Vêm sendo retiradas dos depósitos arqueológicos [do Rio de Janeiro], com intensidade razoável, escovas de dentes feitas em osso e em tartaruga, sendo estas últimas mais raras (Andrade Lima et al., 1989, p. 226). A julgar pelo balanço feito em um armazém por ocasião do inventário de sua proprietária, D. Maria Joaquina do Amaral, em 1845, havia diferentes gradações de qualidade nesses objetos, já que aí constam “nove dúzias de escovas de dentes finas, sete dúzias de ditas mais abaixo e dez ditas ordinárias” (Arquivo Judiciário, caixa nº 185, nº 1.758). Entretanto, as amostras recuperadas até o momento ainda não suficientes para se estabelecer com segurança essas diferenças.
Também são encontrados potes em faiança de pós dentifrícios, em geral franceses. Anúncios de época veiculavam as propriedades dos “pós dentifrícios vegetais”, “pós dentifrícios chineses”, “elixires dentifrícios”, “águas balsâmicas para os dentes”, “opiats dentifrícios”, confirmando um especial interesse pela eliminação do mau hálito e pelo asseio da boca.
Os registros vêm se mostrando pródigos também em potes e frascos de produtos de toucador. Águas de toalete, óleos para o cabelo, perfumes, loções, extratos, águas para a caspa, essências, tônicos capilares (ver ainda Macassar Oil// For the Hair// Hatton/London, em Andrade Lima et al., 1989, p. 225), entre outros, fabricados em profusão, penetraram com impressionante intensidade o cotidiano do século XIX, claramente destinados a eliminar, ou pelo menos atenuar, os odores exalados pelos orifícios do corpo.
Alguns produtos tiveram notável aceitação e difusão, especialmente os americanos e franceses, a julgar pela freqüência com que estão presentes nos registros arqueológicos. Um dos mais populares foi a Florida Water, uma água-de-colônia cujos frascos, nos sítios cariocas, aparecem gravados em espanhol (Agua de Florida), fabricada em sua maioria por Murray & Lanman, Nova York, posteriormente, Lanman & Kemp, embora apareçam em pequenas proporções marcas de outros fabricantes, como De Romaris. Aqui no Brasil, em 1871, o Almanaque Laemmert publicava o anúncio da Agua Florida Linda Jardineira, fabricada no país, apregoada como sendo “tão boa quanto a de Lanman & Kemp”.
De modo geral, até meados do século XIX supunha-se que as águas aromatizadas tivessem propriedades medicinais, curativas, e prevenissem infecções. Inúmeras virtudes eram-lhes atribuídas: verdadeiros “elixires da vida”, preservavam a juventude e a beleza, aliviavam dores, perfumavam hálitos. Ingeridas como cordiais, aspergidas no ambiente, inaladas em lenços, passadas sobre a pele e as roupas, eram usadas tanto por homens quanto por mulheres. Sua maior popularidade foi atingida na segunda metade do século (Sullivan, 1994, p.84).
Produzidas por vários fabricantes, as Florida Waters chegaram vitoriosas ao final do século passado, adentraram o século XX e até alguns anos atrás ainda podiam ser encontradas em drogarias dos Estados Unidos e Canadá, não obstante estarem fora de moda; substituídas por produtos mais especializados, como águas dentifrícias para bochechos, loções de barba, desodorantes etc, perderam a competitividade no mercado. Sullivan (idem) e Fike (1987) fornecem dados sobre a empresa de David T. Lanman e seus sucessivos sócios, cujo mais antigo registro data de 1836. Não há qualquer menção, nesses textos, a frascos gravados em espanhol; possivelmente porque, em se tratando de material para a exportação, deviam ser destinados às áreas de fronteira, ao México e à América do Sul, sendo encontrados apenas em sítios arqueológicos dessas regiões, o que talvez explique o total desconhecimento dos autores norte-americanos com relação a essas variantes.
