Criação de gado
No período em que nos fixamos, exercia a criação de gado, na economia social, uma importância bem maior do que hoje. De fato, antes da era da máquina, o gado bovino, cavalar e muar, além de produto básico de alimentação, servia como agente motor e meio de transporte. Na Espanha, o gado lanígero, numa época em que estava mais desenvolvida na Europa a indústria lanígera que a do algodão, originou a “Mesta”, grande associação de criadores que comprovou, pelo seu poder e grandeza, a importância da criação animal.4
D. Ana Pimentel, esposa e procuradora de Martim Afonso de Sousa, providenciou, em 1534, para que se introduzisse gado bovino na capitania daquele donatário. Tomé de Sousa introduziu muito gado na Bahia. Usou mesmo, especialmente para tal serviço, de uma caravela, a Galga, que ia buscá-lo na ilha de São Vicente.
É provável que muitos donatários tivessem tido idêntica iniciativa. Na Capitania de São Vicente, a sua criação se desenvolvia lentamente, e, muitos anos mais tarde, o padre Nóbrega recomendava parcimônia em seu consumo, para que pudesse tomar maior incremento.
Foi a zona do açúcar, porém, que deu origem à primeira fase da grande criação de gado. Os antigos cronistas, Gândavo, Gabriel Soares, Fernão Cardim, Frei Salvador, e outros, são acordes em constatar a atenção que ia despertando a criação no centro-nordeste brasileiro. É que a indústria do açúcar era importante consumidora de gado. Os trapiches e engenhos, movidos por bois, faziam grande desgaste; as carretas para lenha e para o açúcar exigiam número considerável de cabeças, em porção, talvez, igual ao da escravatura ocupada.5 A alimentação de carne era necessária para os que se dedicavam aos intensos trabalhos dos engenhos.6 Junto aos engenhos havia currais cercados, em que se abrigavam as cabeças utilizadas no seu funcionamento.
A intensa procura que se estabeleceu, com o rápido crescimento da indústria, estimulava a criação. Já nas terras brasileiras ia-se verificando, porém, o conflito, existente no Velho Continente, entre os criadores e os lavradores, em defesa das plantações. Não havia o arame, o grande elemento pacificador e protetor da cultura dos campos. Daí uma das razões da retirada dos currais de criação para o sertão brasileiro, longe dos engenhos, dos canaviais e dos mandiocais e em terras mais pobres que não poderiam ser aproveitadas para as culturas exigidas pelo número crescente dos engenhos do litoral. Uma Carta Régia de 1701 proibia mesmo a criação a menos de 10 léguas da costa.
Os currais foram, então, penetrando e ocupando o interior. Começaram pelo sertão da Bahia. Era mais fácil aos criadores, do que aos senhores de engenho, estabelecerem um modus vivendi pacífico com os íncolas. O trabalho das fazendas de criar era incomparavelmente mais suave e mais adaptável ao temperamento dos íncolas do que o rude labor dos engenhos em que o autóctone perecia em pouco tempo. Daí, as alianças com diversas tribos selvagens, que permitiam a mais rápida expansão dos currais. Isso não impediu, no entanto, que se tornassem necessárias várias guerras de expulsão e de extermínio a muitas tribos, que se opuseram à expansão dos currais, ou que vieram a hostilizá-los.
Já no governo de Tomé de Sousa, iniciou Garcia de Ávila o estabelecimento de currais pelo interior da Bahia. Ele e os seus descendentes transformaram-se nos maiores criadores do sertão baiano, chegando a possuir “duzentas e cinqüenta léguas de testada na margem do rio São Francisco e deste ao Parnaíba setenta léguas”.
Em 1589, Cristóvão de Barros ocupou a costa até o São Francisco, expulsando os selvagens. Iniciaram-se também as distribuições de sesmarias no sentido ascendente do mesmo rio.
Os Ávilas e os seus associados prosseguem na invasão do sertão com os seus currais, passando o divortium acquarum, levando-os ao Maranhão, Piauí, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Outros grandes criadores, os Guedes de Brito, ocuparam também largas faixas dos sertões baianos.
Subindo o São Francisco, atingem o interior mineiro. Passando para os vales do Tocantins e Araguaia, estende-se a criação para os sertões goianos de Amaro Leite.
Via Goiás, penetrou o gado às regiões do Mato Grosso, onde foi de encontro às manadas que subiam da Vacaria e das possessões espanholas; assim também o gado que subia o São Francisco encontrar foi-se com o que pela Capitania de São Vicente tinha sido introduzido em Sabarabuçu e vale do rio das Velhas, em Minas Gerais.
São Vicente, Bahia e Pernambuco foram, portanto, os centros irradiadores da criação para a região central e nordeste do Brasil. Nos campos de Curitiba, parece ter sido o gado originário de São Vicente. Os dos campos do sul do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande, supõe-se terem sido introduzidos principalmente pelas missões jesuíticas espanholas.7
Criadores da zona do açúcar
As fundações de fazendas de criar de sesmarias abriram novas possibilidades aos sertões da costa, permitindo também o descongestionamento dos engenhos de açúcar do litoral. Para as novas sesmarias, descobertas pelos audaciosos sertanistas, afluíram os indivíduos que não dispunham de emprego estritamente produtivo, ou vadios, isto é, as populações livres dos mestiços de toda a casta. A esses, atraíam os grandes sesmeiros para fundar currais, pois o pastoreio, como observa Oliveira Viana, é a forma mais generalizada da exploração da terra no período colonial.8
Não se processou, no entanto, sempre pacificamente, essa entrada dos vaqueiros. No último quartel do século XVII, houve um célebre levante de índios nos sertões da Bahia, alguns dos quais procedentes de antigas tribos conversas. Lutando com sérias dificuldades para vencê-los, resolveu o Governo da Bahia recorrer aos paulistas que exploravam, permanentemente, a indústria da guerra, como elemento básico no ofício de caça ao bugre, principal atividade da gente de Piratininga.
Daí os socorros chefiados por Domingos Barbosa Calheiro, Brás Rodrigues Arzão, Estêvão Ribeiro Baião Parente e outros.
Seguiram esses paulistas com suas expedições, por via marítima, embarcando em Santos. Com o transporte dos dois últimos e de sua gente, em 1671, despendeu a Câmara de São Salvador 10:000$000, equivalentes a cerca de 500 contos em moeda de hoje. Foram os paulistas bater os índios que se haviam rebelado e assassinado os vaqueiros de Aporá. Mais tarde, por terra, Domingos Jorge Velho, Matias Cardoso de Almeida, Morais Navarro e outros foram empregados no combate aos paiacus, janduís e icós, nas ribeiras do Açu e Jaguaribe.
“Muitos dos paulistas empregados nas guerras do Norte não tornaram mais a São Paulo, e preferiram a vida de grandes proprietários nas terras adquiridas por suas armas: de bandeirantes, isto é, despovoadores, passaram a conquistadores, formando estabelecimentos fixos. Ainda antes do descobrimento das minas sabemos que nas ribeiras do rio das Velhas e do S. Francisco havia mais de cem famílias paulistas, entregues à criação de gado.”9
Esta informação é confirmada por Pedro Taques, que diz terem sido numerosas as famílias de São Paulo que, em contínuas migrações, procuravam essas zonas afastadas e aí se instalavam com suas fazendas de gado. Domingos Mafrense, também conhecido por Domingos Sertão, ficou no Piauí, onde fundou 39 fazendas de criar gado vacum, mais tarde doadas aos jesuítas. Domingos Jorge Velho, penetrando no sertão da Paraíba, na ribeira do Piancó, aí fundou fazendas com reses trazidas das margens do São Francisco. Em Goiás penetraram as primeiras reses tresmalhadas dos rebanhos do São Francisco e, em princípios do século XVIII, foram instaladas, também por paulistas, as primeiras fazendas de criar nos ótimos campos goianos.
O vaqueiro
“Adquirida a terra para uma fazenda, o trabalho primeiro era acostumar o gado ao novo pasto, o que exigia algum tempo e bastante gente; depois ficava tudo entregue ao vaqueiro. A este cabia amansar e ferrar os bezerros, curá-los das bicheiras, queimar os campos alternadamente na estação apropriada, extinguir onças, cobras e morcegos, conhecer as malhadas escolhidas pelo gado para ruminar gregoriamente, abrir cacimbas e bebedouros. Para cumprir bem com seu ofício vaqueiral, escreve um observador, deixa poucas noites de dormir nos campos, ou ao menos as madrugadas não o acham em casa, especialmente de inverno, sem atender às maiores chuvas e trovoadas, porque nesta ocasião costuma nascer a maior parte dos bezerros e pode nas malhadas observar o gado antes de espalhar-se ao romper do dia, como costumam, marcar as vacas que estão próximas a ser mães, e trazê-las quase como à vista, para que parindo não escondam os filhos de forma que fiquem bravos ou morram de varejeiras.
“Depois de quatro ou cinco anos de serviço, começava o vaqueiro a ser pago; de quatro crias cabia-lhe uma; podia assim fundar fazendas por sua conta. Desde começos do século XVIII, as sesmarias tinham sido limitadas ao máximo de três léguas separadas por uma devoluta. A gente dos sertões da Bahia, Pernambuco, Ceará, informa o autor anônimo do admirável Roteiro do Maranhão a Goiás, tem pelo exercício nas fazendas de gado tal inclinação que procura com empenhos ser nela ocupada, consistindo toda a sua maior felicidade em merecer algum dia o nome de vaqueiro. Vaqueiro, criador ou homem de fazenda, são títulos honoríficos entre eles.
“As boiadas procuravam os maiores centros de população, isto é, as capitais da Bahia e Pernambuco.”10
Antonil, em 1711, confirma, em interessantes informações, a importância que assumira a criação de gado no Brasil central. Referindo-se ao sertão da Bahia, acentua:
“É porque as fazendas, e os currais de gado se situam aonde a largueza de campo, e agora sempre manente de rios, ou lagoas: por isso os currais da parte da Bahia estão postos na borda do rio de S. Francisco, na do rio das Velhas, na do rio das Rãs, na do rio Verde, na do rio Pe- ramirim, na do rio Jacuípe, na do rio Itapicuru, na do rio Real, na do rio Vaza-Barris, na do rio de Sergipe; e de outros rios, em os quais, por informação tomada de vários, que correram este sertão, estão atualmente mais de quinhentos currais: e só na borda d’aquém do rio de S. Francisco, cento e seis lagoas. E na outra borda da parte de Pernambuco, é certo que são muito mais. E não somente de todas estas partes e rios já nomeados vêm boiadas para a cidade e recôncavo da Bahia, e para as fábricas dos engenhos; mas também do rio Iguaçu, do rio Carainhaém, do rio Corrente, do rio Guaraíra, e do rio Piaguigrande, por ficarem mais perto, vindo caminho direito, à Bahia, do que indo por voltas a Pernambuco.
