a compra dos escravos na costa da África e, muitas vezes, também os leilões de venda na chegada ao Brasil. Era a autoridade máxima a bordo, com poder de vida e morte sobre todos os demais tripulantes e os cativos. A remuneração de um capitão negreiro, incluindo salário fixo, comissões e participações no negócio, podia ser alta. No final do século XVIII, variava de 750 a mil libras esterlinas por viagem, algo entre 500 mil e 750 mil reais, em valores de hoje.
Em seguida, vinham, pela ordem de importância, o primeiro e o segundo imediatos (às vezes também um terceiro e um quarto, dependendo do tamanho do navio), o médico-cirurgião, o carpinteiro, o contramestre (responsável por todos os equipamentos), o artilheiro (ou armeiro, que cuidava das armas e munições), o tanoeiro (que fabricava e reparava pipas e barris), o cozinheiro e, por fim, uma ou duas dúzias de marinheiros comuns. Em alguns navios, havia ainda um padre, responsável pela “assistência espiritual” dos cativos e marinheiros, além de dois ou três jovens aprendizes. A remuneração de um marinheiro comum nessa mesma época seria de 24 libras esterlinas por viagem, ou cerca de 4,3 mil reais atualmente.
Uma característica peculiar do tráfico brasileiro era a presença de um grande número de escravos entre os tripulantes dos navios. Alguns eram alugados para servir durante uma determinada viagem apenas. Outros faziam parte do plantel permanente de cativos do traficante. Havia casos extremos, como o do navio Desengano, citado pelo historiador Roquinaldo Ferreira num estudo sobre o tráfico em Angola. De propriedade do brasileiro Francisco Ferreira Gomes, tinha quinze escravos africanos marinheiros contra apenas nove brancos.[2] Segundo os registros da alfândega do Rio de Janeiro, 42% de todos os 350 navios negreiros chegados da África entre 1795 e 1811 tinham escravos entre os tripulantes. Esses cativos executavam diversas tarefas a bordo. Muitos eram tradutores durante as negociações de compra de escravos na costa africana, outros eram pilotos, canoeiros, médicos e cozinheiros. Raramente, porém, delegava-se a eles vigiar os demais escravos que viajavam dentro dos porões. Essa tarefa, de acordo com o historiador Herbert Klein, era reservada aos marinheiros brancos.[3]
A linha de produção da fábrica flutuante de mão de obra cativa começava no interior do continente africano, de onde milhões de escravos eram extraídos nas intermináveis guerras entre etnias, linhagens, Estados e nações envolvidos no tráfico negreiro. Da captura, na África, à chegada ao local de trabalho, no Brasil, um africano estaria sujeito a até cinco transações, nas quais ia sendo sucessivamente comprado e vendido por diferentes donos. Até o final do século XVII, a maioria dos angolanos vinha de regiões situadas a dois meses de caminhada até o litoral. No século seguinte, as áreas de captura já se situavam bem mais para o interior, o que exigia seis meses de caminhada até os portos. Nessas longas jornadas, os cativos eram acorrentados uns aos outros, em fileiras chamadas de libambos. No porto, esperavam às vezes até cinco meses pelo embarque. A travessia do Atlântico levava mais um mês e meio. Tudo isso somado significa que, ao chegar ao Brasil, o escravo teria já quase um ano de cativeiro.[4]
Em Angola, os escravos esperavam pelo embarque estocados em barracões imundos, escuros e sem ventilação, com janelas situadas a três metros do solo de terra batida, por onde entrava apenas uma nesga de luz do sol. Geralmente, chegavam ali em péssimas condições. Vindos do interior, às vezes tinham marchado centenas de quilômetros com pouca comida. Os que estivessem muito doentes eram separados dos demais e colocados em quarentena. Se não houvesse navios prontos para o embarque, esses homens eram usados durante o dia em trabalhos agrícolas nas vizinhanças, especialmente no plantio e no corte da mandioca.[5]