Quanto aos banhos, cujas modalidades e equipamentos foram anteriormente descritos por Oliveira (1991) e arrolados por Carvalho (ver catálogo da exposição Banheiro: história e arte, Museus Castro Maia, 1987), intensificaram-se na segunda metade do século, causando espanto aos europeus o apreço que os brasileiros tinham por este costume. Ina von Binzer escrevia a esse propósito, em 29 de maio de 1882(1991, p.82):
“em questões de asseio e ordem, estes brasileiros possuem idéias bem extravagantes... Tomam banho constantemente, a maioria todos os dias, mas assim mesmo muitas crianças e adultos não apresentam pescoço e orelhas impecáveis... Sobre este ponto existe uma certa discordância entre nacionais e estrangeiros. Alguns hábitos brasileiros provocam justificadas críticas dos de fora, embora não sejam tão reprováveis... . Por isto, os brasileiros vingam-se, contando a anedota de um alemão que, no seu segundo dia de permanência numa casa, respondeu indignado, quando lhe ofereceram um banho como no primeiro dia: ‘Não! Não sou assim tão porco que precise tomar banho todos os dias.’’’
Nas casas mais abastadas surgiu o quarto de banhos (Santos, 1981, p.70), onde pontificavam banheiras de mármore, logo popularizadas e feitas em folha-de-flandres, louça ou madeira revestida de chumbo, amplamente anunciadas nos jornais em meados do século. A descoberta dos mecanismos da transpiração e a necessidade de manter os poros desobstruídos de sujeiras contribuíram para aumentar ainda mais sua freqüência (Corbin, 1991, p. 442), como bem ilustra o personagem Cristiano Palha, em Quincas Borba (Machado de Assis, 1944c, p.311), “ensaboando-se, esfregando a cara, o colo e a cabeça na vasta bacia de prata, escovando-se, enxugando-se, aromando-se”, em evidente contraponto com o depoimento de Luccock (1975, pp.87-8), entre a primeira e a segunda décadas do século passado. Para o comerciante inglês, “as abluções freqüentes não (eram) nada apreciadas pelos homens. Os pés (eram) geralmente a parte mais limpa das suas pessoas... . Os rostos, mãos, braços, peitos e pernas que, todos eles, anda(va)m muito expostos em ambos os sexos, raramente receb(ia)m a bênção de uma lavada”, além de “desconhecer(em) por completo um instrumento chamado escova de dentes, como qualquer substituto dela, a não ser os dedos”. Saint-Hilaire (1975, p.97) registrou igualmente, em 1816, o hábito de lavar apenas os pés, à noite, antes de deitar. O contraste entre o que foi observado nas primeiras décadas e o que se constata em meados e na segunda metade do século XIX, num intervalo de tempo relativamente pequeno, dá bem a medida da rapidez com que penetraram as idéias de higiene pessoal nas áreas urbanas, no processo de desodorização da nossa “burguesia”.
Os banhos aumentaram não apenas em freqüência, mas também se diversificaram de forma impressionante, utilizados inclusive como práticas terapêuticas: as inúmeras modalidades sugeridas por Dückelmann (1907, pp.389-410) mostram a dimensão que eles passaram a ter no cotidiano, com a intensificação da limpeza corporal. São recomendados e descritos banhos alcalinos, de Vichy, sulfurosos, saponáceos, romanos, alternados, hidroaéreos, sinapizados, russos, de ar (frio e quente), de vapor (totais ou parciais, para a cabeça, pés, pernas etc.), de nariz, de olhos, de plantas, de gomos de abete, de sêmeas, de mar, de rio, de chuva, de lodo, de areia quente, em semicúpios (de assento), pedilúvios (escalda-pés), manilúvios etc. Por detrás desta multiplicidade que se sucede vertiginosamente ao longo de 22 páginas, cada qual mais imaginosa que a outra, percebe-se um evidente deslumbramento com a nova descoberta, com os alívios e prazeres que ela era capaz de proporcionar ao corpo, como se quisessem apagar com um só ímpeto séculos de imundícies acumuladas.
Vistos em conjunto, todas essas práticas e elementos da cultura material descritos comprovam a importância que assumiu, no século passado, a dissimulação dos odores corporais e a eliminação dos humores excessivos do organismo, sobretudo matérias fecais, sangue e catarros. Desobstrução parece ter sido a palavra de ordem, nas tentativas de se manter o corpo saudável, em equilíbrio, higienizado.
A Explanação
Como parte de um processo histórico mais amplo, envolvendo aspectos econômicos, políticos, jurídicos e científicos, entre outros, instaurou-se no Ocidente europeu, ao longo do século XIX, um conjunto de princípios, normas e valores fundados sobretudo na observação, na disciplina, e, em última instância, no controle, como instrumentos de dominação (cf. Foucault, 1983.) A construção dessa “sociedade disciplinar”, iniciada no século anterior, se intensificou e se consolidou com o fortalecimento da burguesia, impondo uma nova configuração ao sistema e às suas instituições, que se reordenaram ante a introdução de mecanismos sistemáticos de vigilância e estratégias de controle.
