Em 1939 o mundo mergulhou (e se afundou) na Segunda Guerra Mundial. Em decorrência, houve uma diminuição, em todos os cantos do planeta, das atividades que não estavam diretamente ligadas ao conflito. O ritmo dos investimentos na produção fonográfica e nos espetáculos caiu substancialmente, afetando a até então crescente indústria do entretenimento. Discos deixavam de ser lançados, shows eram cancelados, bailes e desfiles carnavalescos adiados.
Apesar do namoro do presidente Getúlio Vargas com os nazifascistas, o Brasil acabaria apoiando os Aliados. O samba, nesse contexto, já havia conquistado seu espaço nas rádios, tornando-se o gênero preferido do povo. Tanto que, em pelo menos uma ocasião, o samba se fez presente na guerra.
Em 1944, o Brasil enviou sua força expedicionária (FEB), um contingente de 25 mil homens, a monte Castelo, na Itália. Em uma daquelas noites tenebrosas, na volta de uma patrulha, um nervoso soldado virou para o sentinela e disse: “Esqueci a senha. Mas sou brasileiro, não está vendo?” Então o sentinela, engatilhando a arma, ordenou: “É brasileiro? Canta um samba.” E o expedicionário cantou, de pronto, um samba de Ataulfo Alves e Mário Lago: “Covarde sei que me podem chamar/ porque não guardo no peito esta dor/ atire a primeira pedra ai ai ai/ aquele que não sofreu por amor…”, livrando sua pele. Esse diálogo, relatado no livro do professor Arthur Loureiro de Oliveira sobre os 500 anos de música brasileira, dá um parâmetro da grandiosidade que o gênero atingiu na década de 1940.1
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A Segunda Guerra Mundial
Com a invasão da Polônia, em 1939, Adolf Hitler deu início à Segunda Guerra Mundial. Antidemocrático, totalitário, racista, anti-semita, nacionalista e expansionista, o nazismo foi a política de extrema direita que uniu em torno de Hitler a Itália de Benito Mussolini e o Japão do imperador Hirohito. Conhecidos como países do Eixo, lutaram contra os Aliados (países capitalistas como EUA, França e Inglaterra, além da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS) na maior guerra já registrada pela história. Com a rendição do Eixo, em 1945, após as trágicas bombas atômicas jogadas pelos Estados Unidos em Nagasaki (70 mil mortos) e Hiroshima (cem mil mortos), os ventos da democracia liberal passaram a soprar forte no Ocidente, e o mundo ficou divido entre a influência da URSS, país socialista, e dos Estados Unidos, país capitalista – os dois mais importantes vitoriosos da Segunda Guerra. Começava então a Guerra Fria.
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No Brasil, o governante do período era Getúlio Vargas, que, digamos, namorou com o Eixo, mas acabou apoiando os Aliados, inclusive mandando tropas para a Itália. A guerra acirrou os ânimos dentro do país contra os alemães, japoneses e italianos, que foram, aliás, proibidos de participar do carnaval no Rio de Janeiro.
Nesse período, num reduto da boemia carioca dos anos 1940, o antigo Bar Adolfo, fundado em 1887 e dirigido por descendentes austríacos, o clima esquentou em uma noite agitada. O bar foi invadido por jovens estudantes que garantiam ser o recinto um núcleo nazista. Antes que começassem a quebrar tudo no charmoso botequim, Ary Barroso largou seu chope e fez um inflamado discurso do alto de uma mesa, em defesa do estabelecimento. O Adolfo salvou-se da quebradeira, mas, por via das dúvidas, os donos tomaram a sábia decisão de mudar o nome para Bar Luiz.
O pós-guerra foi marcado por um clima depressivo nas artes; em todo o mundo, predominava um sentimento de melancolia e luto pela perda abrupta de milhões de vidas. Nesse contexto, o samba ganha a roupagem de samba-canção, com letras que falam de desamores e infortúnios. É bom que se diga, esse período está longe de representar um primo pobre do samba. Apesar do clima “abolerado”, ele é pontuado por excelentes compositores e intérpretes.
Já entrando no final da década de 1950, tudo muda: a nação respira novos ares, e o otimismo do período Juscelino Kubitschek – com o lema “50 anos em 5” – reflete-se no surgimento da bossa nova, movimento de jovens da Zona Sul carioca que cantam o amor, o sol, o mar, a beleza da mulher… A bossa nova abre um novo horizonte estético na música popular brasileira e muda para sempre seu cenário.
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A Segunda Guerra Mundial e a música popular
A guerra constitui-se em grande tema para os compositores da primeira metade da década de 1940. Augusto Garcez e Roberto Martins ironizavam a figura de Adolf Hitler, principal liderança do nazismo: “Quem é esse que usa cabelinho na testa/ e um bigodinho que parece mosca?/ Só cumprimenta levantando o braço/ Ê ê ê ê palhaço.” Haroldo Lobo e Milton Oliveira ridicularizaram o “passo do ganso” dos soldados alemães: “Que passo é esse, Adolfo?/ Que dói a sola do pé?/ É o passo do gato?/ Não é. É o passo do ganso/ Cuem, cuem, cuem, cuem.” O fim da guerra, em 8 de maio de 1945, inspirou compositores, como Wilson Batista, que compôs “Comício em Mangueira”, gravada por Carlos Galhardo: “Houve um comício em Mangueira/ O cabo Laurindo falou/ toda a escola de samba aplaudiu/ e toda a escola de samba chorou/ ‘Eu não sou herói’ – era comovente a sua voz – ‘Heróis são aqueles que tombaram por nós’.”
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Em 1963 é inaugurado o Zicartola, um restaurante modesto, situado em um sobrado no Centro do Rio, cujo grande trunfo era ser comandado pelo compositor Cartola e sua mulher, Zica. Local de encontro de gerações e estilos musicais e, sobretudo, de valorização do samba urbano, o Zicartola agregou nomes como Zé Kéti, Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Tom Jobim, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Nelson Sargento, Nara Leão e Paulinho da Viola. O rico convívio de linhagens tão diferentes gerou o surgimento de dois espetáculos emblemáticos na história da MPB: Opinião e Rosa de Ouro. Dito isso, o trem segue em frente parando em cada uma das estações.
O samba-canção
O samba-canção é mais antigo do que o leitor pode imaginar. Samba “de andamento lento, melodia romântica e letra sentimental”,2 apareceu no cenário musical brasileiro no fim dos anos 1920, na obra de compositores semi-eruditos. Chamado também de “samba de meio do ano” – feito fora do ciclo carnavalesco –, popularizou-se a partir da composição “Linda flor”, em 1929, cantada pela vedete Aracy Cortes e produto da parceria dos compositores Henrique Vogeler, Marques Porto e Luís Peixoto.
Quase todos os grandes compositores de samba escreveram samba-canção. Noel Rosa, com “Pra que mentir?”, Cartola, com “As rosas não falam”, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, com “A flor e o espinho”, Ataulfo Alves, com “Boêmios”… O ambiente da década de 1950 estimulou a expansão desse gênero no mercado nacional, mas o estilo também sofreu influências dos sentimentais boleros dos cabarés latinos e, no que diz respeito às letras, das propostas poéticas européias ligadas à filosofia existencialista (que traduzem um forte desencanto com o mundo). De fato, o samba-canção aspira a um certo semi-eruditismo, marcado por letras e características orquestrais mais sofisticadas.
