O que hoje conhecemos como"vampiro"é um arquétipo presente em quase todas as culturas do mundo. Da Rússia à África, da Inglaterra à Malásia, as mais diversas mitologias criaram figuras de mortos que acordam para se alimentar dos vivos. Além dos seres sobrenaturais que atacam os humanos, as religiões antigas falam de divindades que se nutrem do sangue a elas oferecido em ritual, como é o caso da egípcia Sekhmet.
Podemos encontrar referências a entidades "vampirescas" desde o período dos impérios mesopopotamios falavam de um espírito sugador de sangue, o Akhkharu. Os babilônicos acreditavam no Ekkimu, que saía da tumba para se alimentar de sangue humano fresco, e em demônios femininos chamados lilu, que atacavam durante a noite, matando mulheres grávidas e bebês. Há quem veja em tais demônios parte das características mesopotâmicos, há mais de 3.500 anos.
Os sumérios falavam de um espírito sugador de sangue, o Akhkharu. Os babilônicos acreditavam no Ekkimu, que saía da tumba para se alimentar de sangue humano fresco, e em demônios femininos chamados lilu, que atacavam durante a noite, matando mulheres grávidas e bebês. Há quem veja em tais demônios parte das características da hebraica Lilith, primeira mulher de Adão, que se vinga da humanidade, criada pelo primeiro homem com sua segunda esposa, Eva.
Textos em sânscrito antigo, língua ritual do hinduísmo, apresentam os vetalas, criaturas demoníacas, mas também com capacidade protetora, que habitavam cemitérios e se apoderavam dos corpos dos mortos, usando-os para matar crianças, provocar abortos e enlouquecer os vivos. Entre outras obras, os vetalas são citados no Baitalpachisi, livro do século VIII que narra as tentativas do rei Vikramaditya de capturar um desses seres, que repousava pendurado de cabeça para baixo na árvore de um cemitério. Segundo a tradição, os vetalas podem ser afastados por meio da entoaçáo de mantras. Ainda na índia, temos o Brahmarãkhasa, criatura que, representada com a cabeça coroada por intestinos humanos, carregava um crânio como copo para beber sangue.
A palavra 'vampiro'é a última das denominações para os seres sugadores de sangue, e os primeiros registros da expressão datam do século XVIII. Não há certeza sobre a origem do termo. Sabe-se, apenas, que deriva de línguas eslavas, em que existe como vampir ou uípir. é provável que essas palavras tenham derivado de wempti (beber) ou do turco Uber (bruxa), dando origem a expressões como upior, upir, uípir, vampir. Nessas tradições linguísticas, os filhos de vampiros são chamados de dhampir, lampirovic ou vampirovic.
AVE NOTURNA
Antes da aparição do nome 'vampiro", o termo que designava as criaturas bebedoras de sangue no Leste Europeu era o romeno strigoi ou strigo. A expressão tem raízes latinas e vem de strix, uma ave noturna que segundo os romanos se alimentava de sangue e carne humana. A palavra sobrevive em italiano como strega: bruxa.
O strigoi é um morto-vivo que, na mitologia romena, tem cabelos vermelhos, olhos azuis e dois corações. Podia tornar-se invisível, rondando seus locais familiares, em busca de alimento, que tendia a ser o sangue de seres vivos.
Além disso, o strigoi podia transformar-se em animais, como corujas, cães, ratos, lagartos, lobos e, claro, morcegos. Também na Rússia havia cultos a seres bebedores de sangue. Em pleno século XI, o papa São Gregório VII ainda combatia as cerimônias pagãs nas quais a população local oferecia sacrifícios a essas criaturas.
Foi das lendas do leste europeu que se moldou a figura do vampiro moderno, mas ele não aparece apenas em textos eslavos. No século XII, dois cultos clérigos ingleses, Walter Map e William de Newburgh, registraram a crença local em mortos que saíam de suas tumbas em busca de alimento. Por causa disso, os dois são vistos como cronistas do vampirismo, embora seus escritos não sejam tào claros quanto ao modo de agir dessas criaturas.