“E posto que sejam muitos os currais da parte da Bahia, chegam a muito maior número os de Pernambuco, cujo sertão se estende pela costa desde a cidade Olinda até o rio de S. Francisco, oitenta léguas: e continuando da barra do rio de S. Francisco até à barra do rio Iguaçu, contam-se duzentas léguas. De Olinda para Oeste até o Piagui, Freguesia de Nossa Senhora da Vitória, cento e sessenta léguas, e pela parte do norte estende-se de Olinda até ao Ceará-Merim, oitenta léguas, e daí até o Açu, trinta e cinco léguas, e até ao Ceará Grande, oitenta léguas: e por todas vem a estender-se desde Olinda até esta parte, quase duzentas léguas que, por terem junto de si pastos competentes, estão povoados com gado (fora o rio Preto, o rio Guaraíra, o rio Iguaçu, o rio Corrente, o rio Guarignae, a lagoa Alegre, e o rio de S. Francisco, da banda do norte), são o rio de Cabaços, o rio de S. Miguel, as duas Alagoas com o rio do Porto do Calvo, o da Paraíba, o dos Bariris, o do Açu, o do Podi, o de Jaguaribe, o das Piranhas, o Pajeú, o Jacaré, o Canindé, o de Parnaíba, o das Pedras, o dos Camarões e o Piagui. Os currais desta parte hão de passar de oitocentas léguas: e de todos estes vão boiadas para o Recife, e Olinda, e suas vilas, e para o fornecimento das fábricas dos engenhos desde o rio de S. Francisco até ao rio Grande: tirando os que acima estão nomeados desde o Piagui até à barra de Iguaçu, e de Pernágua, e rio Preto; porque as boiadas destes rios vão quase todas para a Bahia, cujo melhor caminho é pelas Jacobinas, por onde passam, e descansam. Assim como aí também param, e descansam as que às vezes vêm de mais longe. Mas quando nos caminhos, se acham pastos, porque não faltarão às chuvas, em menos de três meses chegam as boiadas à Bahia, que vêm dos currais mais distantes. Porém se por causa da seca forem obrigados a parar com o gado nas Jacobinas: aí o vendem os que o levam, e lá descansa seis, sete e oito meses, até poder ir à cidade.”
Quanto às estatísticas, atribui:
à Bahia................................................ 500.000 cabeças
a Pernambuco................................... . 800.000 cabeças
ao Rio de Janeiro.................................. 60.000 cabeças
Computando São Paulo e os campos de Curitiba, “onde vai crescendo e multiplicando cada vez mais o gado”, não é difícil avaliar em mais de 1.500.000 o número de cabeças existentes nessa época, na colônia lusitana, sem contar o gado bravo dos campos do Sacramento.
Conforme Antonil, os currais variavam de 200 a 1.000 cabeças; as fazendas, muitas com avultado número de currais, chegavam a ter até 20.000 cabeças de gado.
“As do sertão da Bahia, que pertenciam às duas grandes famílias - a da Torre e a do defunto mestre-de-campo, Antônio Guedes de Britto - eram ocupadas parte pelos donos, que arrendavam o resto, à razão aproximada de 10.000 anuais por légua.
“Para os engenhos, para os lavradores de cana, tabaco, mandioca, serrarias, lenha; para a alimentação era grande o consumo de gado. E o couro exportado em ‘cabelo’ e em meias-solas, só por si indica uma matança anual de mais de 55.000 cabeças.”
Os transportes se faziam por boiadas de 100 a 300 cabeças de gado.
“Os que as trazem são brancos, mulatos, e pretos e também índios, que com este trabalho procuram ter algum lucro. Guiam-se, indo uns adiante cantando, para serem desta sorte seguidos do gado; e outros vêm atrás das reses tangendo-as, e tendo cuidado, que não saiam do caminho e se amontoem. As jornadas são de quatro, cinco, e seis léguas, conforme a comodidade dos pastos, aonde hão de parar. Porém, aonde há falta d’água, seguem o caminho de quinze, e vinte léguas, marchando de dia e de noite, com pouco descanso, até que achem paragem, aonde possam parar. Nas passagens de alguns rios, um dos que guiam a boiada, pondo uma armação de boi na cabeça, e nadando, mostra às reses o vão, por onde hão de passar.”
Época do couro no Norte
Com a expansão da criação passou-se a fazer uso intenso do couro.
“De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde as camas para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as bruacas e surrões, a roupa de entrar no mato, os bangüês para curtume ou para apurar sal; para os açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz.”11
As descobertas de salinas no Ceará e em Alagoas, a existência de barreiros salgados no vale de São Francisco e a maior proximidade de Portugal, grande produtor e exportador de sal, favoreceram a expansão criadora do Norte. A ilha de Joanes, atual Marajó, foi também povoada de gados no início do século XVIII. A expansão contínua dos currais nas terras que os sesmeiros isoladamente não podiam explorar, deram origem aos “sobrados”, assim chamadas as sobras das sesmarias também ocupadas pelos vaqueiros.12
O sistema de vida e a necessidade de maior golpe de vista sobre a propriedade, conduziam os vaqueiros a construir suas habitações nos lugares altos, contrastando com as habitações nos vales, características dos agricultores do Sul.
O surto minerador
A ocupação de uma grande área do sertão brasileiro pelos criadores, formando a retaguarda econômica dos engenhos, ao mesmo tempo que constituía uma eficaz proteção contra as incursões dos selvagens nas zonas litorâneas do açúcar, exerceu ainda uma alta finalidade, quando se verificou a expansão mineradora do Brasil central. De fato, a mineração produziu uma rápida concentração de populações em zonas pouco férteis, provocando uma grande procura de alimentação e crises terríveis de fome que as crônicas relatam sob as mais sombrias cores.
Os mineradores de Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais foram abastecidos pelos criadores do vale do São Francisco e sertões do Nordeste. A alta que se verificou nos preços do gado nos campos de mineração, foi de tal monta, que repercutiu em toda a zona criadora, provocando os protestos dos senhores de engenho, já grandemente prejudicados com a elevação, da mesma origem, registrada nos preços dos escravos.
E, se pelos “caminhos dos currais”, iam dos sertões da Bahia para as zonas de mineração socorros alimentares, pelas mesmas estradas poderia ser contrabandeado o ouro, fugindo ao pagamento dos quintos... Daí a Carta Régia de 7 de fevereiro de 1701, ordenando que as Capitanias da Bahia e Pernambuco não se comunicassem com as minas de São Paulo pelos sertões, para que dessas minas não se ^pudessem ir buscar mantimentos ou gados das mencionadas capitanias.13
Tal determinação foi logo depois atenuada, consentindo-se que pelo caminho dos currais passasse apenas o gado em demanda dos campos de mineração.
De acordo com a mesma ordem de idéias, a Carta Régia de 7 de maio de 1703 mandou que se dessem de sesmaria as terras dos campos das minas até a serra dos Órgãos e mais próximas do Rio de Janeiro com a condição de cada donatário pôr um curral de gado dentro de três anos “no sítio que se lhe der, por se entender que com a fertilidade destas terras abundarão essas capitanias em gado e a Fazenda Real terá um grande lucro nos dízimos’’.14
Um documento de 1703 ainda constata a continuação do fornecimento de gado do vale do São Francisco.
“Pelo dito rio ou pelo seu caminho, lhe entram os gados de que se sustenta o grande povo que está nas minas, de tal sorte que de nem uma parte lhe vão nem lhe podem ir os ditos gados, porque não os há nos sertões de S. Paulo nem nos do Rio de Janeiro.”
O gado do sul
A emulação provocada pelo alto preço do gado bovino nas zonas de mineração e as dificuldades decorrentes do fornecimento exclusivo proveniente da faixa de criação ligada à economia do açúcar, quando as catas se distendiam por longínquas áreas, trouxeram como consequência a instalação de fazendas em Minas, Goiás e Mato Grosso e a procura do gado da região sulina que os paulistas, aliás, visitavam desde os princípios do século XVII. Portugal, com o hábil gesto político da ocupação da Colônia do Sacramento, firmou sua resolução de levar as suas lindes às águas do Prata, incorporando ao patrimônio lusitano uma grande região onde abundava o gado.
São contraditórias as notícias sobre a introdução dos primeiros gados no Vale Platino. Southey assim reproduz o lendário conto das “Vacas de Gaeta”:
“Na governação de Yrala (1556) trouxe o capitão, Juan de Salazar, sete vacas e um touro da Andalúzia para o Brasil, levando-as daqui por terra, seguindo provavelmente a mesma direção tomada por Cabeça de Vaca para o Paraná defronte da foz do Mondaí. Ali construiu uma jangada para o gado, deixando um certo Gaeta que o transportasse por água para Assunção, enquanto ele seguia por terra. Uns poucos de meses gastou na viagem a jangada, cujo arrais recebeu em recompensa uma das vacas. Ainda hoje se diz proverbialmente entre os espanhóis - a vaca de Gaeta - querendo significar coisa de grande valor; mas, embora este ditado implique passar agora aquele pagamento por ter sido ridiculamente desproporcionado ao serviço, tinha provavelmente outro sentido na sua origem. Quando mais de sete vacas não havia no país, nada podia ser de tanto valor como uma delas. Em 1580 se embarcou de Buenos Aires para a Espanha o primeiro carregamento de couros, e uns trinta anos depois se levaram das cercanias de Sta. Fé para o Peru nada menos de um milhão de cabeças de gado, dizem, tão rapidamente se multiplicara este nas imensas pampas dentre Tucumã e o Prata. (Azara diz que os fundadores de Buenos Aires para ali levaram em 1580 algum gado, parte do qual se tornou bravio, multiplicando-se grandemente no país para os lados do rio Negro.) Mas a segunda fundação de Buenos Aires foi em 1546, e no mesmo ano da terceira fundação se exportava o primeiro carregamento de couros. Lapso ainda mais singular se nota no mesmo capítulo do Essai sur ''Histoire Naturelle des Quadrupedes de la Province du Paraguai, pelo referido Azara. Atribui ele a origem do gado bravo da margem do norte do Prata a algum que ele supõe terem deixado ficar os espanhóis do Paraguai, em 1552, ao serem expulsos da cidade de São João Batista, que haviam tentado fundar defronte de Buenos Aires. Esquece, porém, que esta tentativa de fundação à margem esquerda, talvez no sítio da Colônia, tivera lugar, segundo ele mesmo refere, quatro anos antes da introdução do primeiro gado da Europa. Muito antes deste tempo devia haver gado no Brasil, sendo muito mais provável que o bravio, a que alude Azara, proviesse da Capitania de São Vicente do que do Paraguai, de onde o Paraná e o Uruguai teriam oposto à migração insuperáveis obstáculos. Espontaneamente não se mete o gado à água, nem obrigam jamais a fazê-lo sem que ocorra alguma perda. Observa Do- brizhoffer que quando grandes manadas atravessam um rio, sempre se afogam mais touros do que vacas. Não tardou a haver quem por milhares e por dezenas de milhares contasse o seu gado num país onde as pastagens eram do tamanho de qualquer freguesia rural da Europa, excedendo à área de uma só estância muitas vezes a de um condado da Inglaterra. Não faltavam pessoas que possuíssem cem mil cabeças, nem Reduções que tivessem mais de meio milhão, número não desmesurado, onde mais de quarenta reses se cortavam diariamente para consumo dos moradores. Uma grande porção era furtada, outra, maior ainda, era presa dos índios hostis, tigres e cães bravos, perecendo miseravelmente um sem-número de bezerros vítimas das moscas que se pode chamar por excelência a praga do Paraguai. O gado bravo muito excedia em número, o semidomesticado. Com igual rapidez se haviam multiplicado os cavalos. A grande propagação destes animais numa terra, onde antes da descoberta nenhum existia daquela espécie, veio alterar até as características físicas do país. Desapareceram as plantas bulbosas e as numerosas espécies de pitas ou caraguatás, que antes cobriam as planícies, vindo substituí-las um pasto fino e uma sorte de cardo rasteiro assaz forte para resistir ao pisar dos animais que fora o que destruíra a primitiva ervagem.”