Essa década foi marcada pela chegada da comunicação de massa. Os artistas, através de seus produtores e contando com um amplo mecanismo de divulgação (rádios, jornais, revistas e a recém-criada televisão), mobilizavam milhares de fãs.
O cenário onde circulavam os que queriam ver e ser vistos era a cintilante Copacabana. Charmosa, elegante, boêmia, a “princesinha do mar”, como João de Barro e Alberto Ribeiro vieram a chamá-la no samba-canção “Copacabana”, era o bairro dos sonhos de quase todos os brasileiros. Com seus bares, cabarés e restaurantes, ela substituiu a Lapa como centro das atividades noturnas. Em um bairro que até os anos 1930 era um longínquo paraíso natural, coabitavam agora prostitutas, damas da sociedade, políticos, intelectuais, milionários, traficantes e consumidores, todos bronzeados, livres, leves e soltos. Cenário ideal para um samba-canção, com seus rompantes de tragédia amorosa. Pode-se dizer que a geração musical que vai do samba-canção à bossa nova fez de Copacabana sua morada existencial.
Antônio Maria
“Ninguém me ama
ninguém me quer
ninguém me chama de meu amor…”
ANTÔNIO MARIA e FERNANDO LOBO, “Ninguém me ama”
O pernambucano Antônio Maria adotou a Cidade Maravilhosa como sua terra. Jornalista, radialista, cronista e compositor, construiu em suas músicas a imagem da rejeição, da solidão e do sofrimento, o samba-canção em sua expressão da dor-de-cotovelo, um esteio de sua existência.
Com crônicas publicadas nos principais jornais cariocas, Antônio Maria era um sagaz retratista do cotidiano. Tratava de tudo. Suas frases emblemáticas eram pinceladas com seu espírito de compositor: “Na vida a gente ama vinte vezes; uma por inexperiência e dezenove por castigo”; “A única vantagem de morar sozinho é poder ir ao banheiro e deixar a porta aberta”; “A noite é uma criança.”
Antônio Maria passou a ser conhecido como compositor no início da década de 1950, após o sucesso de “Ninguém me ama” na voz grave de Nora Ney. Esse verdadeiro paradigma do “samba-de-fossa” é assinado em parceria com o amigo e conterrâneo Fernando Lobo, também jornalista, compositor e boêmio.
Maria teve mais de 60 músicas gravadas, grande parte delas sambas-canções. E lá estava o amor não correspondido, a exemplo de “Suas mãos” (“Ah, suas mãos onde estão/ onde está o seu carinho”) e “O amor e a rosa” (“Guarda a rosa que eu lhe dei/ esquece os males que eu te fiz”), ambos em parceria com Pernambuco.
São obras-primas de Maria – e também da música popular brasileira – “Menino grande”, “Valsa de uma cidade”, “Se eu morresse amanhã”, “Frevo número um”, um clássico do gênero, “Canção da volta” e “Manhã de carnaval”. Feita com Luiz Bonfá, esta última foi criada para o filme Orfeu negro, de Marcel Camus. É, ao lado de “Garota de Ipanema”, uma das músicas brasileiras mais executadas no exterior: “Manhã, tão bonita manhã/ na vida uma nova canção/ cantando só teus olhos/ teus risos, tuas mãos…”
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Cartas sentimentais
Nos jornais Diário da Noite, Última Hora e O Jornal, Antônio Maria, entre outras coisas, respondia a cartas sentimentais dos leitores. É possível que muitos desses textos tenham sido forjados pelo próprio Maria, mas os leitores realmente escreviam sobre suas atribuladas vidas amorosas:
A leitora Mariza Freitas, do Rio de Janeiro, escreve, angustiada:
“Sr. Antônio Maria, meu namorado sua muito debaixo dos braços.”
“Só debaixo dos braços, Mariza? Então não há motivo para desgostos. Divirta-se na área enxuta, que é a maior parte do seu namorado”, respondeu o sábio Maria.
A leitora Luciana Ruiz quer saber sobre os bastidores da noite:
“Sr. Antônio Maria, é verdade que os casais se aproveitam da escuridão da boate?”
“Muito”, diz o notívago Maria. “E levam os cinzeiros, as xícaras, os talheres e os guardanapos.”
O leitor Reinaldo está apreensivo:
“Sr. Antônio Maria, estou noivo há dois anos e só agora descobri que Berenice, minha noiva, só tem três dedos na mão esquerda.”
“Mas se ela tiver sete na mão direita dá no mesmo, Reinaldo. O negócio é ter dez dedos na hora de mostrar. Verifique e volte a escrever-me”, finalizou Maria.3
Em muitos aspectos, a obra do briguento, mulherengo e corpulento Antônio Maria foi uma contribuição tupiniquim ao clima abolerado dos anos 1950. O brasileiro juntou-se à legião de cantores mexicanos, chilenos, cubanos e espanhóis – Agustín Lara, Pedro Vargas, Lucho Gatica, Bienvenido Granda… – levando as cores verde e amarelo em suas composições.
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Dolores Duran
“Hoje eu quero a rosa mais linda que houver
e a primeira estrela que vier
para enfeitar a noite do meu bem
hoje eu quero a paz de criança dormindo
e o abandono de flores se abrindo…”
DOLORES DURAN, “A noite do meu bem”
O samba-canção tem ainda outra característica: ele é capaz de fazer a ponte entre o “menino grande” de Copacabana, Antônio Maria, e uma jovem cantora e compositora do subúrbio carioca: Adiléia Silva Rocha, uma fonte criativa conhecida como Dolores Duran.
Talentosa, Dolores não teve vida fácil. Mesmo quando já era famosa, cantando e vagando pela boemia das boates Vogue, Beguine, Little Club, Baccarat, Casablanca, Acapulco e Montecarlo, suas composições e interpretações expressavam a intensidade do seu desencanto com os amores e, de certa forma, com a vida. Em 23 de outubro de 1959, depois de fazer um show na Boate Little Club e de participar de uma festa no Clube da Aeronáutica, Dolores chegou em casa já pela manhã e pediu à empregada: “Não me acorde. Estou muito cansada. Vou dormir até morrer.”
Aos 29 anos, era o fim da menina bochechuda que encantava as longas noites do Rio e que fez uma das letras mais bonitas da música popular brasileira: “A noite do meu bem”. Dolores convoca na canção o universo para sua noite.
Dolores começou a cantar com dez anos de idade no programa de calouros de Ary Barroso, ganhando o prêmio máximo com a música “Vereda tropical”. Com extrema facilidade para línguas, passou então a interpretar canções em inglês, francês e espanhol, apresentando-se pelas boates do Rio. Fez amizade com Sérgio Porto (o Stanislaw Ponte Preta), Antônio Maria, Nestor de Hollanda… – a nata da boemia da década de 1950.
Sua obra não é muito extensa, mas toda ela espelha um jeito melancólico, triste e angustiado de ver a vida. É um panteão de pérolas do samba-canção.
Dolores fez turnê internacional e, aqui no Brasil, foi elogiada por dois ilustres visitantes: Ella Fitzgerald, a dama do jazz, e o cantor francês de muito sucesso Charles Aznavour. Após sua morte por infarto fulminante, a cantora e amiga Marisa, apelidada por cronistas de “Gata Mansa”, entregou ao pianista Ribamar as letras de “Ternura antiga” e “Quem foi”. Dois sucessos que Dolores não testemunhou.