Em média, entre 150 e 200 cativos ficavam acorrentados nesses ambientes, às vezes misturados com porcos, cabritos e outros animais domésticos. O espaço era de dois metros quadrados por pessoa, apenas o suficiente para esticar as pernas à noite. Comiam feijão e farinha de mandioca com um pouco de charque ou peixe seco.[6] Na falta de sanitários, as necessidades fisiológicas eram feitas dentro do próprio barracão, que, segundo a descrição do médico português Francisco Damião Cosme, fedia a fezes e urina a tal ponto que uma pessoa que ali entrasse sentiria logo ânsias de vômito ou poderia até desmaiar. Segundo outro médico português, os escravos seminus dormiam no chão e eram “tratados como gado”. Diariamente, por volta das dez horas da manhã, eram conduzidos até o mar para banhos forçados na água salgada.[7]
No dia do embarque, entravam nos navios usando tangas ou camisolas de tecidos crus. Antes, eram batizados coletivamente por um padre, também conhecido como “catequizador dos negros” ou “catequizador dos escravos”. Segundo o historiador inglês Charles Boxer, essas cerimônias eram muito rápidas:
"O padre dizia em voz alta a cada escravo o seu novo nome [cristão]: 'Seu nome é Pedro, o seu é João, o seu é Francisco” e assim por diante, entregando também a cada um deles um pedaço de papel com esse nome escrito. Em seguida, colocava uma pequena quantidade de sal nas suas línguas e os aspergia coletivamente com água benta. Então, um negro intérprete [uma vez que nem todos entendiam ainda o português] lhes dizia o seguinte: “Vejam, a partir de agora vocês já são filhos de Deus'.[8]"
O mesmo padre se encarregava de, em seguida, fornecer ao capitão do navio um “bilhete” ou certificado de batismo para cada escravo. O salário de um “catequizador de negros” era de 60 mil réis por ano em 1748, aproximadamente o preço de um escravo considerado de primeira qualidade. A Igreja coletava também uma série de taxas que contribuíam para a manutenção de sua estrutura em Angola. Esse dinheiro era tão significativo que, segundo Joseph Miller, o fim do tráfico negreiro, em meados do século XIX, mergulhou a diocese de Luanda em uma crise financeira sem precedentes.[9]
Antes de partir, os africanos eram marcados com ferro em brasa. Em geral, recebiam sobre a pele quatro diferentes sinais. Os que vinham do interior, já chegavam com a identificação do comerciante responsável pelo seu envio ao litoral. Em seguida, o selo da Coroa portuguesa era gravado sobre o peito direito, indicação de que todos os impostos e taxas haviam sido devidamente recolhidos. Uma terceira marca, em forma de cruz, indicava que o cativo já estava batizado. A quarta e última, que poderia ser feita sobre o peito ou nos braços, identificava o nome do traficante que estava despachando a carga. Ao chegar ao Brasil, poderia ainda receber uma quinta marca, do seu novo dono — o fazendeiro, minerador ou senhor de engenho para o qual trabalharia até o fim da vida. Os fugitivos contumazes teriam, ainda, um “F” maiúsculo (de “fuga” ou “fujão”) gravado a ferro quente no rosto. Em Angola, o trabalho de marcação dos escravos chamava-se carimbar (de carimbo, palavra que, em idioma quimbundo, significa marca).[10] Era executado por um funcionário do governo conhecido como “marcador de negros” e supervisionado por outro chamado de “capitão das marcas”.[11]