Virgílio Correia Filho em uma de suas Monografias Cuiabanas, assim comenta o incidente:
“O nome do esperto boiadeiro gravou-se nos fastos da pecuária sul-americana, insculpido pela pena do primeiro cronista paraguaio, que lhe historia o feito relevante.”
Enquanto proliferava, ao redor de S. Vicente, o rebanho bovino, trazido em 1534, por ordem de D. Ana Pimentel, consorte do donatário, e procurador dele, os povoadores de Assunção nutriam-se apenas do que lhes fornecia a abundante lavoura indígena.
Mas freqüentavam-se os dois povos, através dos sertões que lhes impediam o intercâmbio.
De uma feita, em S. Vicente, encontraram-se o capitão Salazar, que vinha da Espanha, e Melgarejo, proveniente de Guaíra, cujo embarque foi impedido pelas autoridades vicentinas. Jornadeariam, juntos, com suas famílias, rumo de Assunção, obscuramente, como qualquer viajante da época, se não se tivessem associado aos filhos de Luís de Góis, povoador da vila de Martim Afonso, de nomes Cipriano e Vicente, que lhes deram relevância à expedição. Empreendedores, conduziram a primeira boiada, bem modesta, em verdade, com que se deveria iniciar a pecuária no Uruguai.
Eram sete vacas e um touro, confiados ao vaqueiro Gaeta “que llegó con ellas à la Assunción con grande trabajo y dificultad solo por el interés de una vaca, que se le senalo por salario, de onde quedó en aquella tierra un proverbio que dice: son más caras que las vacas de Gaete”.
Ao comentar este passo Angelis confirma a primazia atribuída aos irmãos Góis, como implantadores da pecuária no Paraguai, embora descontando os exageros do deão Funes, que lhes ampliou a influência da iniciativa por toda a região platina.
Quanto à introdução do gado na margem oriental do rio Uruguai, estudos de Caviglia e outros atribuem-na a Hernanderías, que, em 1608, teria aí formado sua estância. Outros atribuem-na aos jesuítas, que fundaram suas missões no atual Rio Grande, em 1618. Como quer que seja, a existência de abundante gado na região do Sul e os preços elevados que alcançaram na Capitania de São Paulo justificavam o fomento de seu comércio e o seu transporte pela costa, até ao porto de Laguna e dali o seu embarque até os portos de Santos, Iguape, Parati e Rio de Janeiro.
Antes de existir na parte oriental do continente de São Pedro qualquer núcleo de povoação, que só se fundou em 1725, havia um frequente comércio de gado entre os habitantes primitivos das terras do Rio Grande e os moradores de Laguna. Esse comércio era autorizado e mesmo recomendado pelo governo da Capitania de São Paulo, que estendia a sua jurisdição por todo o país até o Rio da Prata.16
O ato do governo de São Paulo, de 17 de janeiro de 1725, demonstra que o comércio de animais com os índios constituía já uma séria preocupação para os homens de negócio da Colônia.17
Encontramos, ainda em 1725, o bando de D. Rodrigo César de Meneses permitindo o transporte de gado vacum do sertão de Curitiba e dos campos de Vacaria para a zona de mineração.18
Para atender ao incremento do comércio do Sul, urgia a abertura de um caminho por terra, unindo os campos do Rio Grande à grande zona consumidora. Foi o paulista Bartolomeu Pais de Abreu quem primeiro propôs ao governo, mediante determinadas mercês, ligar São Paulo ao Rio Grande. Não apoiado pelo governador Rodrigo César de Meneses, somente em 1727 tal cometimento pôde ser levado a efeito por Francisco de Sousa Faria, quando do governo de Antônio Caldeira da Silva Pimentel.
Outorgou-lhe este governador apoio e favores; e, com o auxílio de Cristóvão Pereira, subiu Faria pelo vale do Araranguá, rompendo, com grandes dificuldades, a serra do Mar, e encontrando, nos campos de Lajes e São Joaquim, pastos admiráveis, com grande porção de gado aí lançado pelos tapes, das aldeias jesuíticas. Em 1730, alcançou Faria os campos de Curitiba. Nessa região, explorada pelos paulistas que iam ali à cata de ouro, desde meados do século XVIII, Gabriel de Lara fundara, em 1614, a Vila de Curitiba.
Foi ainda Cristóvão Pereira quem retocou a estrada e levou por ela a primeira tropa que chegou a São Paulo em 1733.
Sul de Mato Grosso
Nos campos de Vacaria, no sul de Mato Grosso, a criação do gado bovino, originário das estâncias dos missionários paraguaios, tinha assumido um grande desenvolvimento. Dele também lançaram mão os paulistas.
Estabeleciam-se, assim, as correntes comerciais de gado pelo interior do Brasil, funcionando a zona de mineração como um providencial elo de interesses econômicos, unindo, pelo sertão, os homens do Norte, do Centro e do Sul.
Foi essa mineração que também provocou o rápido crescimento da população brasileira, que, em um século, decuplicaria.
Com a ocupação definitiva da Capitania de São Pedro e dos campos da Colônia do Sacramento, registrou-se ainda um fato que bem demonstra a relevância dos fatores econômicos. Devido ao clima, aos pastos, às facilidades de locomoção, o gado se desenvolveu nos campos do Sul, ainda mais facilmente do que no Norte. O preço da carne, na costa nordestina, sempre foi elevado.19
Tal circunstância permitiu o desenvolvimento das indústrias de charque, nas regiões sulinas, para o suprimento, por via marítima, das populações litorâneas do Centro-Norte brasileiro. No Norte, já era conhecida a carne-de-sol, carne-seca ou carne-de-vento, particularmente nos sertões do Ceará. Passaram a consumir em grande escala a carne de charque, preparada com sal e de maior duração que aquela.
As leis econômicas foram, assim, delimitando, dentro das fronteiras brasileiras, as zonas de preponderância de gado e de melhor carne bovina. As dificuldades de transportes e o aumento de população promoveram, também, a fundação de fazendas de criar nas Capitanias de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, regiões que passaram, com o correr do tempo, a ser fornecedoras do gado em pé para o consumo dos grandes centros populosos, Rio de Janeiro e São Paulo.
No comércio bovino, como na hegemonia econômica do país, perdia o Norte a sua predominância inicial. O comércio do couro e os níveis de preço de gado refletiam, de seu turno, tal alteração.
Preços do gado bovino
No século XVI os primeiros bois valiam, na Bahia, 100$000, normalizando-se, depois, os preços para 10$000 a 12$000 por cabeça, ou sejam quase 2:000$000 em valor aquisitivo de hoje; e em Pernambuco o dobro, tal a procura que havia pelos engenhos (Warden).
Em 1618, nos Diálogos das Grandezas do Brasil se lê que no Norte uma vaca valia de 4$000 a 5$000; um boi de carro de 6$000 a 7$000 e um boi já feito de 12$000 a 13$000, valores que, multiplicados por 228, coeficiente de correção para o poder aquisitivo de hoje, representam:
4$000.................................. 912$000
5$000............................... 1:140$000
6$000............................... 1:368$000
7$000 .............................. 1:596$000
12$000 ............................ 2:736$000
13$0000 .......................... 2:964$000
Esta informação confirma a de Warden, para fins do século XVI. No entanto, nas mesmas épocas, em inventários paulistas, verificamos que uma vaca valia 1$000 e um boi capado 2$000, isto é, a quinta ou sexta parte do valor do gado do Norte.
Em 1711, segundo Antonil, uma rês ordinária valia, na Bahia, de 4$000 a 5$000; e nas Jacobinas centro de feiras de gado, valia de 2$500 a 5$000, representando isto 200$000 de hoje, para a rês ordinária, 350$000 para os bois.
“Porém nos currais do rio de São Francisco os que têm maior conveniência de venderem o gado para as Minas, o vendem na porteira do curral pelo mesmo preço que se vende na cidade.”
Era pequena a diferença quanto às boiadas de Pernambuco e do Rio de Janeiro.
No entanto, em 1700, na zona de mineração, chegou-se a pagar 100 oitavas por um boi, o que representa mais de 50 libras esterlinas, ou sejam cerca de 10 contos de réis em poder aquisitivo de hoje.
Em 1768 já valia o boi na Bahia de 3$200 a 4$000, segundo carta do Marquês de Lavradio, o que representa 160$000 em poder aquisitivo de hoje.
Em 1800, em Goiás, valia o gado 4$800 quando vendido para regiões do Sul e 1$500 quando vendido para regiões do Norte.
Nessa mesma época, já era muito abundante o gado no Rio Grande do Sul, onde, nas estâncias, o preço da rês girava em torno do mil-réis (50$000 de hoje).
Em 1828, Luís d’Alincourt, no seu recenseamento econômico de Mato Grosso, registrava, para o custo de um boi gordo, de 4$800 a 6$000, e se comprado diretamente na fazenda, de 2$400 a 3$000. Uma vaca, de 2$400 a 3$000, mas, nas fazendas, 1$700. Um boi manso de carro, 7$200.
Raças, pastos e climas
O gado colonial originou-se das raças da Península Ibérica, trazidas pelos portugueses, acrescido dos contingentes do Vice-Reinado do Peru, via Paraguai, dos da região platina, via Missões, Colônia do Sacramento e, finalmente, da contribuição holandesa e francesa, durante a permanência destes europeus no Brasil.
Dos cruzamentos livremente realizados, numa verdadeira confusão zootécnica, se fixaram, no entanto, principalmente em função do clima e natureza dos pastos, alguns tipos nacionais.
Apontam os técnicos como característicos o caracu, o franqueiro ou pedreiro, o curraleiro, o bruxo, o mocho e o pantaneiro ou cuiabano.
Todos esses produtos são resultados de uma transação entre os cruzamentos dos primitivos espécimes, com as condições climatéricas e a natureza das forragens. Não houve o trabalho de seleção ou de apuração da raça mais apropriada ao meio, o que concorreu para a sua fácil degeneração.20
Não obstante as correções de altitude e a boa qualidade de muitas pastagens naturais, a geografia econômica nos ensina que as regiões sulinas são as mais propícias ao desenvolvimento do gado bovino de corte, o mais procurado nos grandes centros consumidores.