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Maysa
De tradicional família capixaba, a cantora e compositora Maysa garantiu seu lugar no panteão das cantoras de músicas de fossa ou de “dor-de-cotovelo” da época. A música “Ouça”, que a tornou conhecida nacionalmente, começa assim: “Ouça, vá viver a sua vida com outro bem/ Hoje eu já cansei de pra você não ser ninguém/ O passado não foi o bastante para lhe convencer/ que o futuro seria bem grande só eu e você…” Com uma beleza muito expressiva e um olhar penetrante, Maysa levou o poeta Manuel Bandeira a dizer que “seus olhos são oceanos não pacíficos”.
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Lupicínio Rodrigues
“Você sabe o que é ter um amor,
meu senhor?
Ter loucura por uma mulher
e depois encontrar este amor
meu senhor,
ao lado de um tipo qualquer…”
LUPICÍNIO RODRIGUES, “Nervos de aço”
Se Wilson Batista e Geraldo Pereira eram os maiores boêmios do samba nos anos 1930 e 1940, Antônio Maria e Lupicínio Rodrigues tomaram o título nos anos 1950. Era nos bares que Lupicínio achava a inspiração para suas músicas. Chegou até mesmo a ser dono de alguns, mas claramente seu talento era outro. Lupi fez jus ao clima da época e criou letras que tratam de abandono, sofrimento, traição, desencanto, ódio, desprezo, vingança, ciúme, saudade, ternura e esperança.
Com cerca de 600 composições – 150 gravadas –, a maioria em tom menor, Lupicínio emplacou clássicos na música brasileira. Quem não conhece “Vingança”, que na voz de Linda Batista provocou até suicídios? “Cadeira vazia”, “Maria Rosa”, “Castigo”, “Quem há de dizer”, “Um favor”, “Se acaso você chegasse”, “Felicidade”, “Esses moços” (Pobres moços), “Nunca”, “Volta” e “Nervos de aço” são apenas alguns dos sucessos do grande Lupi.
Foi o gaúcho Alcides Gonçalves quem, em 1936, gravou Lupicínio pela primeira vez. Dois anos depois, Francisco Alves cantava para todo o Brasil o sucesso “Cadeira vazia”. Ciro Monteiro fez o mesmo com “Se acaso você chegasse”. Nunca faltou um cantor ou cantora de gabarito para gravar Lupícino. Mas alguns fãs preferiam que ele mesmo interpretasse suas músicas. Com a ascensão da bossa nova, da música de protesto e do rock, as composições de um homem que tocou tão profundamente a alma do brasileiro ficaram praticamente esquecidas. Mas não por muito tempo.
“Bota o retrato do velho outra vez”
Quando, em 1945, o presidente Getúlio Vargas deixou o poder depois de 15 anos e deu fim à ditadura do Estado Novo, prometeu que voltaria nos braços do povo. Em 1951 houve eleição presidencial, e o velho gaúcho ganhou com 48% dos votos, confirmando o que dizia a marchinha de Haroldo Lobo e Marino Pinto, “Retrato do velho”, gravada por Francisco Alves: “Bota o retrato do velho outra vez/ bota no mesmo lugar/ o sorriso do velhinho/ faz a gente trabalhar.”
Mas essa nova fase não foi boa para Vargas. Acuado por sua própria política contraditória, defendia nos discursos o nacionalismo, as restrições ao capital externo e a ampliação dos direitos dos trabalhadores, mas tinha em sua base ministerial políticos que defendiam a abertura do mercado ao capital internacional, a não-intervenção do Estado na economia e a eliminação de conquistas trabalhistas. O populismo de Vargas não encontrava mais apoio nos trabalhadores, e o presidente havia perdido a confiança da burguesia. As pressões pela renúncia levaram Vargas ao suicídio, com um tiro no coração na madrugada do dia 24 de agosto de 1954 – “Saio da vida para entrar na história”, dizia em sua carta-testamento. O compositor Edgar Ferreira, na música “Ele disse”, que se tornou conhecida na voz de Jackson do Pandeiro, aproveita as palavras de Getúlio: “Ele disse com toda consciência/ com o povo eu deixo a resistência/ o meu sangue é uma remissão/ a todos que fizeram reação/ Eu desejo um futuro cheio de glória/ minha morte é bandeira da vitória/ deixo a vida pra entrar na história/ e ao ódio eu respondo com o perdão…”
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Na década de 1970, Gilberto Gil grava “Esses moços”, Gal Costa grava “Volta”, Elis Regina escolhe “Cadeira vazia”, Paulinho, “Nervos de aço”, e o gaúcho boêmio Lupi pôde presenciar, um pouco antes de sua morte, a perenidade de sua obra.
Bossa nova
A bossa nova é um movimento que surge no Rio em 1958. De certa forma, é um produto das ricas experiências musicais da década, apesar de querer guardar distância do clima “dor-de-cotovelo”, existencialista, noir, dos primeiros anos. Pela lente da Rolleyflex bossa-novista via-se o amor positivo, a beleza do mar, do céu, da montanha, da mulher amada.
Visto que a música é também um processo histórico, não é possível, ou aconselhável, descontextualizar a bronzeada e jovial poesia de Tom Jobim, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Tito Madi, Carlos Lyra, Nara Leão, João Gilberto e Vinicius de Moraes.
A batida genial de João Gilberto na música “Chega de saudade”, feita por Tom Jobim em parceria com Vinicius de Moraes e gravada no LP Canção do amor demais – marco inaugural do movimento – pela cantora Elizeth Cardoso, é uma síntese de elementos musicais que rondavam há décadas a música popular: a sofisticação harmônica de um Vadico e de um Garoto, os experimentos de Jonny Alf e João Donato, e até mesmo as melodias e letras de Antônio Maria, a exemplo de “Canção da volta” e a “Valsa de uma cidade”.
Foi na mesma Copacabana, regada a uísque, cigarro e samba-canção, que cresceu a bossa nova. Só que os jovens universitários, bonitos e inteligentes, andavam mais algumas quadras e iam curtir a praia de Ipanema. Apartamentos, como o de Nara Leão e, sobretudo, as boates, os “inferninhos”, foram espaços de “ensaio aberto” do movimento. Esses jovens estavam substituindo a dor-de-cotovelo de “Ninguém me ama” por ações afirmativas como “Eu sei que vou te amar”.
Nos anos 1940 e 1950, não havia quase shows de grandes artistas, com ingressos comprados, como os que vemos hoje. Os espetáculos eram coletivos, como os organizados por Carlos Machado, com grandes orquestras e vedetes, realizados em cassinos. Quando os cassinos fecharam, no governo do presidente Dutra, após a Segunda Guerra Mundial, as intimistas boates passaram a ocupar os espaços musicais. Ambientes de conversa, negócios ou paquera, onde a música era tocada de maneira mais adocicada por trios, quartetos ou quintetos e cantada por crooners, ali o carioca podia ouvir seus músicos prediletos. O circuito da boemia começou no Beco do Joga a Chave e continuou no Beco das Garrafas. Tudo em Copa.