O ritual de marcação era assustador. Primeiramente, o “marcador de negros” colocava o carimbo de metal, com uma longa haste de madeira, sobre carvão em brasas até que ficasse incandescente. Em seguida, com a ajuda de vários assistentes, imobilizava o escravo. O local a ser marcado era então coberto com cera e um pedaço de papel lubrificado com óleo. Desse modo, evitava-se que a pele grudasse ao ferro quente e fosse arrancada durante a operação. A dor da queimadura era excruciante. Os cativos urravam e se debatiam ao sentir a aproximação do metal em brasas e precisavam ser fortemente contidos pelos assistentes do “marcador”, que lhes seguravam as pernas e os braços. Nos dias seguintes, enquanto as feridas cicatrizavam, as marcas de sua nova identidade iam ficando cada vez mais visíveis.[12]
Curiosamente, não só os escravos eram marcados a ferro incandescente. Os sobas, chefes africanos aliados dos portugueses em Angola, também. Segundo a historiadora Mariana Candido, no século XVIII, durante as chamadas cerimônias de vassalagem, depois de jurar fidelidade à Coroa portuguesa, os sobas da região de Benguela recebiam a marca do selo real do lado esquerdo do peito, o que significava que, a partir daquele momento, deveriam ser respeitados e reconhecidos como súditos do rei de Portugal. Assim, marcados a ferro, ficavam também sob a proteção da Coroa portuguesa. Em troca, tinham a obrigação de pagar tributos, geralmente em forma de cativos, e de autorizar a incursão de traficantes de escravos e forças militares em seus territórios sempre que necessário. Também eram obrigados a hospedar autoridades coloniais e fornecer carregadores e soldados para auxiliá-las.[13]
Transportar os cativos dos barracões para os navios era uma operação complexa, que envolvia centenas de pessoas, incluindo escravos locais alugados pelos chefes africanos aos europeus. No porto de Jakin, no Benim, os traficantes franceses pagavam capatazes em conhaque: uma garrafa para cada grupo de dez cativos embarcado no navio. Os guardas armados que ficavam na praia, por sua vez, recebiam o salário em conchas marinhas (as cauris, citadas no capítulo quinze): 160 búzios por escravo, e o pagamento era executado de forma diária.[14] A segurança era sempre reforçada. O embarque era considerado o momento mais tenso e perigoso de toda a jornada dos negreiros, especialmente nos locais mais remotos do litoral africano, onde os traficantes não contavam com fortificações ou força militar para protegê-los de eventuais represálias dos cativos e de suas famílias.
Em dezembro de 1798, João Lucas Cordeiro, comerciante português morador de Bissau, pouco antes do embarque, decidiu inspecionar o barracão de escravos de propriedade de seu sócio, Joaquim Pedro Giniour. Ao entrar no pátio em que os escravos estavam socando arroz, foi atacado com golpes de mãos-de-pilão — pesadas peças de madeira com o formato de um taco de beisebol usadas para descascar arroz e triturar milho e outros cereais. Os cativos quebraram-lhe a cabeça e cortaram sua garganta. Cordeiro, entretanto, não morreu de imediato. Ficou agonizando enquanto o sangue encharcava o chão de terra batida. Alguns dos rebelados fugiram enquanto outros ateavam fogo no depósito de pólvora para facilitar a escapada. Capturados mais tarde, foram todos castrados e decapitados.[15]
Para se precaver de situações como essa, um navio negreiro exigia uma tripulação duas vezes mais numerosa do que a de uma embarcação mercante comum — 35 marinheiros contra 16, a média da época. Fortemente armados, os marinheiros vigiavam cada movimento dos cativos. Muitas vezes protegiam-se atrás de trincheiras até que todos estivessem acorrentados a bordo. A lista de armas e munições do navio Diligent, que fez diversas viagens à costa da África e foi estudado pelo historiador Robert Harms, incluía cinquenta e cinco mosquetes, dezoito pistolas, vinte espadas e dois pequenos canhões com sessenta balas no total, além de uma grande quantidade de pólvora e espoletas.[16]