Valorizando o exame, a regularidade, a ordem, foram instituídas, entre outras, novas regras nas relações com o corpo, de modo a assegurar seu adestramento, sua docilidade e submissão. Entendendo que o corpo individual, enquanto sistema de comunicação, possui uma linguagem, um código, e veicula mensagens para as esferas mais amplas do corpo social, e que “um sistema de símbolos está sempre presente no comportamento social em relação ao corpo ou no comportamento do corpo em relação à sociedade”, como observou Rodrigues (1986, p. 130), a implantação de uma ordem corporal foi fundamental para a construção e manutenção da ordem social do século XIX. Nesse contexto, a consolidação de uma ideologia de higienização foi uma das mais conseqüentes e eficazes estratégias para a sustentação do projeto vitorioso de hegemonia da burguesia.
Responsáveis pelas mais fortes sensações que o corpo é capaz de proporcionar, os orifícios corporais e as atividades a eles relacionadas configuram um domínio onde opera fortemente o imaginário, inclusive por estarem intimamente relacionados à sexualidade. Pelo poder extremamente forte de evocação, de metáfora, de símbolo e de analogia que detêm (Peter, 1986, p. 53), o corpo e suas cavidades foram devidamente apropriados pelas sociedades burguesas do século XIX, que privatizaram e ritualizaram o comportamento a elas associado, atribuindo a esse corpo um novo conjunto de significados sociais, políticos e culturais (Gallagher e Laqueur, 1987, p. vii).
O corpo segue um ritmo biológico, é regulado naturalmente. Em seu interior, um contínuo processo de decomposição de matérias orgânicas se desenrola diariamente em decorrência da ação de enzimas microbianas, resultando na formação de inúmeras substâncias. As que não são absorvidas pelo organismo sofrem ação bacteriana, se degradam e se transformam em escórias que têm, necessariamente, que ser eliminadas. Pelos orifícios do corpo tanto emanam os maus odores decorrentes desse processo, quanto são expelidos os seus resíduos.
Por outro lado, enquanto vias de acesso a esse interior invisível, esses orifícios permitem um contato direto com um domínio desconhecido que amedronta e assusta, ao mesmo tempo que atrai, permanentemente irrigado por fluidos de diversas naturezas, em constante processo metabólico. Bem tolerados no seu devido lugar, ou seja, dentro do corpo, esses fluidos, ao se deslocarem para o exterior, sobretudo quando ocorrem desequilíbrios nas funções corporais, ameaçam a ordem e precisam ser controlados, pela profunda inquietação que provocam (Douglas, 1976, p. 194; Rodrigues, 1986, p. 164).
Enquanto pontos de entrada e saída, de passagem do interior para o exterior e vice-versa, de penetração e eliminação, ingestão e excreção, esses orifícios são potencialmente perigosos. Áreas limítrofes, intersticiais, de transição, requerem vigilância não só pelo seu caráter ambíguo, mas porque constituem zonas estratégicas de acesso a esse domínio obscuro, já que através deles se pode perscrutar, investigar, esquadrinhar sua atividade ininterrupta.
As atitudes em relação a essas exalações e eliminações, culturalmente estabelecidas, variaram muito ao longo do tempo e no espaço, conforme exposto. Como assinalaram Gallagher e Laqueur (1987), o corpo humano foi percebido, interpretado, representado e vivido diferentemente através dos tempos, integrado a culturas materiais muito dessemelhantes, submetido a várias tecnologias e meios de controle, incorporado a diferentes ritmos de produção e consumo, prazer e dor.
A chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, na primeira década do século, disparou um processo de remodelamento dos velhos hábitos coloniais. A pressão exercida pelo novo contingente populacional, aliada às suas exigências de conforto em níveis minimamente compatíveis com os do Ocidente europeu, agravaram ainda mais os problemas da cidade suja, doente, acanhada, espremida e desprovida, exigindo soluções a curto prazo.
Por outro lado, para as grandes nações industrializadas — em especial a Inglaterra —, necessitadas de ampliar os mercados consumidores para seus produtos, era fundamental a implantação de uma nova mentalidade nas colônias, condizente com os mais modernos padrões europeus, que favorecesse e assegurasse a penetração, a adoção e o consumo maciço desses bens, o que reforçaria duplamente, do ponto de vista ideológico e econômico, a sua subordinação.