Cenário e músicos prontos, a expressão bossa nova passou a consolidar-se no imaginário da sociedade após o anúncio da apresentação de “Sylvinha Telles e um grupo bossa nova” em show realizado na Zona Sul do Rio de Janeiro (o termo “bossa” era usado até então por alguns compositores, como Noel Rosa, com o significado de “ter algo a mais”). Com a gravação de “Desafinado”, de Tom Jobim e Newton Mendonça, feita por João Gilberto, o verso “isto é bossa nova, isto é muito natural” caiu definitivamente na boca do povo.
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JK, desenvolvimentismo e bossa nova
O governo de Juscelino Kubitschek foi marcado pela estabilidade e pelo lema desenvolvimentista “50 anos em 5”. Para cumpri-lo foi criado um plano de metas que priorizava investimentos em transporte, energia, indústria, educação e alimentos. A construção de Brasília, projetada pelos arquitetos Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, permanece como símbolo dessa era de crescimento. Mas o período de euforia do governo JK deixou profundas seqüelas econômicas e sociais no país, entre as quais o aumento da dívida externa e a inflação, mostrando que não basta um país ser urbano e industrializado para ser desenvolvido.
Por suas inovações e sua paixão pela música, JK ficou conhecido como “presidente bossa nova”. O menestrel baiano Juca Chaves, com veia sarcástica e crítica política aguçada, compôs a canção “Presidente bossa nova” que reflete muito bem o momento: “Bossa nova mesmo é ser presidente/ dessa terra descoberta por Cabral/ para tanto basta ser tão simplesmente/ simpático, risonho, original/ depois desfrutar da maravilha/ de ser o presidente do Brasil/ voar da velha cap pra Brasília/ ver Alvorada e voar de volta ao Rio…”
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Elizeth Cardoso
Elizeth Cardoso entrou no cenário musical por intermédio do instrumentista e compositor de choro Jacob do Bandolim. Foi ela quem lançou o LP considerado um marco da bossa nova, cantando com timbre seguro e agradável as composições de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Aliás, não havia gênero musical que intimidasse a voz da divina Elizeth: seu repertório incluía até peças de Villa-Lobos.
Com influência da música popular norte-americana, do impressionismo europeu e das tradições musicais brasileiras, a bossa nova, de acordes dissonantes, notas alteradas e interpretações intimistas no canto, abriu uma nova página estética na história da música brasileira. E é, indiscutivelmente, o estilo brasileiro mais difundido no mercado internacional até hoje.
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João Gilberto
“Se você disser que eu desafino, amor
saiba que isso em mim provoca imensa dor…”
TOM JOBIM e NEWTON MENDONÇA, “Desafinado”
Há muito nos ensinam os estudos das áreas humanas que genialidade é uma construção social. Diria o poeta que a criação artística é mais transpiração do que inspiração. Assim foi com o baiano João Gilberto. Sua batida diferente ao violão e os famosos acordes dissonantes foram resultado de anos de estudo sobre o instrumento. E a conseqüência foi o surgimento de novos rumos estéticos na música popular brasileira.
João Gilberto começou a atuar no meio musical como crooner. Fez parte do grupo Garotos da Lua em 1950 e, por incrível que pareça, imitava com perfeição a voz do mestre Orlando Silva, dono de uma interpretação forte e segura. Mas João consagrou-se justamente por sua opção de fazer a voz soar com suavidade, intimista, cool, que, poderíamos dizer, assemelhava-se às dos jazzistas. Segundo Ruy Castro, contudo, o jeito de cantar de João tinha tradição mesmo era em nossa terra. Diz ele: “Se você ouvir as gravações do Luís Barbosa do começo dos anos 30, do Ciro Monteiro e da dupla Joel e Gaúcho, já no final dos anos 30, do Jorge Veiga e do Vassourinha, no comecinho dos anos 40, do Roberto Silva… você vai ver que esse tipo de ‘bossa’ para cantar foi a fundação da bossa nova. Sem falar nos conjuntos vocais, que o João conhecia todos e até participou de alguns. A partir daí, essa propalada influência americana fica quase imperceptível quando se ouve esses discos em seqüência.”4
Para João, voz e violão são inseparáveis. Seu canto é coloquial, quase igual à fala. O ato de equilibrar-se entre a origem e o desaparecimento do próprio gesto de cantar uniu o ritmo da fala ao ritmo da música. Segundo seu parceiro Tom Jobim, responsável pelos arranjos do disco de estréia, com os clássicos “Chega de saudade” e “Bim-bom”, quando João se acompanha, o violão é ele, quando a orquestra o acompanha, a orquestra também é ele”.5
Foi acompanhando ao violão a cantora Elizeth Cardoso no LP Canção do amor demais, especificamente nas músicas “Chega de saudade” e “Outra vez”, que João lançou o estilo que viria a caracterizar o movimento bossa-novista: acentuação no tempo fraco e alteração de acordes de passagem, que no samba e no choro sempre eram característicos da harmonização.
Em 21 de novembro de 1962 houve a famosa apresentação dos meninos da bossa nova no Carnegie Hall, em Nova York, para mais de três mil pessoas. Na primeira fila, gênios como Miles Davis, Dizzy Gillespie, Gerry Mulligan, Tony Bennet, para ouvir Sérgio Ricardo, Tom Jobim, João Gilberto e tantos outros. Esse début nova-iorquino da bossa nova, apesar do inglês macarrônico de muitos músicos, consolidou mundialmente o estilo.
Com o mercado internacional aberto, João gravou com Stan Getz um LP na gravadora Verve que ficou nas prateleiras da fábrica por um ano. Depois de lançado, o disco foi um dos 25 mais vendidos do ano, recebeu seis Grammy (importante prêmio no universo musical), e João passou a ser considerado um dos violonistas mais respeitados dos Estados Unidos, país no qual fixou residência à época. A turma da bossa confirmava a qualidade da música brasileira sem recorrer ao exotismo caricatural que imperara no passado.
João Gilberto gravou Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Roberto Menescal, Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli e Newton Mendonça, mas sua discografia sempre teve espaço para os chamados sambas “tradicionais”. Para João, a bossa era uma nova maneira de encarar (incorporar) o samba. Cantou então Dorival Caymmi, Ary Barroso, Geraldo Pereira, Marino Pinto e Zé da Zilda, Bide e Marçal, Wilson Batista… Utilizou sua antena com o mundo para revolucionar o universo do samba. A “raiz” era o motor de sua bossa.
Tom Jobim
“Vai minha tristeza
e diz a ela
que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece
que ela regresse
porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade…”
TOM JOBIM e VINICIUS DE MORAES, “Chega de saudade”
Se João foi o ritmo da bossa, Tom Jobim foi o maestro do movimento. Se Pixinguinha havia sido o grande nome da música popular na primeira metade do século XX, Antônio Carlos Jobim seria o da segunda.
Criado na Zona Sul do Rio de Janeiro, Tom Jobim teve formação musical sólida e eclética. Estudou com professores eruditos, teve noções de música dodecafônica, mas ouvia com gosto as serestas e os choros da rua, repetindo a experiência musical de seu ídolo maior, Heitor Villa-Lobos. Quando sentava ao piano para compor, as partituras apontavam a influência de Chopin, Debussy, Stravinsky, George Gershwin, Cole Porter, Dorival Caymmi, Custódio Mesquita, Ary Barroso.