Para os africanos, embarcar no navio era uma experiência aterradora. Vindos de regiões distantes do interior, muitos nunca tinham visto o mar. Um medo comum entre eles decorria da crença, generalizada em algumas regiões de África, de que, ao chegar ao destino, seriam devorados pelos europeus, que julgavam serem canibais. Existem inúmeros relatos a esse respeito. Um dos mais antigos é o do veneziano Alvise Cadamosto, atacado com seus companheiros na foz do rio Gâmbia, em 1456, quando, em nome do rei de Portugal, tentava estabelecer um contato amigável com a população nativa. Depois de muito esforço, conseguiu entender, com a ajuda de intérpretes, a razão da fúria dos moradores: “Eles tinham por certo que nós, cristãos, comíamos carne humana, e que só comprávamos negros com esse fim; e que, por isso, não queriam a nossa amizade de forma nenhuma”. Só então, após explicar que os portugueses não eram canibais, foi possível estabelecer uma trégua entre as duas partes.[17] História semelhante ouviria no século seguinte o frade italiano Giovanni Antonio Cavazzi de Montecúccolo ao visitar o Reino do Congo. Segundo ele, os escravos ficavam apavorados diante da perspectiva de serem levados para o Brasil, onde, acreditavam, “seriam mortos pelos compradores, os quais, conforme pensam, tirariam dos seus ossos a pólvora, e dos miolos e das carnes, o azeite”.[18]
Depois do embarque, era também considerada perigosa a fase inicial da viagem. Com sua terra ainda à vista, havia o risco de os escravos se rebelarem e tomarem conta do navio. O número de suicídios nessa fase era proporcionalmente mais alto. Por essa razão, os cativos eram trancafiados e acorrentados nos porões enquanto o navio não atingisse o alto-mar, o que poderia demorar vários dias. Os equipamentos de bordo incluíam um inventário sinistro de instrumentos para imobilizar e punir os escravos, como correntes com cadeados, tornozeleiras e colares de ferro. De uso mais frequente era o “bacalhau”, pequeno chicote de tiras de couro com pequenos nós ou lâminas de metal nas pontas, cujo golpe poderia lacerar a pele dos escravos.[19] Nos navios ingleses, esse instrumento era chamado de cat-o’-nine-tails (gato de nove rabos), devido ao número de tiras.
Uma vez embarcados, os homens eram trancafiados no porão situado na parte traseira da embarcação. As mulheres seguiam para outro compartimento, na dianteira, mais próximo dos alojamentos da tripulação. Entre esses dois setores, bem no meio do navio, erguia-se uma barricada, que serviria de trincheira aos tripulantes em caso de rebelião. Constituídas por tábuas pregadas na transversal, tinham buracos por onde as armas seriam disparadas sobre os cativos, impedindo assim que chegassem à ponte de comando e assumissem o controle do navio.
Em toda a história do tráfico foram documentadas cerca de seiscentas revoltas de escravos em alto-mar. Dessas, apenas em 26 casos os cativos conseguiram controlar o navio e retornar à costa da África.[20] Rebeliões antes da chegada à costa da América eram mais incomuns. A mais famosa, tema de um filme dirigido por Steven Spielberg, é a do navio Amistad, capturado em 1839 por um grupo de escravos africanos nas vizinhanças de Cuba e levado para Nova York, onde os rebeldes foram todos libertados após um julgamento que mobilizou a opinião pública norte-americana. Desfechos felizes assim, no entanto, eram uma raridade. Na imensa maioria das vezes, essas rebeliões terminaram de forma trágica.