Nas Crônicas, como é chamada sua obra Historia Rerum Anglicarum, Newburgh menciona casos de mortos que voltam à vida (livros 22, 23 e 24) em narrativas muito mais ligadas às crenças religiosas de bondade e obediência à Igreja que propriamente a casos de "vampiros*: "É verdade - e sei bem - que, se não fosse por muitos casos ocorridos em nossos dias e pelo confiável testemunho de pessoas responsáveis, nào seria possível acreditar em tais fatos, isto é, que os corpos dos mortos pudessem levantar de seus túmulos, revividos por alguma força sobrenatural, andando pelos locais e causando pânico e até mesmo matando os vivos, e que. retornando às suas covas, estas estariam abertas para recebé-los' (Crônicas, livro 24).
O mito moderno do vampiro acabou surgindo de um amálgama de várias crenças, dando origem à figura que conhecemos hoje: o vivo malvado que, inconformado por estar morto, volta à vida. Torna-se imortal, movido pela necessidade de sangue humano para manter-se vivo, e contamina os vivos que suga, transformando-os em vampiros. Tem horror à luz e a crucifixos e morre apenas com uma estaca cravada no coração.
O mito ganhou força no fim do século XIX, quando os vampiros chegaram ã maior das cidades de então: Londres. Em 1885, Emily Laszowska Gerard publicou Superstições da Transitvânia, obra na qual chamava o vampiro de 'nosferatu', uma variante do latim nesuferit, que significa "sem sofrimento". A versão definitiva do bebedor de sangue moderno, porém, surgiu em 1897, quando o escritor irlandês Abraham Bram Stoker publicou o romance Oráculo, que apresenta o conde Drácuia, maléfico e violento vampiro que mora em um castelo da Transilvânia.
O fato de ter realmente existido um nobre, Vlad Tepes, governador da Transilvânia entre 1431 e 1433, que foi apelidado de Drácula (filho do dragão ou filho do demônio) e empalou centenas de inimigos, sugeria que a novela havia se inspirado no conde Vlad. Na realidade, como explica e documenta a estudiosa Elisa beth Miller, em seu livro Dracula: Sense & Nonsense (Drácula: sentido e falta de sentido, inédito no Brasil), Bram Stoker pretendia chamar seu personagem de Count Wampyr (Conde Vampiro, em inglês), mas afinal batizou o com o apelido do sanguinário conde Vlad Tepes, ou Drácula, o Empalador. Por mais sanguinário que tenha sido o Drácula real, nada indica que ele bebesse o sangue de quem assassinava.
Foi também no século XIX que os vampiros passaram a ser associados a morcegos. Até então essa conexão não existia. Ela só surgiu com à descoberta de três espécies hematófagas (que se alimentam de sangue) do animal nas Américas do Sul e Central. Ao identificarem o Desmodus rotundos, o Diaemus youngi e o Diphyllo ecaudota, natu- ra'istas europeus os apelidaram de morcegos-vampiros.
No início do século XX, portanto, o vampiro já havia adquirido a forma atual: imortal alimentado por sangue humano, com força sobre-humana, capaz de transformar em vampiro aqueles de quem se alimenta; voa como um morcego; tem perfeita visão noturna; teme o crucifixo e a luz do dia; dorme em um caixão funerário; e só pode ser morto com uma estaca cravada no coração.
Nessa época, também, o personagem adquiriu glamour hollywoodiano, adotando a capa preta e certo charme, que muitas vezes o torna irresistível, sobretudo para as mulheres. Ao mesmo tempo, surgiu a figura da insinuame"devoradora de homens", que passou a ser chamada de..."vamp". Essa imagem do vampiro sedutor começou a ganhar força a partir da década de 1930, quando foi filmada a primeira versão de Drácula em Hollywood, com Béla Lugosi no papel principal.
A RODA DA VIDA
Apesar de terem assumido diversas formas ao longo da história, as lendas de vampiros têm um significado que atravessa os séculos. Essas narrativas não retratam apenas o medo da morte e a proteção da vida, representada pelo sangue. Elas evoluíram da certeza de que, para manter a vida na Terra, é necessário morrer, na eterna roda de nascimentos que substituem as mortes. Na tentativa de impedir tal ciclo e conquistar a vida eterna, ou de obter graças dos deuses, as diferentes culturas ofereceram primeiro o próprio sangue, depois o de animais e, por fim. passaram a ofertar simbolicamente o vinho. A tran- substanciação do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo, que se deve comer e beber para garantir a vida eterna no corpo da Igreja, é a perfeita alegoria da relação entre morte, vida e renascimento.