Ganhando a vida pelas boates de Copacabana, correndo atrás do aluguel – como quase todo músico –, Tom Jobim teve no amigo Newton Mendonça seu primeiro grande parceiro, em 1950. Jovem talentoso, Newton morreu cedo, mas deixou uma obra importante para o movimento bossa-novista. Com Tom, ele fez dois hinos da época: “Samba de uma nota só” (“Eis aqui esse sambinha/ feito numa nota só/ outras notas vão entrar/ mas a base é uma só”) e “Desafinado” (“Se você insiste em classificar/ meu comportamento de antimusical/ eu, mesmo mentindo, devo argumentar/ que isto é bossa nova/ isto é muito natural…”, música que rebatia com inteligência as críticas que a bossa nova recebia).
A experiência de pianista nos “inferninhos” noturnos do Rio de Janeiro, somada ao trabalho de arranjador ao lado do maestro Radamés Gnattali na Continental Discos, foi estruturando o músico Tom Jobim. Sua produção foi construindo um contraponto ao chachachá e ao twist, que monopolizavam o mercado da época.
De fato, Tom representava aquele lado da bossa que valorizava nossas tradições, sem tradicionalismo. Bebeu em Pixinguinha, Noel Rosa, Radamés Gnattali, Ary Barroso, Custódio Mesquita. Chegou até a compor com Luiz Bonfá, no começo da carreira, um samba que criticava a “invasão” estrangeira na música brasileira, “Samba não é brinquedo”: “Eu sei que você anda dizendo/ que o samba está perdendo/ vai ceder o seu lugar/ Eu sei que tudo isso é brinquedo/ por isso não tenho medo/ da versão de além-mar.”
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Só danço samba
O manuscrito original de “Só danço samba” faz parte do acervo da Toca do Vinicius, em Ipanema, no Rio de Janeiro, e mostra a inegável ligação de Tom Jobim e do “poetinha” com o samba. Aliás, foi Carlos Alberto, dono da Toca do Vinicius e uma daquelas memórias prodigiosas da MPB (sobretudo da história de vida do Vinicius e da bossa nova), quem relembrou o lançamento dessa música e de “Samba da bênção” no show O encontro, realizado no restaurante Au Bon Gourmet, em Copacabana, em 2 de agosto de 1962. Vinicius, Tom, João Gilberto, Milton Banana, Otávio Bailly e Os Cariocas foram os monstros sagrados que apresentaram ao público presente quatro músicas históricas da bossa nova, além das duas citadas: “Garota de Ipanema”, “Samba do avião”, “Insensatez” e “Ela é carioca”, todas frutos da rica parceria de Tom e Vinicius.
Mas Tom Jobim tornou-se universal. Sua música, como toda música de qualidade, não tem pátria. Acima dos modismos e de qualquer rótulo, o maestro passou a ser reverenciado no exterior, gravado por Stan Getz, Charles Byrd e Frank Sinatra, entre tantos outros.
Se pensarmos em cada grande compositor como um país, a obra do maestro é sem dúvida um continente da música brasileira. A legião de extraordinários parceiros só corrobora nossa afirmação: com Billy Blanco gravou “Sinfonia do Rio de Janeiro”; com Chico Buarque, “Sabiá”; com Dolores Duran, “Por causa de você”. Teríamos mais uma centena de músicas com os parceiros já citados e ainda outros do quilate de Marino Pinto, Paulo Soledade, Aloysio de Oliveira, Ronaldo Bastos, Vinicius de Moraes e Newton Mendonça. Mas acho que o tom da nossa conversa já é de excelência…
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Vinicius de Moraes
“Minha alma canta
vejo o Rio de Janeiro
estou morrendo de saudade
Rio, teu mar, praias sem fim
Rio, você foi feito pra mim”
TOM JOBIM e VINICIUS DE MORAES, “Samba do avião”
No passado, muitos poetas se aproximaram dos compositores populares e alguns até passaram a exercer esse ofício. Mas foi Vinicius de Moraes que sintetizou o encontro da poesia com a música popular. De certa forma, a aproximação de um poeta já reconhecido nas literaturas brasileira e latino-americana deu uma espécie de aval para o que estava sendo criado pela bossa nova.
Analisando a obra de Vinicius, vemos que ele era um teórico do carioquismo, o grande esteta do Rio de Janeiro. Nascido na Gávea, morou em Botafogo, Laranjeiras, Ipanema e Ilha do Governador. Circulava pelo Centro e pela Lapa, rondando pelas madrugadas com o seu “poeta-pai, áspero irmão”, Manuel Bandeira.]
Vinicius era o carioca em seu estado mais destilado. Veja suas considerações sobre a alma carioca: “Ser carioca, mais que ter nascido no Rio, é ter aderido à cidade e só se sentir completamente em casa em meio à sua adorável desorganização. Ser carioca é não gostar de levantar cedo, mesmo tendo obrigatoriamente de fazê-lo; é amar a noite acima de todas as coisas, porque a noite induz ao bate-papo ágil e descontínuo; é trabalhar com um ar de ócio, com um olho no ofício e outro no telefone, de onde sempre pode surgir um programa; é ter como único programa o não tê-lo; é estar mais feliz de caixa baixa do que alta; é dar mais importância ao amor que ao dinheiro. Ser carioca é ser Di Cavalcanti.”7
E a cidade amada se fez presente em suas composições. Existe música mais carioca que “Garota de Ipanema”, composta em parceria com Tom Jobim? Vinicius conheceu Tom quando havia acabado de escrever a peça Orfeu da Conceição – em versos, a peça se baseava no mito grego de Orfeu e era ambientada no morro carioca, para ser representada por negros – e procurava um compositor para musicar suas letras. Nascia, em 1956, uma das mais brilhantes dobradinhas da música popular brasileira, que deu origem a “Se todos fossem iguais a você”, “Canção do amor demais”, “Chega de saudade”, “Água de beber”, “Samba do avião”…
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1958, o ano que não deveria terminar
O jornalista Joaquim Ferreira dos Santos escreveu há alguns anos um livro que brinca com o título do clássico de Zuenir Ventura 1968, o ano que não terminou. Em seu livro, Joaquim defende 1958 como o ano que marcou o século XX: “Não existe ano melhor”, diz ele. E enumera fatos que nos marcaram para sempre: “E assim se passaram quarenta anos desde que o capitão Bellini levantou a Jules Rimet e começou a construir uma nova imagem do país. Querem alguns que a construção teria se iniciado, sim, naquele mesmo ano, só que no momento em que João Gilberto batucou no violão as últimas dissonâncias de ‘Chega de saudade’ e lançou o 78 rotações que fundou a bossa nova. Ou terá sido quando Adalgisa Colombo inventou truques de beleza para vencer o Miss Brasil, o DKW-Vemag saiu às ruas com 50% das peças fabricadas pela indústria nacional ou o empresário e conquistador paulista Baby Pignatari pegou no colo a cobiçada atriz americana Linda Christian, ex-Tyrone Power, beijou-a na boca e, olhando para a turma dos Cafajestes do outro lado da piscina do Copacabana Palace, sussurrou em seu ouvido: ‘Você é nossa!’? Isso aconteceu em 1958, o ano em que tudo deu certo. Como disse Nelson Rodrigues, ali ‘o brasileiro deixou de ser um vira-lata entre os homens e o Brasil um vira-lata entre as nações’.”6
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O diplomata nada ortodoxo Vinicius de Moraes, cassado do Itamaraty pelos militares em 1968 devido a seus envolvimentos com o Partido Comunista, cultivou uma legião de parceiros talentosos. Com Carlos Lyra, representante da ala mais à esquerda da bossa nova, fez “Você e eu”, “Minha namorada” e “Marcha da quarta-feira de cinzas”; com o chorão e bossa-novista Baden Powell, violonista de renome internacional, compôs os famosos afro-sambas “Canto de Ossanha” e “Canto de Xangô”, além de “Berimbau” e “Samba da bênção”; com o harmônico Edu Lobo fez “Arrastão”; com o múltiplo Chico Buarque compôs “Gente humilde”; com o maestro Francis Hime, “Sem mais adeus”.