Insurreições de escravos eram tão temidas que os capitães dos navios recebiam instruções drásticas a respeito de como preveni-las ou controlá-las. Jean Barbot, francês que trabalhou para o tráfico negreiro britânico no começo do século XVII, recomendava:
"Não se deve medir esforços ao reprimir a insolência [dos negros]. Para isso, é preciso sacrificar a vida de todos os amotinados, de modo que sirvam de exemplo, mantendo os demais obedientes. A forma de punição que mais aterroriza os africanos é cortar um homem vivo ao meio com um machado e distribuir as partes do corpo aos outros.[21]"
Foi exatamente essa a providência tomada pelo capitão britânico William Snelgrave, em 1721, depois de controlar uma revolta de cativos nas proximidades do porto africano de Anomabu (atual Gana), na qual um marinheiro branco havia sido morto. Snelgrave informou outros oito capitães negreiros que operavam nas imediações sobre o que tinha acontecido e sugeriu que todos trouxessem suas embarcações para perto do seu navio e fizessem os escravos subir dos porões para os deques superiores, de modo que pudessem assistir as punições que seriam infligidas aos rebeldes. E assim, à vista de centenas de outros cativos, Snelgrave ordenou que o líder da frustrada revolta fosse pendurado à meia altura do mastro principal com uma corda amarrada em volta do peito. Depois, ordenou que um pelotão de fuzilamento disparasse sobre o homem suspenso no ar, matando-o instantaneamente. Na parte final da execução, os marinheiros baixaram o cadáver, cortaram-lhe a cabeça e a atiraram-na aos tubarões. Isso foi feito porque, segundo explicou Snelgrave, os africanos acreditavam que o desmembramento do corpo impedia o espírito do morto de retornar à terra de seus ancestrais na África. Cortar a cabeça ou os membros de alguém, antes de jogar o cadáver ao mar, era, portanto, a pior punição possível. E a mais eficaz no esforço de prevenir futuras rebeliões, como recomendava Jean Barbot.
Dentro dos navios, os compartimentos destinados aos cativos eram minúsculos, insalubres, sem ventilação e iluminação adequada. Os porões, adaptados para o transporte de cativos, eram subdivididos em camadas construídas com pranchas de madeira, tão próximas umas das outras que era impossível caminhar de pé entre elas. Por isso, os escravos passavam a maior parte da viagem deitados, muitas vezes de lado por não haver espaço suficiente para que todos ficassem de costas. “Acorrentados aos pares, perna direita com perna esquerda e mão direita com mão esquerda, cada escravo tinha menos espaço do que um homem dentro de um caixão”, escreveu o historiador Eric Williams, reproduzindo as observações feitas dentro de um navio negreiro pelo abolicionista britânico Thomas Clarkson.[22]
A quase imobilidade num ambiente tão exíguo criava situações desesperadoras. Presos por correntes em duplas, os cativos tinham dificuldade para chegar até os tonéis que lhe serviam de latrinas nas laterais dos porões. Subir até o deque superior, onde ficavam as cloacas (buracos na amurada do navio, de onde os dejetos caíam no mar), seria impossível porque à noite os porões geralmente eram fechados com cadeados pela tripulação. Muitos preferiam urinar e defecar no próprio espaço em que dormiam, o que gerava tensões e brigas entre eles. Disenterias eram frequentes devido ao consumo de alimentos estragados e água contaminada. Outros tantos sofriam de enjoo porque não estavam habituados a viajar em alto-mar e tinham crises prolongadas de vômito. Depois de alguns dias, os fluídos humanos iam se acumulando nos porões, criando um ambiente fétido, irrespirável, nauseante. “Aquele barco [...], pelo intolerável fedor, pela escassez de espaço, pelos gritos contínuos e pelas infinitas misérias de tantos infelizes, parecia um inferno”, relatou frei Sorrento, capuchinho italiano e testemunha do embarque de novecentos escravos de Luanda para a Bahia, em 1649. “Esta é a navegação mais dolorosa que existe em todo o mundo”, confirmou um de seus colegas, Dionigi Carli, também conhecido como frei Piacenza, que em 1669 viajou a bordo de um navio negreiro carregado com 690 escravos entre Angola e Salvador, na Bahia.[23]