Do ponto de vista psicológico, é possível relacionar a mitologia dos vampiros às questões de vida e morte. Dependendo da abordagem, porém, a lenda pode adquirir significados diferentes. Freudianos tendem a relacioná-la ao temor e ao fascínio do sexo. Junguianos. por sua vez, o associam assombra*, espécie de lado obscuro que todos nós temos, difícil de enfrentar, que pode fazer de nós seres predadores, parasitas e antissociais. De certa maneira, essa conotação foi incorporada à linguagem cotidiana, pois é corrente falar-se em vampirismo econômico, vampiris mo moral, vampirismo sexual, e assim por diante.
Hoje, o que preocupa é a difusão da crença entre indivíduos que não distinguem lendas, e seus significados, da realidade. Atualmente existem diversos grupos e associações de "vampiros”, inclusive com crimes a eles atribuídos. Alguns, fascinados pela questão, chegam a ligar o vampirismo a Caim. baseados na leitura do Livro de Nod, obra lendária que supostamente contém ensinamentos sobre o vampirismo acumulados desde a Antiguidade. Filmes recentes conferem ainda mais encanto ao mito. Tudo isso nos faz ver que a elucidação do significado de nossas mitologias deveria ser levada bem mais a sério.
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UMA LENDA UNIVERSAL
A figura do vampiro surgiu no Leste europeu, mas o mito do morto-vivo que se alimenta de sangue humano está presente em mitologias de povos do mundo inteiro. A seguir, uma lista dessas criaturas por região:
No Leste europeu
Upiercza - Figura do folclore polonês, é um fantasma que devora vítimas perto da própria sepultura. Ustrel - Na tradição búlgara, é uma criança que, nascida no sábado e morta sem batismo, sai da sepultura para atacar o gado e assume a forma de um carneiro com chifres de touro e tetas de vaca. Os filhos do Ustrel têm poderes sobrenaturais. Vorkolaka - Outro vampiro da Bulgária.Trata-se de criminoso que suga o sangue dos que passam perto de sua tumba. É destruído com uma cruz ou por meio de cerimônias religiosas.
Nelapsi - Com dois corações e duas almas, esse vampiro da Eslováquia alimenta-se tanto de seres humanos como de animais.
Kukudhi ou Lugat - Vampiro da Albânia, pode ser destruído pelos lobos ou pelo fogo. Se não for descoberto e morto em 30 anos, volta à forma humana normal.
Mahr - Figura da mitologia sérvia, é tanto a alma do morto quanto alguém vivo que se alimenta de sangue. Na Polônia, é chamado de Mora e, na Bulgária, de Morava. Morre se atingido pela luz do sol ou se ferido com uma estaca no coração.
Na Grécia
Vrykolakas - Também conhecido por Vurvukalas ou Kathakanas. Associado ao lobo, ataca como ele, dilacerando as vítimas para beber seu sangue e transformando-as em um deles. Podem assumir forma de animais e 'assombram" como fantasmas.
Callicantzaros - Segundo uma lenda grega, são crianças que, nascidas na noite de Natal, podem tornar-se vampiros.
Lâmia - Figura da mitologia grega, representa a mulher que, após a perda dos filhos, passa a devorar jovens para se alimentar.
Na Africa
Adze - Ser mitológico do povo eswe, natural da atual República Democrática do Congo. Em forma de vaga-lume, ele bebe sangue, persegue crianças e, quando capturado, retorna à forma humana. Asasabonsam - Vampiro do povo ashanti, originário da atual Gana. Com dentes de ferro e forma humana, ele ataca principalmente os caçadores, puxando-os para o alto das árvores.
Obayifo - Outro personagem do folclore ashanti, é um feiticeiro que deixa o próprio corpo, em forma de esfera luminosa, para sugar o sangue de crianças.
Nas Américas Cihuatetico - Ser da mitologia asteca, representa a mulher que morre no parto e se transforma em um misto de vampira e bruxa, alimentando-se principalmente de crianças.