Aos 56 anos, em 1969, Vinicius começa a parceria com Toquinho, uma das mais importantes de sua carreira. Dela surgiram “Regra três”, “Maria vai com as outras”, “Como dizia o poeta” e “Tarde em Itapoã”.
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Vinicius poeta
A mística e a ânsia pelo absoluto imperaram nas primeiras publicações do poeta, sendo substituídas por uma abordagem mais lírica e sensual, com passagens experimentalistas. Tal fase coincide com o processo de amadurecimento do poeta. Os temas de sentido social e de preocupação com o mundo se tornariam uma constante na última fase de sua obra: uma poesia integrada ao cotidiano. Seus versos refletiriam, mais tarde, um pensamento de mobilidade e amor pela cidade do Rio. A seguir, um exemplo do lado mais social do poeta, em que ele toma parte no sofrimento universal causado pelas dores da Segunda Guerra Mundial, em particular pelas bombas atômicas despejadas pelos EUA na cidade nipônica de Hiroshima, matando milhares de pessoas.
Rosa de Hiroxima
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.
O poetinha Vinicius de Moraes, amante das mulheres, do uísque (dizia que o “uísque é o cão engarrafado”, o melhor amigo do homem), das artes e da vida, foi uma das almas mais sedutoras e brilhantes que esta terra produziu.
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O Zicartola
“Eu estou na cidade
eu estou na favela
eu estou por aí
sempre pensando nela”
ZÉ KÉTI, “Diz que fui por aí”
Na primeira metade dos anos 1960, o meio cultural brasileiro passou a ser o palco de grandes discussões estéticas e políticas. Surgia o Cinema Novo, o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), a própria une volante, o Movimento de Cultura Popular do Recife, o Teatro de Arena, a Revista Civilização Brasileira, o movimento neoconcreto, o poema-práxis e o método Paulo Freire de alfabetização. Essa dinamização do campo cultural, e seu atrelamento aos movimentos políticos, se fez refletir com intensidade no universo do samba.
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Cinema Novo
“Uma idéia na cabeça, uma câmara na mão.” Esse foi o lema criado pelo genial baiano Glauber Rocha para definir o Cinema Novo. Influenciados pela nouvelle vague francesa (Godard, Truffaut) e pelo neo-realismo italiano (Antonioni, Fellini, Pasolini), os jovens cineastas ligados ao movimento criticavam o estilo dos filmes comerciais – os hollywoodianos – e queriam mostrar personagens como o camponês, o operário, o sertanejo, o homem simples do povo e sua cultura. Nelson Pereira dos Santos inaugurou o movimento com Rio, 40 graus, e o ápice se deu com O pagador de promessas, filme de Anselmo Duarte baseado na obra de Dias Gomes, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Os filmes Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, tido como o principal nome da geração, Cinco vezes favela, de Joaquim Pedro de Andrade, Roberto Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues e Leon Hirzsman, Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni, Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, Gangazumba, de Carlos Diegues, Garrincha, alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade e Os fuzis, de Rui Guerra, também são bastante representativos do período.
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A classe média intelectualizada passa a reconhecer na cultura popular um privilegiado motor de identidade do país. Locais como o restaurante Zicartola, no Centro do Rio, a gafieira Estudantina, na praça Tiradentes, e ainda os shows Opinião e Rosa de Ouro tornaram-se a coqueluche da rapaziada da Zona Sul carioca.
O Zicartola durou apenas de 1963 a 1965. O sobrado situado na rua da Carioca número 53, no Centro do Rio de Janeiro, local onde se servia música popular e comida caseira, foi um marco de revitalização do samba urbano tão popular que as filas de entrada se estendiam até a praça Tiradentes.
Toda uma geração de compositores alijada das escolas de samba encontrou no pequeno sobrado seu novo endereço. Eram os filhos das escolas que agora “batucavam” com a geração bossa nova. Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti, Paulinho da Viola, Nara Leão, Nelson Sargento, Hermínio Bello de Carvalho, Carlos Lyra e Araci de Almeida estavam entre tantos que dividiam as mesas do sobrado para o ritual do samba.
O compositor, ritmista e cantor Elton Medeiros, observador participante desde o começo do Zicartola, conta-nos um pouco dessa história: “O Zicartola nasceu dos encontros na casa do Cartola, na rua dos Andradas. O Cartola se reunia com a gente… Nós resolvemos ensaiar um conjunto que seria o primeiro A Voz do Morro. Era constituído de Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti, Joacir Santana, Ventura, Armando Santos, da Portela, e eu. Acontece que esse conjunto só se apresentou uma vez na televisão, na TV Rio, Canal 13, mas a coisa não foi em frente e a turma desapareceu. Ficamos Cartola, Zé Kéti, Nelson Cavaquinho e eu. Isso foi em 1962. Eugênio (Eugênio Agostini, sócio e financiador do futuro restaurante) desafiava a gente: ‘Sábado que vem todos têm que apresentar um samba novo.’ Daí surgiram ‘O sol nascerá’, ‘Luz negra’, ‘Diz que fui por aí’. Eugênio trazia todo sábado uns cinco carros lotados. Um que não saía de lá era o Carlinhos Lyra, que gravava tudo que a gente cantava. Até espirro… O Zicartola foi continuação disso tudo, já dentro de uma linha comercial.”8
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Synval Silva
A retomada do samba na década de 1960 fez ressurgir a figura do compositor Synval Silva. Um dos fundadores da escola de samba Império da Tijuca, o mineiro Synval foi autor de pérolas que estouraram nas vozes de Carmen Miranda, sua predileta, Orlando Silva e Odete Amaral. São de sua autoria “Adeus batucada”, “Ao voltar do samba”, “Coração”, “Agora é tarde” e “Madalena se zangou”.
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Rosa de Ouro
“Rosa de ouro, que tesouro
ter essa rosa plantada em meu peito
Rosa de ouro, que tesouro
ter essa rosa plantada no fundo do peito…”
PAULINHO DA VIOLA, HERMÍNIO BELLO e ELTON MEDEIROS, “Rosa de Ouro”
O Rosa de Ouro foi um musical imaginado, fomentado e construído a partir das experiências ocorridas no Zicartola. Em 1965, no Teatro Jovem – no bairro de Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro –, Aracy Cortes, Clementina de Jesus, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Paulinho da Viola, Nelson Sargento e Anescar do Salgueiro, dirigidos pelo poeta Hermínio Bello de Carvalho, fizeram o público e a imprensa se curvarem diante do elenco que apresentava músicas de Geraldo Pereira, Paulo da Portela, Ismael Silva, Henrique Vogeler, Lamartine Babo, Sinhô.