No caso brasileiro, contribuíram, ainda e decisivamente, para o predomínio pecuário do Sul sobre o Norte, o aparecimento da mineração e o declínio da indústria açucareira.
No Sul, em zona temperada, o gado pôde ser continuamente melhorado pela importação de espécimes selecionados dos climas temperados, em que a criação alcançou um grande adiantamento. Às mais vantajosas condições mesológicas, juntaram-se as possibilidades da contínua melhoria pela atuação do homem.
A evolução do comércio dos couros teve marcha semelhante. Os do Sul começaram a surgir, fazendo concorrência vitoriosa de preço e qualidade aos do Norte, e influindo, talvez imperiosamente, na expansão para o Sul, resolvida pela Coroa portuguesa.
Época do couro no Sul
A região austral experimentou, como a do norte, a influência da abundância do couro em todas as atividades dos seus colonizadores.
Contreiras Rodrigues, em seu valioso trabalho sobre a Economia Colonial.,21 faz a propósito as seguintes considerações: “quando começou a ocupação do Rio Grande, procedente de Laguna e de origem paulista (1715) com João de Magalhães e Francisco de Brito, seu sogro, já estava o extremo sul do país povoado de gado vacum e cavalar, sobretudo na campanha pertencente ao Sacramento e nas estâncias e vacarias ligadas aos Sete-Povos. Nas estâncias estavam os rodeios de gado costeado pelos trabalhos da indiada, em pastorejos, tropeadas e mangueiras. Esta palavra deriva precisamente da manga ou da taipa, em forma de espiral, com a entrada bem ampla, que construíam os campeiros, quando pretendiam agarrar e domesticar as pontas de gado bravio da circunvizinhança. Na manga o encerravam todos os dias até perder a querência dos banhados e matos e agarrar nova querência em campo limpo.
Mais tarde a espiral foi substituída pelo círculo perfeito com uma entrada ladeada de duas linhas retas convergentes a ela, em forma de ângulo muito aberto. Estas linhas conservaram sempre o mesmo nome de mangas e o círculo adquiriu a denominação de mangueira. Isto nas estâncias, onde se queria o gado manso; mas nas vacarias, ele se conservava alçado e sem dono. Já nesse tempo a vaca de Gaeta se tinha multiplicado aos milhões. “Os campos não têm fim”, diz Simão de Vasconcelos, “o número de gado são milhões, donde só pelos couros se mata, e se carregam muitos navios deles, deixando a carne por inútil.” No dizer deste cronista houve também no extremo sul a idade do couro. Não é exagero afirmar que essa época do couro no extremo sul começada com a fundação da Colônia do Sacramento (1680), dominando a colonização jesuítica das Missões, passou à civilização portuguesa destas regiões, no terceiro século, e prolongou-se até fins do IV século da existência do Brasil. De 1680 a 1880, nas estâncias do sul, desde as vacarias do Mato Grosso até as vacarias do Rio Grande e do Sacramento, cosia-se a existência com tentos de couro. Tetos de macega, ou de Santa Fé, apertados com couro cru, portas e janelas de couro, bancos e cadeiras de couro, botas de couro cru de garrões de animais cavalares sacrificados só para isso, os correames, os arreios, as camas, as pirogas de passar os rios que não davam vau, às quais chamavam de 'pelotas', segundo atestam hoje os nomes de dois rios - Pelotas - que interceptam a primitiva estrada dos tropeiros e dos guerreiros daqueles recuados tempos, o rio que liga as lagoas Mirim e dos Patos e o rio Uruguai na sua parte mais alta. Faziam os campeiros uma armação de madeira, em forma de semicírculo e bem adaptado a ela secavam o couro de uma rês, que suportava perfeitamente o peso de um homem com os arreios. Atirava o campeiro o seu cavalo ao rio, e preso ao rabo fazia-se rebocar pelo bucéfalo resfolegante até a margem oposta. É fácil de imaginar o espetáculo bárbaro de um exército ou de uma tropa nesse transe. Baús de couro e até obras de arte primorosas de couro cru.”
O comércio do couro
Nessa época em que o animal era o principal veículo de transporte, em que a vida urbana era diminuta, fazia a população rural grande consumo do artigo, em múltiplas utilidades. Não se conheciam então tecidos impermeáveis, papelões e outros produtos que eram supridos pelo couro.
No Brasil exportaram-se couros e peles durante todo o período colonial. Segundo Antonil, o couro em cabelo, valia, em 1710, 50% do preço do boi. Aqui, além dos usos mais conhecidos, era ainda o artigo empregado, em larga escala, para encourar o rolo de fumo destinado à exportação e, mais tarde, foi utilizado para o fabrico de surrões para acondicionamento do açúcar e outros produtos. Negociavam-se couros salgados, secos, atanados e meios (meio-couro) de sola.
A sua procura era tão intensa e tão grande movimento teve a criação nas regiões platinas, que ali, antes do estabelecimento da indústria do charque e dos modernos frigoríficos, matava-se o gado só para aproveitamento do couro.
Antonil (1711) dá o orçamento do preparo do artigo curtido e o custo final do meio de sola posto em Lisboa:
Vale cada couro em cabelo .....2$100
De o salgar e secar.....................$200
De o carregar ao curtume .........$040
De o curtir.................................$600
Importa tudo............................2$940
Um meio de sola vale..............1$500
De o carregar à praia.................$010
Do frete do navio.......................$120
De descarga para a alfândega....$010
Por todos os direitos..................$340
Importa tudo............................1$980
Não tardou que os platinos viessem fazer concorrência, no Rio de Janeiro, ao couro nacional. Acorreu, solícito, o Governo português em defesa do Erário Real e um Alvará de 1680 proibia o consumo de sola no Brasil que não fosse fabricada dentro do reino. É de supor que a abundância e o baixo preço do artigo, na bacia do Prata, tivessem também influído no ânimo real para a instalação da Colônia do Sacramento, nesse mesmo ano.
Todas as fazendas de criar pagavam dízimos de acordo com a sua importância e produção. Na nova Colônia do Sacramento, a maioria dos couros exportados, era, porém, proveniente de gado bravio caçado nos pampas, quando não do contrabando das possessões espanholas para ali levados pelos índios. Escapavam assim aos dízimos; daí a solicitude do Governo Real criando, em 1699, os quintos do couro da Colônia do Sacramento, e determinando que todo o artigo ali produzido fosse exportado para o Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano lançavam-se novos impostos sobre os couros importados de Buenos Aires.
Em 1702 é adjudicado o contrato das vendas dos quintos dos couros reais por 6 anos a 60.000 cruzados anuais, mais de 1.000 contos de réis em poder aquisitivo de hoje.
Em 1729 já o couro valia menos e a adjudicação foi feita na base de 500 réis, cruzado e quarto, por peça exportada.
Em 1705, o contrato dos quintos dos couros era arrematado pelo tropeiro Cristóvão Pereira de Abreu. Em 1732 o ajuste estabelecia 550 réis por couro de boi e 400 réis pelo de vaca ou novilha.
Em 1747 as rendas dos quintos dos couros da Colônia do Sacramento subiam a mais de 40.000 cruzados anuais.
Em 1758, por decreto de 8 de abril, proibiu-se o despacho nas alfândegas de “solas e atanados fabricados fora desse reino”, sob a alegação de que as proibições anteriores relativas ao uso de sola estrangeira não estavam sendo devidamente cumpridas.
O comércio do couro brasileiro continuava importante. Em 1759 a frota da Companhia de Comércio do Pará-Maranhão levava: 171.000 meios de solas, 96.640 couros em cabelo e 29.000 atanados.
O valor aproximado desse carregamento seria de 200.000 libras esterlinas, correspondentes a mais de 40.000 contos, poder aquisitivo atual. Nesse carregamento incluíam-se principalmente artigos de outras capitanias e a produção de mais de um ano.
O Alvará de 14 de abril de 1757 constituiu ainda uma demonstração da atenção que esse comércio estava merecendo da metrópole; essa ordem real estabelecia limite de fretes para o reino, “sem diferenças de portos”. Da Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco, os máximos.
Para couro em cabelo........................................................ 300 réis
Para atanados..................................................................... 400 réis
Para meio de sola............................................................... 200 réis
Em 1761 um decreto real procurava favorecer a exportação desses artigos para o exterior, isentando-os de direitos de entrada e de saída. Em 1766 os fretes para os reinos foram reduzidos para:
Couro em cabelo e atanados............................................... 250 réis
Meio de sola........................................................................150 réis
Preparo e exportação
Roland de La Platière, em interessante trabalho publicado em Paris, em 1790, faz uma análise dos processos de criação de bovinos no Brasil, da preparação e comércio de couros aqui e no Prata.
Acentua que os couros do Norte eram de preferência salgados, enquanto que os do Sul, Rio de Janeiro e Buenos Aires eram secos, influência talvez da carência do sal no Sul.
Para secá-lo, depois de retiradas as patas, parte da cabeça e rabo, era o couro limpo, esticado, estaqueado e exposto ao sol. O seu preparo requeria cuidados especiais, visando à uniformidade na espessura e ao aproveitamento da maior área; para transportá-lo, dobravam-no ao meio, no sentido do maior comprimento; os couros salgados eram dobrados pelo lado interno e empilhados.
Da Bahia e Pernambuco, exportavam-se também atanados de vacas e vitelas, principalmente para a Itália.
La Platiére acha que no Brasil se curtia mal, empregando-se matéria-prima inferior. Elogiava a cola forte, feita na Bahia, com os resíduos dos couros.
Em Portugal consumia-se o couro verde, sendo dali reexportado o brasileiro.
Couros secos
Dos secos, eram mais estimados os de Buenos Aires, melhor talhados e preparados; tinham o pêlo uniforme, ausência de furos no pescoço e cabeça de pequeno tamanho. Esta última circunstância era valiosa, e explicava a desvalia de certos couros; é uma parte que curte mal, e o couro era vendido a peso.
O seco era, no entanto, atacado por um inseto, a “Polilla”, que morre nos climas frios. Oferecia ainda o risco de aparecer com furos, quando submetido ao banho de cal para perder os pêlos: atribui-se tal defeito à possível fervura ao sol de bolhas de sebo impregnadas no couro e que o destruíam nesses pontos.
Rouen, Amsterdã e Flandres eram os principais mercados para o artigo.
Rouen, porto distribuidor para a França, procurava peças de 32 libras (15 quilos). Amsterdã e Flandres preferiam-nas mais leves, de 27 libras, tendo em vista menor capital de movimento na exploração dos curtumes.
Valiam nessa época os couros secos, em Lisboa:
Peça na base de 32 quilos a 65 réis por libra................... 2 080 réis
Frete do Brasil................................................ ................... 260 réis
Despesas de embarque........................................................ 140 réis
Total...................................................................................2.480 réis
Couros salgados
Nessa espécie, os mais afamados eram os de Pernambuco. Procuravam-se os mais pesados, bem descarnados, sem patas compridas, bem espessos e de bom pêlo. Negociavam-se por peças, sendo a Itália, Flandres e Holanda os seus melhores mercados. Em Rouen, consumia-se pouco desse artigo, do qual exigiam o peso mínimo de 31 libras.