El Cuero - Vampiro típico do Chile que vive nas águas, para onde atrai suas vítimas e suga todo o seu sangue.
Encourado - É o vampiro do Nordeste brasileiro.
Todo vestido de couro preto, entra nas casas apenas se convidado, e suas vítimas são os que não creem em Deus. Sabe-se de sua aproximação porque os animais passam a agir de maneira estranha.
Tiahuelpuchi - Na tradição mexicana, refere-se à menina que tem sua primeira menstruação (menarca) e desenvolve um desejo profundo por sangue, transformando-se durante a noite em animal para atacar outros seres.
Nos países árabes
Algul - Vampira da mitologia árabe, bebe o sangue de bebês mortos, embora o nome signifique "sanguessuga de cavalo".
Ghouls - Seres femininos da mitologia muçulmana que devoram humanos vivos e cadáveres nos cemitérios.
Na India
Baital - Ser da mitologia hindu que se apodera do corpo do morto para caçar suas vítimas e beber o sangue. Bhutas - Segundo o hinduísmo, pessoas que morrem de causas não naturais se tornam em Butha, criatura que se alimenta de fezes e intestinos dos mortos e assume a forma de morcego ou coruja. Se atacar um vivo, a vítima se transforma em Butha.
Bramahparush - Ser da mitologia hindu que suga o sangue de suas vítimas pela cabeça e depois as devora por dentro, começando pelo cérebro.
Churel - Mulher que, de acordo com uma lenda hindu, morreu durante o ciclo menstruai ou no parto e virou vampira.
Rakshasas - Criaturas que vivem em crematórios. Lideradas por Ravana, guardam palácios e templos e, durante a noite, banqueteiam-se com sangue de crianças ou de gestantes.
No Oriente Asiático
Mauri - Feiticeiro da mitologia malaia que bebe o sangue de quem ataca e continua a fazê-lo mesmo depois de morto.
Penanggalan - Vampira da mitolo gia malaia cuja cabeça e cujos intestinos voam em busca de sangue.
Pontianak - Vampiro da mitologia malaia, é um natimorto que aparece na forma de coruja, acompanhando sua mãe, Langsuir.
Aswang - Vampiro das Filipinas. Bela mulher durante o dia, ataca suas vítimas durante a noite.
Chiang-shih - Vampiro chinês, tem os cabelos brancos ou verdes e olhos vermelhos. Teme a água, pode se transformar em animais, volta à sua sepultura depois de alimentar-se com o sangue das vítimas e só pode ser destruído pelo fogo.
A MILENAR TRADIÇÃO DO SACRIFÍCIO
O sangue sempre foi conhecido como o alimento interior do ser humano, e sua perda aterrorizava as pessoas. Reconhecido como o bem mais precioso da vida, foi presença constante nos cultos das religiões pré-históricas e clássicas, frequentemente por meio do sacrifício de animais, cujo sangue era vertido sobre o altar das divindades. Muitas culturas, contudo, praticavam também o sacrifício de seres humanos, tanto de seus inimigos quanto dos próprios membros. Na famosa Guerra de Troia. narrada por Homero, as mil naves negras dos aqueus só partem depois dos bons ventos trazidos pela morte em sacrifício de Ifigênia, filha do rei Agamenon, comandante da esquadra.
As três maiores religiões modernas nascidas na bacia do Mediterrâneo - judaísmo, cristianismo e islamismo - mantiveram os antigos cultos ligados ao sangue. No judaísmo, a mais antiga das três, a circuncisão dos meninos está ligada, na opinião dos estudiosos, ao laço estabelecido entre Deus e os judeus por meio do sangue. No cristianismo, o sangue de Cristo está relacionado a limpeza, pureza, redenção, acesso a Deus e perdão dos pecados humanos. Com o tempo, a Igreja fez do vinho um símbolo do sangue de Cristo, por certo pela equivalência das cores. O Corão claramente associa o sangue à origem da vida.
Não é de estranhar, portanto, que o sangue humano tenha exercido tanto poder sobre a imaginação dos povos e que a figura que dele se apropria, em proveito próprio, seja um ser temido, respeitado e odiado.
Texto de Marlene Suano em "História Viva" Ano VII, n.79. p.51-57. Digitized, adapted and illustrated to be posted by Leopoldo Costa