Era louvável que a burguesia da Zona Sul carioca e a imprensa batessem palmas para um repertório formado marcadamente por sambas ditos tradicionais. E também para o clima de rancho carnavalesco, de jongo e corimas, de teatro de revista em tempo de bossa nova. Uma das grandes surpresas para o público nesse espetáculo foi a revelação de Clementina de Jesus.
Descoberta por Hermínio Bello no morro da Mangueira, Clementina estreou na vida artística com mais de 60 anos de idade. Sua voz reverberava as raízes negras entoando os caxambus, jongos, lundus e corimas aprendidos na infância. “O palco escurecia, os atabaques rufavam e um facho de luz acompanhava a entrada em cena daquela majestática figura, envolta em rendas. A voz poderosa ecoava grave na acústica do Teatro Jovem, o público em religioso silêncio: ‘Benguelê/ Benguelê/ Benguelê/ Ó Mamãe Simba, Benguelê’. ” E chegava Clementina…9
O Rosa de Ouro firmou a imagem de valorosos compositores de samba e lançou, ao lado de Clementina, o talento do jovem Paulinho da Viola.
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Opinião
“Podem me prender
podem me bater
podem até deixar-me sem comer
que eu não mudo de opinião…”
ZÉ KÉTI, “Opinião”
Possivelmente, o show Opinião foi a primeira resposta musical ao golpe militar de 1964, que depôs o presidente João Goulart.
Para o amigo leitor ter um painel da dramaticidade do golpe, não havia 20 anos que o Brasil saíra do Estado Novo getulista. A cultura estava em ebulição, a sociedade se organizando, as instituições democráticas respirando e lá se foi, com o comício de João Goulart pelas reformas de base (saúde, educação, saneamento, reforma agrária), o sonho de erguer um país politicamente plural, de sólidas raízes democráticas.
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O golpe de 1964
O ano de 1964 poderia entrar para os anais da história como “o ano que não deveria ter existido”. Era o início de um ciclo que há muito a UDN – União Democrática Nacional, partido formado por setores “moralistas” da classe média, pelo empresariado ligado ao capital internacional e por políticos conservadores de direita – tentava implantar. O golpe militar de 1964, realizado na madrugada de 1º de abril, afetou diretamente a vida cultural do país. A Rádio Nacional, por exemplo, passou a perseguir os artistas que eram vistos como “comunistas”, após intervenção dos militares. Era o macarthismo tupiniquim. A cantora Nora Ney e seu marido, o também cantor Jorge Goulart, tinham posições políticas socialistas e haviam excursionado pelos países do Leste europeu. Por conta da firmeza de seus ideais políticos o casal seria muito perseguido pelo violento governo militar. Nora Ney e Jorge Goulart foram os primeiros cantores a serem demitidos da Rádio Nacional.
Debaixo do fechamento do Congresso Nacional, o samba unia-se aos descontentes com a quartelada. Ainda não era 1968 (fatídico ano do Ato Institucional nº 5, medida que abriu as portas para a tortura e o “desaparecimento” de inúmeros militantes antigolpe), e a oposição ao regime ainda podia mostrar suas asinhas.
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Esse foi o papel do Opinião – aglutinar força e opinião contra a ditadura. Sob a direção de Augusto Boal, com texto de Armando Costa, Paulo Pontes e Oduvaldo Viana Filho, a peça estreou no dia 11 de dezembro de 1964 no teatro do shopping center da rua Siqueira Campos, em uma realização do grupo Opinião com o Teatro de Arena de São Paulo.
A montagem era resultado do trabalho dos Centros Populares de Cultura ligados à UNE. Nela atuavam um compositor do morro, Zé Kéti, um do campo, João do Vale, e uma jovem oriunda da bossa nova, Nara Leão (depois substituída pela baiana Maria Bethânia), com direção musical de Dori Caymmi.
Por sua relevância na trajetória do samba, vamos olhar um pouco mais de perto alguns dos personagens desses antológicos musicais. Parênteses: como já foi dito, Paulinho da Viola começou sua vida “profissional” no Zicartola, mas seu trabalho já foi mais detalhadamente comentado no capítulo “O samba das escolas”, visto que é na escola portelense que seu coração deitou fortes raízes.
Zé Kéti
“Acender as velas
já é profissão
quando não tem samba
tem desilusão…”
ZÉ KÉTI, “Acender as velas”
É difícil sair de uma roda de samba sem ouvir os seguintes versos: “Eu sou o samba/ sou natural aqui do Rio de Janeiro/ sou eu que levo a alegria/ para milhões de corações brasileiros.” O samba “A voz do morro”, gravado por Jorge Goulart em 1955 e trilha do filme Rio, 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos, foi composto por José Flores de Jesus, conhecido como Zé Kéti.
Criado em berço musical, o carioca Zé Kéti foi levado para a Portela pelo compositor, depois presidente da escola, Armando Santos. Reconhecido como compositor na quadra da escola, Zé teve desentendimentos em virtude da autoria de algumas músicas, e passou a freqüentar a União de Vaz Lobo no início de 1950. Mais tarde voltaria para a escola de Paulo da Portela.
Nos anos 1960, podia ser visto fazendo as honras do restaurante Zicartola e participou do espetáculo Opinião, ao lado de João do Vale e Nara Leão. Com o espetáculo, lançou dois grandes sucessos: “Opinião” e “Diz que fui por aí” (“Se alguém perguntar por mim/ diz que fui por aí/ levando um violão/ debaixo do braço/ Em qualquer esquina eu paro/ em qualquer botequim eu entro/ e se houver motivo/ é mais um samba que eu faço”).
Zé Kéti formou o conjunto A Voz do Morro, aproveitando a fama do samba homônimo. Em 1964, gravou alguns de seus sambas numa fita que seria entregue aos cantores da gravadora Musidisc, para seleção de repertório. Paulinho da Viola, Anescarzinho do Salgueiro, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Oscar Bigode e Zé Cruz fizeram o acompanhamento e apresentaram outras composições. O resultado foi o lançamento do disco Roda de samba. Esse mesmo conjunto, mais Nelson Sargento, gravaria ainda dois LPs.
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Nara Leão
Musa da bossa nova, a cantora Nara Leão desempenhou importante papel na divulgação do movimento e foi um dos elos fortes dos meninos da Zona Sul com os sambistas da Zona Norte. Nara abraçou as causas políticas do seu tempo, aproximando-se dos CPCs da UNE e do Cinema Novo. Cantava tudo que tivesse qualidade, sem esnobismo ou hierarquização de estilos. Cantou Zé Kéti, Cartola, Roberto Menescal, Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Vinicius e Tom. Foi ela quem registrou as primeiras duas obras da carreira de Chico Buarque de Hollanda, “Olê, Olá” e “Pedro Pedreiro”. Nara foi uma privilegiada antena da MPB.