O tormento era particularmente grande para as mulheres escravas, que ficavam separadas dos homens em porões mais próximos dos alojamentos da tripulação. Ali, elas estavam vulneráveis ao assédio e ao estupro por parte dos oficiais e marinheiros, sem ninguém que pudesse defendê-las. O assalto sexual começava ainda antes da partida do navio. Um traficante francês escreveu em suas memórias que, ainda no porto africano, cada oficial tinha a prerrogativa de escolher à vontade uma escrava que, durante toda a viagem, lhe serviria “na mesa e na cama”. Outra testemunha, o capitão negreiro John Newton (já citado, que depois se tornaria abolicionista e autor do hino “Maravilhosa Graça”), escreveu que os oficiais tinham o hábito de dividir as mulheres entre si de acordo com a beleza delas e a preferência de cada um, ainda no início da viagem. “Recusa ou resistência seriam totalmente em vão”, ele afirmou. O médico Alexander Falconbridge relatou que, em alguns navios britânicos, qualquer marinheiro poderia ter relações sexuais com as escravas, “desde que elas consentissem” — como se essa opção de fato existisse entre pessoas cativas. Os oficiais, ao contrário, tinham total liberdade para “exercer suas paixões entre elas, sem qualquer restrição”, e, às vezes, “cometiam excessos brutais”.[24]
Os navios negreiros eram famosos pelo mau cheiro. Tanto que muitos marinheiros diziam ser possível detectar a sua presença em alto-mar antes que aparecessem na linha do horizonte. Sua aproximação era percebida contra o vento, que antecipava o odor de seus porões quando ainda estavam a muitos quilômetros de distância. “A pestilência, que não se pode suportar em todo o navio, é capaz de fazer desmaiar ou cair os passageiros”, afirmou o padre italiano Antonio Zucchelli da Gradisca, a propósito de uma viagem que fez em 1702 de Luanda para o Brasil.[25] “O ar é tão rarefeito e abafado, a ventilação é tão precária que, às vezes, é impossível manter uma vela acesa”, relatou o francês Jean Barbot, referindo-se à falta de oxigênio nesses porões.[26] Outro capuchinho italiano, Giuseppe Monari, que partiu de Luanda rumo à Bahia em maio de 1720 num navio com 789 cativos, dos quais 80 morreram durante os 36 dias de travessia, deixou o seguinte relato:
"É impossível descrever os choros, a confusão, o fedor, a quantidade de piolhos que devoravam aqueles pobres negros. Naquele barco havia um pedaço de inferno. Mas, como os que estão no inferno não têm esperanças de saída, eu me contentaria dizendo que era a nau do purgatório.[27]"
Em condições de higiene tão precárias, inúmeras doenças produziam grandes estragos entre os cativos e os tripulantes. Uma das maiores ameaças era o escorbuto, moléstia provocada pela deficiência de vitamina C e a escassez de alimentos frescos, tão comum nos navios negreiros que no século XVII era conhecida como “mal de Luanda”. Enfraquecida, a vítima queimava de febre e sofria dores insuportáveis. A gengiva necrosava. Os dentes caíam ao simples toque. Na prática, era como se o corpo fosse se decompondo antes ainda que chegasse o fatal desfecho. Mortandade maior era provocada pela disenteria, chamada de “fluxo” nas embarcações portuguesas e brasileiras. A lista de enfermidades incluía ainda febres — amarela, malária e tifoide, principalmente —, varíola, sarampo e gripe. A falta de um suprimento adequado de água causava desidratação sob o sol dos trópicos.
Se chovesse ou se o mar estivesse muito revolto, os escravos podiam permanecer nesses locais por semanas a fio, sem ver a luz do dia, o que aumentava o risco de contaminação por essas doenças. A limpeza só era feita com tempo bom e ensolarado. Os cativos eram, então, obrigados a subir para o deque superior e se exercitar ou dançar. Os que se recusassem eram ameaçados com chicote. Enquanto isso, os tripulantes desciam aos porões para esfregá-los com uma mistura de areia e outros materiais abrasivos. Depois, fumigavam o ambiente, inserindo uma barra de ferro incandescente em um balde de vinagre misturado com tabaco. Em alguns navios, queimava-se também pólvora e alcatrão, o que fazia levantar uma espessa nuvem de fumaça tóxica que tornava o ar irrespirável por muitas horas. Por fim, tinham de recolher e despejar no oceano os barris repletos de urina e excrementos. Como se pode imaginar, era um trabalho que os marinheiros detestavam fazer.[28] Uma das tarefas mais árduas a bordo era a do cozinheiro, que tinha a obrigação de preparar duas refeições ao dia para centenas de pessoas, incluindo os cativos e os tripulantes. Por isso, optavam por alimentos que exigiam preparos muito simples, como sopas, mingaus, pratos cozidos e angus. No século XVI, cada escravo embarcado em Angola recebia diariamente uma ração composta por 1,8 litro de farinha de mandioca, um quinto de litro de feijão ou milho, farinha feita de emba (o coquinho da palmeira de dendê), peixe seco e salgado, carne de boi, baleia, hipopótamo ou elefante. A partir do século XVIII, adicionava-se também carne de charque — salgada e seca ao sol nas charqueadas do Rio Grande do Sul.[29] Cativos vindos das regiões do Golfo do Benim consumiam inhame, item importante na dieta básica dessa região da África.