Seu preço era de:
No Brasil:
2.300 a 2.400 réis, peça de 31 a 32 libras.
Em Lisboa:
Valor posto a bordo em porto brasileiro.......................... 2 350 réis
Frete................................................................................... 260 réis
Despesas de reembarque.................................................... 160 réis
Total..................................................................................2.770 réis
Os couros secos eram mais baratos pela maior abundância oriunda da criação argentina. Os salgados, quase só brasileiros, tinham menor produção. Havana oferecia couros salgados de pior qualidade que os brasileiros.
Do Brasil se exportava muito couro seco pelo porto do Rio, originário, em boa parte, do Rio Grande.
La Platière atribuía ao Brasil uma exportação anual de 100 mil peças. É pouco. O balanço do comércio do reino de Portugal, para o ano de 1777, que a Biblioteca Nacional possui, em manuscrito, (1.13.2.52) acusa uma exportação de 288.069 peças, valendo acima de 561 contos de réis, ou sejam, mais de £ 150.000. Já mencionamos uma exportação de cerca de 200.000 peças em 1759.
Seja como for, não será exagerado avaliar-se em mais de £100.000 anuais a exportação do couro brasileiro durante o século XVIII.
Computando-se o consumo de carne no país, o uso do gado bovino como elemento trator, o largo emprego industrial do couro e os aspectos sociais e políticos decorrentes da atividade pecuária, compreende-se o valor da contribuição anual e permanente dessa exportação e os benéficos proventos que dela resultaram para a formação política e econômica nacional.22
A Colônia de Sacramento. As fronteiras meridionais
Uma valiosa conseqüência política do comércio de gado foi a definitiva integração de vastas regiões sulinas ao território pátrio. Em suas batidas à cata do gentio, já freqüentavam os paulistas, desde o início do século XVII, e, talvez, desde fins do XVI, as regiões da lagoa dos Patos. Ficou célebre a bandeira Aracambi em 1635. Em 1660, fundou-se a vila de São Francisco. Em 1675, ocupou-se a ilha de Santa Catarina e, em 1676, Domingos Brito Peixoto fundou Laguna. A ocupação desses portos se deve, principalmente, à necessidade da expulsão definitiva dos robusteiros, que se haviam instalado numa faixa da costa não policiada, quer por espanhóis, quer por portugueses.
A preocupação da Coroa de manter a primazia no comércio de couro, aliada à de estender os seus domínios até ao Prata, levaram-na, deli- beradamente, a fundar a Colônia de Sacramento. Para esse fim, D. Manuel Lobo contou com o apoio e auxílio dos paulistas e dos santistas.
O governador de Buenos Aires, numa violenta investida, destruiu a Colônia, em 1681. Portugal, forte na Europa, exigiu a restituição da Colônia à Coroa portuguesa, e de 1682 a 1704 esteve ela incorporada ao Estado do Brasil, alcançando apreciável desenvolvimento econômico.
Retomada pelos espanhóis, foi de novo restituída a Portugal pelo Tratado de Utretch, e de 1715 a 1762, exatamente na época do apogeu da mineração, esteve na posse dos portugueses. Nos campos que a ela ficaram incorporados, e que abrangiam grande parte da atual ilação uruguaia, muito se desenvolveu a criação de bovinos e muares.
Em 1725, João de Magalhães fixou-se no Rio Grande do Sul com fazendas de criar. Dessa data em diante, estimulados pela procura sempre crescente de gado, estabeleceram os portugueses duas cunhas de penetração: uma, partindo das margens do Patos, a outra, do Sacramento, visando à obtenção de maior área possível e a incorporação à Coroa portuguesa de novas terras de criar.
O Tratado de Madri, de 1750, as guerras do Sul de 1762 a 1777, o Tratado de São Ildefonso, de 1778, concorreram para que perdêssemos a Colônia de Sacramento; mas, em compensação, ficaram integradas no território brasileiro grande parte do atual Rio Grande do Sul e grandes regiões do Centro e Norte do País.
A incorporação das missões jesuíticas da margem oriental do Uruguai, que deveria ser feita pelo tratado de 1750, e que motivou as guerras contra os Guaranis, promovidas de 1753 a 1756 pelos exércitos aliados portugueses e espanhóis, só ocorreu de fato, definitivamente, em 1801.
O fundamento econômico da expansão no Sul foi, pois, o gado e a sua valorização, provocada pela mineração e pelo crescente consumo dos couros.
Para se aquilatar da importância da Colônia de Sacramento, basta verificar os contratos de arrendamento dos quintos do couro.23
As regiões do Sul tornaram-se as fornecedoras por excelência do gado muar e cavalar, cujo mercado crescera vertiginosamente com a indústria da mineração.
O gado que partia dos campos de Sacramento invernava, a princípio, nas imediações do Rio Grande e Pelotas e, depois, nas cercanias de Laguna, onde embarcava. Mais tarde, subia pela estrada de Ara- ranguá e invernava nos campos de Santa Catarina e Paraná, antes de chegar a Sorocaba, a caminho das Minas Gerais. Posteriormente, usava o caminho direto do interior, a que já aludimos.
Esse caminho atravessava os campos de Vacaria, depósito de gado mandado fazer pelas Missões jesuíticas, onde era criado à lei da natureza, servindo de reserva eventual às necessidades das populações. Campos idênticos foram encontrados ao sul de Mato Grosso. De todos eles tiraram grande proveito os colonizadores portugueses.
Gado cavalar
Nesse tempo, não havendo estradas de rodagem e escasseando os meios de transporte, o cavalo exercia relevante função na evolução ecônomo-social. Daí a preocupação da sua criação no Brasil, onde representava o principal meio de condução e o elemento indispensável nas vilas, nos engenhos, nas fazendas de criar ou no comércio de gado. A sua importância ainda mais se avolumou com a penetração nos sertões do Nordeste, do Centro e do Sul.
Criavam-se cavalos em todas as Capitanias, principalmente no interior do Maranhão e Piauí. Relatam as crônicas o grande apreço em que eram tidos os animais de raça, pelos senhores de engenho.
Indispensáveis às forças armadas, Portugal vinha também buscá-los aqui, durante o século XVII e parte do XVIII, para as suas campanhas e montarias na África. Abundam as Cartas Régias incentivando esse comércio. Tornou-se obrigatória a inclusão de cavalos na carga de todos os navios que do Brasil demandassem Angola. A Carta Régia de 14 de dezembro de 1666, participando a vitória do governo de Angola, ordena que para ali se mandasse o maior número possível de cavalos. A de 16 de setembro de 1668 ordena que os navios que saíssem do Estado do Brasil para o Reino de Angola levassem na razão de 100 toneladas de arqueação, 2 cavalos para os serviços das tropas. Cartas Régias e Provisões de 1706, 1707, 1712, 1715, 1719, 1720, 1721, 1722, 1726, 1753, 1754, repetem reiteradamente a recomendação de que não partisse embarcação alguma para Angola sem conduzir cavalos. A de 1726 determina que quando algum navio, por sua pequenez, não pudesse transportá-los, fosse obrigado o seu senhorio a conduzir, por sua conta, em outra qualquer embarcação, o cavalo que não coubera na sua.
Com a instalação da nova Colônia de Sacramento, surgem também as Cartas Régias determinando a remessa para ali de grande cópia desses animais (1694-1699).
A mineração. Tropas e tropeiros
A mineração ia promover a fundação das primeiras cidades no interior do Brasil. Pela natureza da indústria, exigia a concentração de massas consideráveis de mineradores em determinados pontos. Daí surgiram os núcleos de habitações, as vilas e as cidades. A indústria da criação, anterior àquela na ocupação do interior do país, atuava, no entanto, como elemento de rarefação de populações.
Essas aglomerações de mineiros exigiam vultosos transportes de artigos para os seus consumos e instalações; na própria exploração das minas usava-se gado muar em abundância e o transporte do ouro, com sua comitiva de guardas, incrementava a sua utilidade.
Acentuou-se, então, a vantagem do emprego das mulas, surgindo a figura do tropeiro que, durante dois séculos, exerceria relevante função nas ligações de nosso interior, onde até hoje, em vários lugares, é o elemento indispensável à manutenção das comunicações.
Dos campos da Colônia de Sacramento, dos de Viamão, das missões espanholas, acorriam as tropas e muares, transportadas via Laguna. Em 1738, o grande tropeiro paulista, Cristóvão Pereira, que, três anos antes, socorrera militarmente a Colônia de Sacramento, na sua épica resistência contra as acometidas espanholas, abriu o caminho direto pelo interior, ligando os campos de Curitiba, através das coxilhas rio-grandenses, até às margens do Prata.24
Partindo do Rio Grande do Sul, “das alturas de S. Antônio da Patrulha declinaram para oeste, por S. Francisco de Paula, pontas do rio das Antas, Vacaria, primeiro passo do rio Pelotas (Uruguai superior), Lajes ou vacaria catarinense; e daí em diante pelo caminho de Francisco Faria até o Iguaçu e pelos campos do Paraná, seguindo, talvez, a trilha dos bandeirantes, ou pontos de Tibaji, Itararé e Sorocaba, o ponto terminal dessa viagem extenuante de dois mil quilômetros mais ou menos ao passo das bestas. Iam esses pacientes tropeiros fazendo invernagens pelo caminho, nos pontos mais indicados. Antes de atravessarem a barra do rio Grande, que deveria exigir enorme sacrifício aos animais e depois de atravessarem também a nado o Pelotas do Sul; depois, outra inverna gem na vacaria rio-grandense, antes de atravessarem o Pelotas do Norte; depois, nos campos do Paraná, aproveitando as águas do Tibaji, e por fim em Sorocaba, a grande feira do terceiro e princípios do quarto séculos da nossa vida de nação”.25
O comércio de tropas no Sul tomou cada vez maior incremento, alcançando as boas mulas o preço de 12$000, equivalente, a mais de 500$000 em moeda de poder aquisitivo de hoje. Em consequência, começou a perecer o comércio de cavalos e as fazendas de sua criação nos sertões da Bahia, do Maranhão e do Piauí sentiram logo a sua repercussão, não encontrando o fisco, no ano de 1757, arrematadores para os seus dízimos.