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Zé Kéti viveu toda a dimensão política e cultural do seu tempo. Além de fazer parte do contestatório Opinião, aproximou-se dos bossa-novistas Carlos Lyra e Nara Leão, ligados à ala política da bossa nova, com eles compondo o primeiro “Samba da legalidade”, no qual defendiam o fim da clandestinidade do Partido Comunista.
Com Elton Medeiros, Zé Kéti compôs os sambas “Mascarada” e “Samba original”, gravados pelo jovem Paulinho da Viola. No final dos anos 1960, compôs com Hildebrando Pereira Matos a marcha-rancho “Máscara negra”, um dos maiores êxitos de sua carreira e também do carnaval carioca, com a qual fechamos nossa breve biografia: “Quanto riso, oh! quanta alegria/ Mais de mil palhaços no salão/ Arlequim está chorando/ pelo amor da Colombina/ no meio da multidão…”
Elton Medeiros
“A sorrir
eu pretendo levar a vida,
pois chorando
eu vi a mocidade perdida.”
ELTON MEDEIROS e CARTOLA, “O sol nascerá”
Elton Medeiros, carioca do bairro da Glória, é um dos melhores melodistas e ritmistas da história do samba. Essa notoriedade o colocou lado a lado com parceiros do porte de Hermínio Bello de Carvalho (“Pressentimento”), Cartola (“O sol nascerá”), Mauro Duarte (“Maioria sem nenhum”) e Paulinho da Viola (“Sentimento perdido”).
Elton é daqueles compositores que começaram nas escolas de samba – no seu caso, a querida Aprendizes de Lucas, onde fundou com o irmão Aquiles a ala de compositores. Seu samba “Exaltação a São Paulo” foi considerado, ao lado de “Sublime pergaminho”, um dos melhores da história da escola.
Integrou o conjunto A Voz do Morro e foi um dos grandes incentivadores e freqüentadores do Zicartola. Um dos muitos encontros promovidos no sobrado musical da rua da Carioca foi o de Elton com aquele que viria a ser o seu mais constante parceiro, Paulinho da Viola: uma parceria de respeito entre o refinado e harmonizador Paulinho e o melodista de linhas inesperadas Elton só poderia resultar em clássicos como “Onde a dor não tem razão” e “Recomeçar”, para citar apenas dois.
Ainda com o amigo Paulinho da Viola, Elton gravou o LP Samba na madrugada, no qual lançou a antológica música “Minhas madrugadas”, em 1966. Ainda nesse ano, acompanhou a cantora Clementina de Jesus pelo país e o exterior, como Dacar, na mostra de arte negra do Senegal. Já no ano seguinte integrou, com Mauro Duarte, Nelson Sargento, Anescarzinho do Salgueiro e Jair do Cavaquinho, o conjunto Os Cinco Crioulos, que gravou entre 1967 e 1969 três LPs na Odeon.
Seu rigor no repertório e nas opiniões sobre os sambistas fez de Elton um ardoroso defensor do chamado “samba de raiz” – denominação aplicada, na década de 1990, aos veteranos sambistas que não obtinham espaço na indústria fonográfica. No final dos anos 1990 ele participou, ao lado de Mariana de Moraes e Zé Renato, de um show que revisitava sambas clássicos. Em 1999 gravou, ao vivo, no Teatro Municipal de Niterói, o CD Só Cartola, com Nelson Sargento e o tradicional grupo de choro Galo Preto, sendo muito elogiado pela crítica especializada.
Hermínio Bello de Carvalho
“Não sou eu quem me navega
quem me navega é o mar
não sou eu quem me navega
quem me navega é o mar
é ele quem me carrega
como nem fosse levar
é ele quem me navega
como nem fosse levar”
HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO e PAULINHO DA VIOLA, “Timoneiro”
É difícil precisar o papel de Hermínio Bello de Carvalho na música brasileira, mas com certeza ele está no elenco principal. Como classificar um homem que produz musicais e discos, escreve poesias, inventa e realiza projetos, publica livros e ainda compõe pérolas musicais?
Das mãos de Hermínio saíram os espetáculos Rosa de Ouro e o mais recente O samba é minha nobreza: dois divisores de água, cada um em seu tempo. No palco do primeiro estava a geração que estamos retratando; sob os refletores do segundo, novos cantores, compositores e instrumentistas do samba da Lapa revivida. O Projeto Pixinguinha, que incentivou a MPB, o Projeto Menestrel, que mesclava música erudita e popular (imagine o violonista Turíbio Santos ao lado de Clementina!) e a antológica apresentação do Zimbo Trio, ao lado de Elizeth Cardoso e Jacob do Bandolim, no Teatro João Caetano, em 1968, passaram pela elaboração, direção e execução de Hermínio Bello de Carvalho.
De formação musical clássica, o ex-violonista Hermínio deitou raízes mesmo foi como parceiro de Cartola e Carlos Cachaça (“Alvorada”), de Pixinguinha (“Fale baixinho”), de Elton Medeiros (“Pressentimento”), de Chico Buarque (“Chão de esmeraldas”) e de Paulinho da Viola (“Sei lá, Mangueira”, uma declaração de amor do poeta para sua escola).
Os talentos descobertos pelo olhar criterioso e sonhador do múltiplo Hermínio – que, como Fernando Pessoa, vai em frente em busca da realização do belo – trouxeram-nos a poesia e a musicalidade de Paulinho da Viola, as singularidades de Clementina de Jesus e o retorno sempre prazeroso de compositores alijados do grande mercado do disco, a exemplo de Aracy Cortes, Nora Ney, Pixinguinha, Elizeth Cardoso…
Defensor do patrimônio musical brasileiro, do qual faz parte, Hermínio pode ser localizado na tradição como um artista e produtor que faz a história da música popular brasileira.
NOTAS
1. A referência completa do livro de Arthur Loureiro de Oliveira Filho é 500 anos da música popular brasileira. Rio de Janeiro: Museu da Imagem e do Som, 2001, p.111.
2. A definição de samba-canção é dada por Nei Lopes em seu livro Sambeabá, o samba que não se aprende na escola. Rio de Janeiro: Casa da Palavra/ Folha Seca, 2003, p.17.
3. As cartas sentimentais dos leitores para Antônio Maria foram retiradas do livro de Joaquim Ferreira dos Santos, Antônio Maria. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ RioArte, 1996, 2ed., p.109-11.
4. O trecho de Ruy Castro sobre o estilo de cantar de João Gilberto está em seu livro A onda que se ergueu no mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.268.
5. O texto de Tom Jobim sobre João Gilberto foi retirado da contracapa do LP Chega de saudade, lançado em 1959 pela Odeon.
6. O livro de Joaquim Ferreira dos Santos sobre o ano 1958 chama-se Feliz 1958, o ano que não deveria terminar. Rio de Janeiro: Record, 1998, p.9.
7. A descrição do carioca feita por Vinicius de Moraes está no livro de José Castello, Vinicius de Moraes: uma geografia poética. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005, p.8.
8. Elton Medeiros relata o surgimento do Zicartola em História do samba, vol.31. São Paulo: Globo, 1998, p.610.
9. A entrada em cena de Clementina de Jesus no espetáculo Rosa de Ouro é narrada em História do samba, vol.30. São Paulo: Globo, 1998, p.582.
Texto de André Diniz em "Almanaque do Samba" - A História do Samba, o que ouvir, o que Ler, Onde Curtir", Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2010, 2010, excertos cap.5. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.