Uma lei portuguesa de 1684 determinava que os africanos recebessem três refeições diárias, acompanhadas de uma “canada” de água (medida equivalente a 1,375 litro). O primeiro rancho era servido geralmente por volta das dez horas da manhã. O último, antes do pôr do sol. Escravos que, em meio a surtos de depressão (o então famoso banzo), tentassem fazer greve de fome eram punidos com chicotadas e forçados a comer mediante o uso de um aparelho chamado speculum oris — um longo tubo flexível de metal que os marinheiros lhes enfiavam na garganta para que a comida descesse esôfago abaixo. Para defender os interesses dos traficantes, que sofreriam prejuízos com a morte de escravos embarcados, o governo nomeava um oficial para inspecionar a qualidade dos suprimentos de água antes que os navios partissem. Esses fiscais eram chamados de “cheiradores das pipas” ou “cheiradores das aguadas”, uma vez que seu principal instrumento de trabalho consistia no olfato, o que não impedia que os capitães dos navios subornassem esses funcionários com frequência, quando as condições sanitárias a bordo eram inadequadas.[30]
Testemunhos da época, hoje alvo de controvérsia, sustentavam que os portugueses eram mais eficientes no trato dos escravos do que os concorrentes. Não porque fossem particularmente mais caridosos e humanitários, mas porque tinham desenvolvido técnicas e cuidados para reduzir a mortalidade nos navios e manter o aspecto saudável dos cativos, de modo a obter melhor preço por eles na chegada à América. Um desses relatos é o de Peter Mortamer, primeiro diretor da Companhia das Índias Ocidentais depois da ocupação de Luanda pelos holandeses, em 1641:
"Os portugueses são mais bem-sucedidos ao transportar mais de quinhentos escravos numa caravela do que nós com trezentos em um navio maior. Isso porque também os cuidam e alimentam melhor, o que lhes permite obter lucro duas vezes maior na hora da venda dos cativos. Eles lavam o deque do navio todos os dias com vinagre ruim. Preparam alimentos quentes para os cativos duas vezes ao dia, a primeira com feijões africanos, a segunda com milho bem cozido com uma grande concha de óleo de palma [dendê], tudo misturado com um pouco de sal e, às vezes, um bom pedaço de peixe salgado em cada prato. Durante o dia, sempre há um pouco de farinha com água, [...] além de oferecer duas ou três peças de tecido velho para que se protejam [do frio noturno].[31]"
Alguns estudos têm colocado em dúvida a eficiência e a generosidade dos portugueses descritas no relato de Mortamer. Seria uma mera tentativa de um alto funcionário para justificar aos seus diretores na Holanda as dificuldades que seus compatriotas enfrentavam em substituir, com igual eficácia, a bem azeitada operação de tráfico negreiro mantida pelos portugueses até a invasão de Luanda. Prova disso seriam os inúmeros alvarás, leis e intervenções da Coroa portuguesa, que tentavam padronizar e melhorar o tratamento dos escravos nos navios negreiros, mas que nunca foram respeitados. Um exemplo é o alvará de 18 de março de 1684, assinado pelo rei dom Pedro II, de Portugal, no qual se tentava limitar a lotação dos navios negreiros de acordo com a arqueação, ou seja, o espaço e a capacidade de carga de cada um deles. Dizia o preâmbulo do regulamento que, depois de ser informado de que muitos cativos morriam nas embarcações portuguesas, e que os vivos “chegavam infinitamente lastimosos” ao Brasil, o rei determinava que, dali em diante, os escravos fossem “tratados com caridade”. As penas para os transgressores incluíam multa pesada, perda dos cargos e condenação a dez anos de degredo na Índia.