Surgiram os protestos dos criadores. A Carta Régia de 19 de junho de 1761 procurou sanar bruscamente esse mal. Ei-la:
“Conde de Bobadela, Mestre-de-Campo, General dos Meus Exércitos, Principal Comissário e Plenipotenciário da Divisão dos Limites da América Meridional das partes do Sul, Governador e Capitão-General das Capitanias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Amigo. Eu el-Rei vos envio m. saudar como aquele que Amo. — Sendo-me presente que pelo costume que de anos a esta parte se tem introduzido no continente do Estado do Brasil de fazerem os moradores dele os seus transportes em machos e em mulas deixando por isso de comprar os cavalos; de sorte que se vai extinguindo a criação deles; por não terem saída, em grave prejuízo de meu Real serviço, e dos criadores, e Bem Comum dos lavradores dos sertões da Bahia, Pernambuco e do Piauí. E atendendo ao que por eles me foi representado: Sou servido ordenar, que em nenhuma cidade, Vila ou lugar do Território dos vossos Governos se possa dar despacho por entrada, ou por saída a machos ou mulas. E que antes pelo contrário, todos e todas as que neles se introduzirem depois da publicação desta, sejam irrimissivelmente perdidos e mortos pagando as pessoas em cujas mãos forem achados os sobreditos machos ou mulas, a metade do seu valor, para os que os descobrirem. Nas mesmas penas incorrerão as pessoas que de tais cavalgaduras se servirem ou seja em transportes, ou em Cavalaria, ou em carruagens, depois de ser passado dum ano, que lhes concedo para o consumo dos que atualmente tiverem já, sendo matriculados para se conhecerem. E para obviar as fraudes, que se podem maquinar contra esta Minha Real Determinação, Vos ordeno que logo que receberes esta, e depois de a fazeres publicar por Editais afixados nos lugares públicos dessa capital, e das demais povoações dessas Capitanias: Passeis as ordens necessárias para que se faça um exato inventário de todos os machos e mulas que se acham nos distritos desses Governos com a declaração das suas idades e sinais para por eles serem confrontados os que de novo aparecerem; e se proceder na execução desta Minha Real Determinação contra as transgressões desta pela prova que resultar das ditas confrontações. O que tudo executareis e fareis executar com a exatidão que de Vós confio. Escrita no Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, a 19 de junho de 1761. (a) Rei”.
Tão absurdas disposições não poderiam prevalecer por irem de encontro a irreprimíveis determinismos econômicos. Cartas Régias de 1764 procuraram atender à reação verificada, estabelecendo nas fazendas a obrigação de uma quota mínima de criação de cavalos, estimulando, ao mesmo tempo, a de muares dentro das fronteiras portuguesas, dificultando a entrada dos de procedência espanhola.26
Era avultada essa importação, pois a criação nacional não supria suficientemente à crescente procura.27
Mas, à medida que se concentravam as populações da zona de mineração, era natural que aí se fundassem estabelecimentos agrícolas e principalmente fazendas de criar para atender às crescentes solicitações de gado vacum e muar.
Os registros
Surgiu, então, outro aspecto da questão. Foram os protestos dos governadores das Capitanias de São Paulo, receosos do decréscimo das rendas arrecadadas nos registros de Curitiba pela passagem do gado muar, cujo comércio ameaçava diminuir com o declínio da mineração e com o estabelecimento da criação na própria região das minas.
A troca de correspondência entre D. Luís Antônio de Sousa, capitão-geral da Capitania de São Paulo e o vice-rei do Estado do Brasil, de 1769 a 1773 , extraída dos Documentos Interessantes do Arquivo do Estado de São Paulo, elucida essa circunstância.28
Não obstante os receios manifestados pelo fisco, incrementou-se sempre a corrente de comércio do grande agente de transporte do interior do Brasil.
Mesmo após a Independência, houve vários anos em que a maior renda da Capitania de São Paulo provinha dos registros do Rio Negro, Guarapuava e Sorocaba.29
Para se aferir da repercussão política de tal comércio, basta citar que uma das causas apontadas para a Revolução dos Farrapos, em 1835, fora a desses direitos de entrada do gado rio-grandense nas outras províncias, julgados excessivos, como de fato o eram, pelos criadores gaúchos.30
E todos os centros de comércio do interior, onde a distância ou acidentado do terreno não permitiam o carro de boi, lá ia o tropeiro preencher a sua insubstituível função. Avolumou-se de tal forma o comércio de mulas, que se instituiu a grande Feira de Sorocaba, cuja importância culminou em princípios do século XIX e onde se reuniam representantes do Norte, Nordeste, Centro e Sul brasileiros.
Outras raças e espécies de gado
Assim como os bovinos, os eqüinos eram de origem peninsular, onde predominavam as raças galegas, célticas, lusitanas e andaluzas, com evidente mescla de origem árabe.
Os asininos eram espanhóis e africanos.
Importaram-se também, na Colônia, os suínos, ovídeos e caprinos, em todos predominando as raças ibéricas.
Desse gado menor, o suíno foi o que tomou maior desenvolvimento.
Feiras de gado
Graças à intensificação do comércio de gado e ao aumento das populações, a partir do século XVIII, foram surgindo várias feiras: de Santana, Curralinho e Candeúba, na Bahia; Itabaiana e Brejo d’Areia, na Paraíba; Campos de Santana e São Cristóvão, no Rio de Janeiro; Itapemirim-mirim, no Maranhão; Três Corações do Rio Verde, Benfica e Sítio, em Minas; Sorocaba, em São Paulo. Esta, a mais importante feira de gado em fins do Brasil colonial, foi descrita por Saint-Hilaire:
“Grande parte dos animais muares da feira é trazida da província do Rio Grande. Essas tropas, manadas de bestas bravas, põem-se em marcha nos meses de setembro e outubro, época em que os pastos começam a reverdecer. Alguns negociantes fazem suas tropas viajar continuamente, chegando nos meses de janeiro, fevereiro e março. Outros deixam-nas se refazerem um ano inteiro nas proximidades de Lajes, em Santa Catarina. Os negociantes de Minas compram em Sorocaba suas mulas e as conduzem ao seu país, onde fazem amansá-las. Há anos que vêm 30.000 mulas do Rio Grande.
“Este comércio proporcionava ao governo somas consideráveis. Em 1820 pagavam-se 3$500 por mula vinda do Sul. Dessa importância, 1$000, pertencentes à província do Rio Grande, deveriam ser pagos no registro de Santa Vitória (margem do rio Pelotas), na divisa da Capitania. Para facilitar o comércio, permitia-se que tudo fosse pago em Sorocaba. Em Santa Vitória, dava-se aos negociantes permissão de passagem, recebendo estes uma guia em que se achavam registrados o número e natureza dos animais, mediante a entrega de obrigações, tiradas em triplicatas, do valor do imposto. Uma dessas vias era enviada ao recebedor de Sorocaba, outra ao governador da Província do Rio Grande, a terceira à Junta da Fazenda Real, em São Paulo, que deveria fiscalizar essa arrecadação, recebê-la do coletor de Sorocaba e liquidá-la com o governo da província do Rio Grande, por intermédio da Junta da Fazenda Real local. Dos 2$500 restantes, 1$250, os chamados “direitos do contrato”, eram arrendados cada três anos. Os últimos 1$250 eram chamados “direitos da casa doada”. Tinham sido originariamente outorgados a favor de quem havia aberto a estrada de São Paulo ao Sul. Mais tarde passou para a receita comum da província.31
“Quando os animais entravam em Minas Gerais, pagavam novos impostos.”
“As mulas sendo, na maior parte do Brasil, os únicos meios de transporte, gravá-las de tal maneira era por certo pouco favorecer o comércio e a agricultura, que, nesse país, necessita de tanto encorajamento”, comenta o sábio francês.
Réclus, depois de admitir que chegavam a se reunir 200.000 animais na feira anual de Sorocaba, salienta as palavras de Eduardo Prado sobre o papel que desempenhou na consolidação da unidade nacional, em virtude da reunião de interesses econômicos e comerciais, que logrou promover. A decadência de Sorocaba é atribuída, por esse escritor, ao aparecimento das estradas de ferro.
Aspectos da vida do tropeiro e do comércio de Sorocaba, no tempo da feira, são ainda focalizados por Abreu Medeiros, em suas Curiosidades Brasileiras.32
O consumo do sal
O sal, elemento essencial para a alimentação humana e produto indispensável para a criação foi desde os primeiros tempos importado de Portugal. No entanto, os forais concedidos por D. João III aos colonos e aos futuros moradores, nas várias capitanias, garantiam “a isenção para sempre de quaisquer direitos de sisas, impostos sobre o sal ou outros quaisquer tributos não constantes da doação do foral”.
No período da guerra holandesa, descobriram-se salinas em Mossoró e no Ceará. No vale do rio São Francisco, apareceram os barreiros salgados que poupavam aos criadores as elevadas despesas com o produto.
Na descrição do Estado do Maranhão, Pará, Corupá e Rio das Amazonas, de Maurício de Heriarte (1662 - 1667), lê-se na parte referente ao Maranhão:
“Só em Jaguapipora se conserva uma aldeia grande (de índios), de que é principal o Copaúba, que tem o cuidado de beneficiar umas grandes salinas, que estão no Maracaná, ou Guatapu, que dão quantidade de sal, que faz por conta de S. Majestade.”
Segundo Soutomaior, a renda das salinas, no Maranhão, produzia 2.000 cruzados (primeira metade do século XVII). Aí, sob a direção dos jesuítas, chegaram os índios a retirar cerca de 5.000 alqueires de sal.
Com o desenvolvimento da Colônia, começou a se tornar interessante para o Erário Real o monopólio de sal no Brasil e, a exemplo dos demais, o seu estanco era geralmente arrematado por contratadores, que se obrigavam a uma contribuição anual fixa à Fazenda Real.
A metrópole “proibiu que as águas salgadas se fizessem secar, para com isso obter o sal, em prejuízo das marinhas de Setúbal, da Alverca ou da Figueira. As primeiras proibições dataram de 1665; mas a Carta Régia de 28 de fevereiro de 1690 dispôs positivamente que, havendo Jacques Granate arrematado o contrato do sal para o Brasil, ficava neste país proibida a fatura dele, e até o aproveitar-se do que a natureza produzisse, coalhando-o em salinas ou lagoas. O contrato era tão lesivo aos povos que de meia pataca o alqueire, conforme se pagava antes, havia depois dele subido até a cruzado, o que era enorme, ainda tendo em conta a depreciação de valor operada no numerário. O resultado foi abrir-se mão dessa indústria, tão natural para o Brasil (por demandar poucos braços e muito sol) que em alguns sítios, como em Cabo Frio, se apresenta ele fabricado por si mesmo.”33
Rodolfo Garcia, em uma de suas admiráveis anotações à obra de Porto Seguro, elucida:
“Em 1658 e seis anos seguintes fora contratador no Rio de Janeiro Luís de Pina Caldas. Por Cartas Régias de 14 de março de 1676 foi determinado que o sal não ficasse mais em contrato, mas por conta da Fazenda Real; e tomando-se depois nova resolução, se ratificou a Manuel Dias Filgueira a arrematação dele, em 28 de julho de 1703. - Pizarro, Memórias históricas, 2, 155. Em 1727 Bento da Cunha Lima arrematou o que restava de um contrato anterior, e meses depois, a 50.000 cruzados por ano, os seis anos seguintes a 1732. De 1744 a 1750 teve-o Luís de Abreu Barbosa a 90.000 cruzados anuais. De 1750 a 1756 Baltasar Simões Viana, por 49.000 cruzados. Em 10 de outubro de 1755 se havia arrematado por seis anos a José Álvares de Sá; mas em 7 de março de 1758, pelo mesmo preço e também por seis anos, com três associados. Em 1764 juntaram-se quatro sócios, que o arremataram por outros seis anos, na razão de 41:005$000. - conf. citado vol. II da 1a ed. desta História, ps. 289 - (G).”
É no fim do século XVII que se inicia o movimento do rápido aumento da população do Centro-Sul da Colônia, atraída pelas minas e o crescente interesse pela criação. Como consequência, registraram-se grande incremento no consumo do sal e a incapacidade dos contratadores de acompanharem a curva ascensional da sua procura.
Não obstante a renda já auferida com o estanco, a metrópole viu, nessa procura do artigo, um meio de obter, por adicionais, novas rendas de que carecia. O sal era artigo de grande consumo, fácil tributação e arrecadação.
Surgiram os protestos dos povos e começaram também, paralelamente, a repontar os das Câmaras das Capitanias. 34 Com a insuficiência da navegação, davam-se ainda crises sucessivas de falta do produto, habilmente exploradas por atravessadores e pelos próprios contratadores.
Cartas Régias de 1698 a 1699 determinavam que, na falta da mercadoria, os oficiais da Câmara se entendessem com o administrador dos contratos de sal, para tirar o necessário das marinhas de Cabo Frio; o preço deveria ser arbitrado segundo sua qualidade, e de maneira que “os senhores das marinhas e o contratador tivessem algum lucro”.
A abertura das minas nos sertões da Capitania de São Paulo provocou a necessidade do guarnecimento e da fortificação do porto de Santos, para se evitar qualquer ataque de surpresa; criou-se, sobre todo o sal que por ali transitava, um imposto adicional e 1 cruzado por alqueire, destinado “às despesas da infanteria para guarnição da Fortaleza da Barra da Capitania de Santos” (1699).
Já existiam 160 réis de imposto para honorários e soldo dos governadores, cobrados em todas as Capitanias, elevando o preço do contratador de sal, de 720 réis o alqueire para 880 réis. Contra esse preço, representaram os oficiais, da Câmara do Rio de Janeiro, que o classificavam de excessivo “e prejudicial aos moradores e aos povos pobres e cativos que por sua carestia comem muitas vezes sem sal”.
A essa carestia também se atribui o uso da canjica, cujo preparo dispensava esse condimento, como base da alimentação dos paulistas.
A pecuária na formação econômica brasileira
Alongamo-nos, talvez em demasia, sobre vários aspectos da indústria pecuária nos tempos coloniais, para melhor acentuar o salientíssimo papel que desempenhou na formação econômica brasileira.
Primeira retaguarda econômica dos engenhos de açúcar, promoveu nos séculos XVI e XVII a ocupação de uma vasta região do sertão.
O avanço irregular dos limites baianos e pernambucanos, por trás de outras capitanias e pelo vale do São Francisco, originou-se nas sesmarias concedidas para a criação estimulada pela procura de gado em São Salvador e Recife, os dois principais mercados consumidores do primeiro período colonial.
Com a expansão para o Norte, formaram-se estados como Piauí e Maranhão, cujas lindes foram evidentemente subordinadas à ocupação das planícies e dos vales dos rios, pelas fazendas de criar e pelas concessões das sesmarias decorrentes dessa ocupação.
O critério geométrico da primitiva divisão de D. João III foi vencido, no interior, pelo determinismo econômico.
No vale do São Francisco, que se constituiu, na frase de Capistrano de Abreu, “o condensador por excelência da população sertaneja”, encontraram-se os elementos paulistas com os que vinham do Norte.
Essa formação pastoril permitiria mais tarde o socorro alimentar à industria de mineração. Não sendo as suas reservas suficientes e tampouco em situação geográfica adequada para a sua dupla função, junto às indústrias açucareira e mineradora, socorreram-se os paulistas do gado do Sul, criando ali a grande procura, que ia justificar, economicamente, a ocupação definitiva das regiões de Vacaria, Mato Grosso, Campos Gerais de Curitiba, Guarapuava, Vacaria do Rio Grande, Viamão, Tapes e das Missões. Foi, portanto, o ciclo do gado o fator econômico gerador da expansão sulina e da formação de nossas lindes meridionais.
A princípio, era o gado bovino o elemento principal, na indústria pecuária colonial. Seguiu-se-lhe o gado cavalar, de tão acentuado valor antes do aparecimento do veículo motorizado. Surgiram, enfim, no século XVIII, a tropa muar e a figura estóica do tropeiro, o grande assegurador dos meios de comunicação nos séculos XVIII e XIX e que até hoje tão importante papel desempenha em várias regiões do Brasil.
Foi o gado o elemento de comércio por excelência em toda a hinterlândia brasileira, na maior parte da fase colonial.
Indústria muito mais pobre, relativamente, que a do açúcar, apresentava, porém uma feição caracteristicamente local, formadora de gente livre e com capitais próprios. A indústria açucareira, com outra organização social, funcionava, em grande parte, com capitais da metrópole, aos quais eram atribuídos os seus maiores proventos. A produção da pecuária e o seu rendimento ficavam incorporados ao país.
As suas feiras, entre as quais avultava a de Sorocaba, exerceram uma função inconfundível na formação da nossa infra-estrutura econômica unitária, antes da Independência.35
Se a indústria mineradora originou o rápido crescimento da população e a construção das cidades no interior, foi por intermédio da pecuária e dos laços criados pelo comércio do gado bovino e cavalar, pelos transportes organizados pelas grandes tropas muares que se estabeleceram elos indestrutíveis na unidade econômica brasileira.
A pecuária goza da faculdade peculiar de ocupar grandes áreas com pequena população; é uma indústria extensiva por excelência. Desaparecido o interesse da caça ao bugre, e extinta praticamente a mineração, foi a pecuária que consolidou economicamente a ocupação de vastíssimas regiões do país, as quais, sem ela, teriam sido, talvez, condenadas ao abandono. Foi ela igualmente que amparou as populações do Sul entre o fim da mineração e o advento do café.
Alargadas as fronteiras econômicas, ocupadas as vastas regiões dos sertões brasileiros, as economias e os capitais nacionais estavam representados, em fins do período colonial, nos engenhos, na escravaria e na pecuária. Foi a acumulação destes dois elementos, pela mineração, que facilitou a rápida expansão da cultura cafeeira, cultura esta que, por sua natureza especial, exigiria fartos braços e amplos meios de transportes.
Não se houvessem acumulado no Centro-Sul brasileiro essas massas de gente e de gado, e não teríamos os elementos suficientes ao desenvolvimento de outras atividades, à expansão da cultura cafeeira e ao reerguimento econômico do país, na era de reajustamento, quando o declínio da mineração e a concorrência de outros países produtores de açúcar ocasionavam a crise econômica, nos fins do século XVIII.
O gado alcançava maiores preços nos mercados consumidores do Norte, até o terceiro quartel do século XVII; passou a valer mais nos centros consumidores do Sul, a partir da mineração.
Dentro do ciclo da pecuária, também se manifestou, no Sul, a preponderância econômica do matuto e do gaúcho sobre o sertanejo e vaqueiro do Norte.
Na elaboração de todos esses fatos econômicos, teve magna par's o expansionismo paulista, cujo estudo será objeto de nossas próximas conferências.
Notas
4 Em 1800, a lã representava, na Europa, 75% da matéria-prima utilizada na fabricação de tecidos, o linho 20% e o algodão 5%. Em 1900, já o algodão entrava com 70%, a lã 22% e o linho 8%. A “Mesta”, que existiu acerca de 600 anos (1223-1836), era um grêmio dos criadores de ovelha de Castela, e representou um grande esforço no sentido de fomentar a produção e o comércio de uma matéria-prima então essencial. Foi utilizada como um fator de unidade nacional, na Espanha.
5 Em Pernambuco, segundo Koster, um bom estabelecimento carecia quarenta negros adultos de ambos os sexos, outros tantos bois e igual número de cavalos. Henri Raffard, na sua Indústria Sacarífera no Brasil, admite para os engenhos número igual de escravos e de bois, mas prevê a renovação total dos últimos cada três anos.
6 Vide a propósito a "Descrezão da fazenda que o Colégio de Santo Antão tem no Brasil e de seus rendimentos", do padre Estêvão Pereira, S. J., a que já nos referimos no capítulo V.
7 Do ilustrado patrício Sr. Aurélio Porto recebemos a seguinte missiva: “Rio, 29 de julho de 1937. “Ilm2 Sr. Prof. Dr. Roberto Simonsen. “Preclaro e ilustre patrício. “Recebi com vivo prazer e li o trabalho que teve a gentileza de me enviar e com o qual aprendi também alguma coisa, não obstante as largas indagações que tenho feito nos arquivos sobre as origens do “gado crioulo” do Rio Grande do Sul. E essa confissão bastaria para significar o valor do seu brilhante estudo. Mas, não devo fugir às contingências de sua solicitação gentil e é por isto que lhe envio as despretensiosas notas, tomadas à pressa, de um grande acervo documental que possuo sobre o assunto. “Tenho também o prazer de lhe enviar os três primeiros fascículos do “Dicionário Enciclopédico” que estou organizando, onde encontrará mais algumas notas sobre aspectos econômicos do Rio Grande do Sul. “Inteiramente às suas ordens e me felicitando pela honra de conhecê-lo pessoalmente, me subscrevo. (a) Aurélio Porto”.
8 Oliveira Viana - A Evolução do Povo Brasileiro.
9 Capistrano de Abreu - Capítulos de História Colonial.
10 Capistrano de Abreu — Op. cit.
11 Capistrano de Abreu — Op. cit.
12 Esta explicação foi-nos fornecida pelo nosso erudito mestre, Dr. Rodolfo Garcia.
13 "... e para que tenha em tudo mui pontual observância esta minha disposição me parece ordenar-vos (como por esta o faço) encarregueis ao procurador e administrador das ditas Minas, examinem se entram nelas algumas coisas vindas das ditas Capitanias pelo sertão e que tendo notícia disso, dêem logo buscas e façam autos e tomem por perdido tudo o que assim for achado, aceitando para esse efeito denunciações ainda em segredo, e procedendo em tudo na forma que nesta parte se dispõem no Regimento da Alfândega desta cidade, sobre as fazendas e que as mesmas denunciações declareis se possam dar as justiças e vos recomendo apertadamente que pelos lados dos sertões, se impeça com toda a vigilância estas comunicações. Escrita em Lisboa, a 7 de fevereiro de 1701. REI.”
14 “Dom Álvaro da Silveira de Albuquerque”. Eu EL-REI vos envio m. Saudar. Para que essa Capitania e as mais do Sul abundem em gados, e se possa prover com eles as minas, sem lhe ser necessário abrir porta delas para a Bahia e evitarem-se os descaminhos que desta Comunicação podem resultar os quintos de ouro. Me pareceu ordenar-vos deis de Sesmaria a maior parte que vos for possível das terras dos Campos das minas que se estendem para a parte dessa Capitania até junto a serra dos Órgãos a que mais perto for do Rio de Janeiro, com a obrigação de cada um dos donatários pôr um curral de gado dentro de dois até três anos no sítio que se lhe der, por se entender que com a fertilidade destas terras abundarão essas capitanias em gado e a Fazenda Real terá um grande lucro nos dízimos. Escrita em Lisboa, a 7 de maio de 1703. (a) REI.