De nada adiantou. Os navios continuaram tão superlotados quanto antes e a nova lei serviu apenas para encorpar a propina que os fiscais recebiam nos portos de embarque e desembarque. Ainda assim, passados sessenta anos, em 1744, a Coroa portuguesa cobrou ao conde da Galveas (vice-rei do Brasil) um balanço da aplicação da lei. A resposta transbordava ironia. Galveas informou ao rei que, naquelas seis décadas, um capitão chamado João Luiz Porto e seu ajudante tinham sido presos por transgredir a lei e enviados a Lisboa, onde o processo contra eles correu tão rápido “que na mesma frota em que foram tornaram a voltar” — ambos inocentados, obviamente. A exigência de capelães a bordo dos navios também nunca prosperou. Os traficantes alegavam que a despesa com o salário do padre encarecia demais o negócio. Em 1799, cada representante da Igreja ganhava 450 réis por viagem.[32]
Notas
1 Marcus Rediker, The Slave Ship, e-book Kindle, posições 223-228 e 3288.
2 Roquinaldo Ferreira, Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World…, pp. 135-136.
3 Herbet Klein, The Atlantic Slave Trade, pp. 86-87.
4 Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes, pp. 146-147.
5 Charles Boxer, Salvador de Sá, p. 230.
6 Joseph Miller, Way of Death, pp. 390-391.
7 Roquinaldo Ferreira, Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil During the Era of the Slave Trade, p. 121.
8 Charles Boxer, Salvador de Sá, p. 230.
9 Joseph Miller, Way of Death, pp. 403-404.
10 João Pedro Marques, Escravatura, perguntas e respostas, p. 64.
11 Roquinaldo Ferreira, Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World…, p. 122.
12 Robert Harms, The Diligent, pp. 249-250.
13 Mariana Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World: Benguela and its Hinterland, e-book Kindle, posições 1186-1191.
14 Robert Harms, The Diligent, p. 352.
15 Walter Hawthorne, From Africa to Brazil, p. 109.
16 Robert Harms, The Diligent, p. 83.
17 John Thornton, Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, p. 38.
18 Clóvis Moura, Dicionário da escravidão negra no Brasil, p. 44 e 59.
19 Marcus Rediker, The Slave Ship, e-book Kindle, posições 1271-1274.
20 David Eltis; David Richardson, Atlas of the Transatlantic Slave Trade, p. 161.
21 Robert Harms, The Diligent, p. 272.
22 Eric Williams, Capitalism and Slavery, e-book Kindle, posição 875.
23 Arlindo Caldeira, Escravos e traficantes no Império Português, pp. 139-140.
24 Robert Harms, The Diligent, p. 312.
25 Arlindo Caldeira, Escravos e traficantes no Império Português, p. 144.
26 John Thornton, Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, pp. 154-155.
27 Arlindo Caldeira, Escravos e traficantes no Império Português, p. 145.
28 Joseph Miller, Way of Death, pp. 411-412.
29 Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes, p. 252.
30 Joseph Miller, Way of Death, p. 421.
31 Charles Boxer, Salvador de Sá, p. 252.
32 Luiz Vianna Filho, O negro na Bahia, pp. 48-50.
Texto de Laurentino Gomes em "Escravidão Volume I - Do Primeiro Leilão em Portugal até a Morte de Zumbi dos Palmares", Globo Livros, Rio de Janeiro, 2019, capitulo 18. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.