15 Southey - History of Brazil.
16 General Borges Fortes — Cristóvão Pereira.
17 Bando do Governador de São Paulo, de 17 de janeiro de 1725: “E quando assim os índios como os castelhanos daquela Pampa vierem às Povoações com gados e cavalgaduras os moradores os trataram com todo o carinho para que o negócio seja franco e quando se quiserem retirar-se lhes não proibirá a fazerem-no, salvo havendo presunção certa que possa ser prejudicial a sua retirada e nessa forma serão represados. “Também poderão ir à ilha de Santa Catarina comerciar com aqueles moradores levando os seus gados pelos campos daqueles distritos porque assim se poderão fazer nas campanhas muitas carnes secas para se transportarem para todos os portos, do que se segue a utilidade à real fazenda, e bem comum, e como na dita ilha é a barra mais franca com mais facilidade se poderão carregar nas embarcações não só carnes, mas bestas muares e por meio destes comércios se conservará a amizade dos minuanos com os portugueses.”
18 Bando de D. Rodrigo César de Meneses, Governador da Capitania de São Paulo, permitindo o transporte do gado vacum, do sertão de Curitiba e dos campos de Vacaria para as minas de Cuiabá. (8 de novembro de 1925) “Por ser conveniente ao real serviço de V. Maje q’ Ds. ge., e ao aumento das novas minas de Cuiabá, meter-se nelas gados vacuns para sustento dos mineiros, e mais pessoas, que se acharem naquele descobrimento, de que também resultará grande conveniência aos moradores desta capitania, os que quiserem mandar, ou levar, para as das minas do Cuiabá, e por me constar, que nesta dita capitania, há vários moradores que têm currais de gado no sertão da vila de Curitiba desta comarca, donde se podem conduzir, para as ditas minas de que lhe resultarão grandes utilidades, o poderá fazer toda a pessoa que quiser no tempo que lhe parecer mais oportuno, e também poderá amansar, e conduzir de paragem chamada Vacaria gados, para as ditas minas sem se lhe pôr impedimento algum.”
19 Em 1654, no Maranhão, a carne era vendida a 40 réis a libra, obrigando-se a Câmara a ficar com a que não era vendida. Ora, isso representa cerca de 90 réis o quilo, ou sejam cerca de 6$000 em poder aquisitivo de hoje. Em 1670, a carne baixou a 30 réis; em 1687, a 20 réis, em 1688 a 18 réis que representam cerca de 1$500, valor de hoje. Em 1727, o preço em São Salvador era de 640 réis a arroba, ou sejam mais de 2$000 em valor atual.
20 Para o estudo dessa origem, processos de seleção e fixação do gado nacional, natureza de climas e pastagens, que foge à alçada desta cadeira, vejam-se, entre outros, os trabalhos do professor Otávio Domingues, São Paulo, 1929; professor Nicolau Athanasof, São Paulo, 1910; Antônio da Silva Neves, 1917, Sociedade Nacional de Agricultura; Dr. Mário Maldonado, São Paulo; Urbino Viana, Rio, 1927; Virgílio Correia Filho, Mato Grosso.
21 Contreiras Rodrigues - Traços da Economia Social e Política do Brasil Colonial. É um estudo consciencioso e erudito sobre vários aspectos da nossa sociedade e economia até o século XIX.
22 Na Encyclopedia Métodique encontramos um “Tableau des Arts & Métierrs qui ont les peaux et cuirs pour objet, et qui les emploient”, que resumimos no Anexo V, por oferecer uma idéia da larga aplicação do artigo, na época, no continente europeu.
23 No inventário dos documentos relativos ao Brasil, existentes no Arquivo da Marinha e Ultramar, publicado por Eduardo Castro de Almeida, encontram-se sucessivas Cartas Régias dispondo sobre os pagamentos relativos a esses contratos.
24 General Borges Fortes - Cristóvão Pereira.
25 Contreiras Rodrigues — Op. cit.
26 Anexos II e III.
27 No admirável Roteiro do Maranhão a Goiás, escrito entre 1770 e 1780 e publicado no volume 62 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, lê-se, à página 126: “Os nossos sertões, e mais capitanias, assim do Sul como do Norte, e não podem fornecer ainda quanto as minas carecem neste gênero. Pelo sul entram de Espanha muitas bestas muares; os mineiros, achando maior utilidade em se servirem delas, as preferem aos nossos cavalos, e de aqui se segue a soma considerável de ouro que passará à Espanha, e o baixo preço em que estão pelo sertão do Norte os cavalos, como são os da Bahia, Pernambuco, Ceará e Piauí. “Não se pode duvidar, que para conduções excedem as bestas muares aos cavalos; mas, também ninguém duvidará que a utilidade, que nas ditas conduções acham os mineiros servindo-se de bestas muares de Espanha deva ceder à utilidade do estado, o qual pede, que não saia dele para mãos estranhas o ouro, e que dentro de si mesmo se promova nos lugares mais convenientes, enquanto for necessário a criação deste gênero tanto em uma como em outra espécie.”
28 Anexos IV, V, VI, VII.
29 No Ensaio dum Quadro Estatístico da Província de São Paulo, organizado em 1838 pelo Marechal Daniel Pedro Muller, verifica-se que para uma receita presumível (1835-1836) de Rs. 292:701$359, figuravam nas rubricas:
Imposto e renda dos animais em Sorocaba............... 22:074$216
Carne verde e subsídio Literário............................... 19:170$442
Contribuição de Guarapuava................................... ... 9:596$140
Animais no Rio Negro............. ....................... ......... 81:869$950
Total..........................................................................132:710$748
30 Anexo IX
31 “No Vol. II dos Documentos Históricos, publicados pelo Arquivo Nacional, há uma Carta Régia, datada de 4 de maio de 1747, dispondo que em remuneração de serviços, fez D. João V mercê ao coronel Cristóvão Pereira da metade dos direitos que pagam os gados e cavalgaduras que entram na Capitania de São Paulo pelo registro de Curitiba, por tempo de doze anos, que seriam cobrados pela Provedoria de Santos, tributo que Cristóvão Pereira receberia trimestralmente.” (General Borges Fortes — Op. cit.).
32 Anexo X.
33 Porto Seguro - História Geral da Brasil.
34 Câmaras Municipais. — “João Francisco Lisboa fez notar, ainda que se referindo especialmente ao Maranhão e Pará, a importância que assumiram na história do Brasil as Câmaras Municipais. Mas o mesmo se pode dizer em relação às demais cidades do Brasil, e em especial do Rio de Janeiro e de São Paulo. Elas não só taxavam o preço dos salários e dos artigos de comércio, mas regulavam o curso e o valor da moeda; estabeleciam providências sobre toda a atividade econômica da Colônia; atreviam-se a impor ou a recusar tributos; deliberavam sobre a criação e localização das povoações e sobre a paz ou a guerra com os índios; prendiam ou castigavam funcionários; faziam alianças políticas entre si; e, finalmente, chegavam a nomear e a suspender governadores. Só nas cidades, como a Bahia e o Rio de Janeiro, onde residiu o governador-geral esta suprema autoridade da Colônia conseguiu preservar o seu poder do domínio das Câmaras Municipais, o qual nas demais capitanias se fez sentir com preponderância. Segundo Rocha Pombo, algumas Câmaras da Colônia chegaram a ter em Lisboa representantes efetivos” (Jaime Cortesão - História de Portugal).
35 A propósito de nossa tese, formação da infra-estrutura unitária econômica do Brasil, na era colonial, explanada nesta e em outras conferências, enviamos ultimamente a seguinte missiva ao Correio Paulistano: “Sr. Redator, O erudito publicista patrício, Dr. Afonso Arinos de Melo Franco, fez uma oportuna conferência no Salão Mendes de Almeida, em nossa Faculdade de Direito, sobre a “Unidade da Pátria”, que o seu conceituado jornal publicou, na íntegra, a 29 de julho próximo findo. “Quando se refere à influência do fator econômico na formação dessa unidade, na era colonial, o ilustrado conferencista adotou o método objetivo e as linhas fundamentais de estudo, que, sobre o assunto, lançamos, há cerca de um ano, no Curso de História Econômica do Brasil, da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. “Muito nos desvanecemos ao verificar que essa orientação foi abraçada pelo jovem intelectual patrício. A gentil referência que fez aos nossos trabalhos leva-nos, porém, a uma explicação suplementar. S. Ss declarou: “Recentemente, Roberto Simonsen, em estudo documentado e minucioso, que só pode pecar, talvez, por excessivamente prudente, nos oferece a base mínima de trezentos milhões de libras para o valor da exportação do açúcar colonial”. “Tratando-se de uma avaliação feita entre nós pela primeira vez — pois que todos os nossos historiadores limitavam-se a referir números esparsos de arrobas exportadas em determinados anos, ou de engenhos instalados em certos períodos, ou, ainda, incidentemente, cotações do artigo em valor monetário da época — essa prudência se impunha. Mesmo Antonil (1711), dando o cômputo da exportação de um ano, não avaliou o das épocas anteriores. “Para as conclusões a que chegamos, alinhamos, pacientemente, todas as informações que pudemos colher e, organizando nossos gráficos e tabelas relativos ao século XVII, deparamos, para o petíodo áureo do açúcar, citações que nos pareceram em desarmonia com o número de engenhos em atividade, e com certos elementos de verificação de que dispúnhamos. Aplicamos a esses algarismos, que reputávamos elevados, um coeficiente redutor, de segurança, de 50%. “Documentos que recebemos após a divulgação de nossas conferências pela Escola de Sociologia, mostram que andamos acertados. “De fato, os números que sofreram esse ajustamento foram, principalmente, os indicados por Burlamaqui (1862) e Raffard (1884). Parece-nos agora, à vista desses elementos, que teriam chegado eles a esses elevados índices, provavelmente por terem multiplicado a exportação em caixas, na época em apreço, por 35 arrobas - capacidade adotada por Antonil, quando no Brasil holandês o peso habitual era de 20 a 24 arrobas. “As caixas, na era colonial, variavam, principalmente entre 20 e 50 arrobas. A referência de Antonil é um algarismo médio para a época em que escreveu. “Adotando o coeficiente de 50% sobre os maiores números de Raffard, ficamos, ainda, dentro da realidade — o que não teria acontecido se não agíssemos com tal prudência. “O conceito que nos merece o ilustre conferencista e sua valiosa contribuição à idéia que reputamos sagrada — da “Unidade da Pátria” — levaram-nos a esta explicação complementar, que será, estamos certos, generosamente acolhida, por essa ilustrada redação. - Do pattício, admirador e amigo, obrigado. - (a.) Roberto Simonsen. - São Paulo, 2 de agosto de 1937.”
Texto de Roberto C. Simonsen em "História Econômica do Brasil 1500-1820" Editora do Senado Federal, Brasilia, 2005, excerto pp. 196-234 & 238-241. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.