A paulatina erradicação dos antigos costumes e sua substituição por novas práticas e idéias de modernização, para as quais contribuíram fortemente os ingleses instalados no Brasil, abriram caminho para o desenvolvimento econômico e cultural. Em meados do século, escudada na necessidade de debelar as grandes febres e surtos epidêmicos, de eliminar focos de infecção, ares e águas contaminados, de baixar as elevadíssimas taxas de morbidade e mortalidade através de severos dispositivos sanitários, a medicina, até então sem qualquer projeto de combate sistemático a essa insalubridade generalizada, passou a exercer um controle fiscalizador crescente, conforme amplamente exposto por Machado e cols. (1978). Com um formidável poder de penetração, introduziu-se em praticamente todos os domínios da esfera social, tendo como alvo não mais o indivíduo, mas a coletividade, sobre a qual foi conquistando uma ascendência cada vez maior.
Esta medicina, que passou a ser sobretudo política, social, comprometida primordialmente com a saúde (e não mais com a doença), buscando a prevenção (e não apenas a cura), amplificou e intensificou sua atuação, estendendo-a ao âmbito político-administrativo. Interveio diretamente no espaço urbano e doméstico, assumindo em parte sua organização e funcionamento — o que resultou em novas distribuições e configurações —, bem como interferiu na vida pessoal e coletiva dos indivíduos, gerando novas formas de comportamento.
A difusão maciça de regras fundamentais de higiene pessoal e coletiva, dirigidas para o asseio corporal, processamento dos alimentos, manutenção das moradias, vestuário, comportamento à mesa etc., bem como a denúncia constante dos perigos de contaminação do espaço urbano face à sua péssima ventilação, umidade excessiva, ausência de sistemas de escoamento de águas pluviais e servidas, proximidade de cadáveres de seres humanos e animais, entulhamento de toda sorte de lixos, dejetos, e assim por diante, procurou incutir nas camadas médias da população, a quem elas fundamentalmente se destinavam, o apreço pela boa saúde, a ser conquistada através da higienização dos indivíduos, das habitações, das cidades.
Ao propor o planejamento e a reforma do espaço urbano, entendendo-os como fundamentais na luta contra a insalubridade, passou a recomendar enfaticamente medidas como o aterro de áreas alagadas, a dessecação de pântanos, charcos, mangues e águas paradas, responsáveis pela exalação dos pestilentos miasmas, já que o ar era tido à época como o principal veículo de doenças; a derrubada de morros para uma melhor ventilação; o alargamento, abertura e calçamento de ruas; o plantio de árvores, a limpeza de praias e praças; a remoção do lixo aí despejado regularmente para áreas periféricas; a inspeção constante de abatedouros, feiras e mercados; a canalização e o controle da qualidade da água; a transferência de cemitérios; a reformulação da arquitetura colonial, de compartimentação inadequada, com aposentos escuros, quentes e mal ventilados; o direcionamento da expansão urbana para áreas mais saudáveis e arejadas, criando novos bairros, entre outras (cf. Benchimol, 1992).
Esta estratégia determinou intervenções da medicina social, como se pode ver nas enumerações anteriores, em praticamente todos os setores da sociedade, promovendo profundas transformações tanto na esfera pública quanto privada, a par de uma ampla reformulação dos costumes. Corpos, casas, quintais, habitações coletivas, ruas, bairros, espaços públicos, comércio, serviços prestados, cemitérios, nada escapou à minuciosa inspeção que pretendia transformar a cidade doente em uma cidade sadia, limpa e ordenada, requisito fundamental para a implantação e consolidação de uma sociedade ‘moderna’, comprometida principalmente com o liberalismo europeu.
Nesse novo enquadramento a higiene teve papel fundamental, já que o progresso e a modernização eram incompatíveis com as pilhas de cadáveres resultantes das epidemias, com as vielas imundas, os corpos sujos e doentes da população. As atenções, que nos séculos anteriores estavam concentradas no corpo do rei, voltaram-se então para o corpo social (Foucault, 1989, p. 145), para o corpo desta nova classe emergente, visto agora como uma forma de capital, a ser devidamente protegido e preservado contra tudo o que representasse ameaça à sua integridade. Percebendo a importância do capital-saúde não somente como “um capital coletivo da linhagem, da raça e da nação” (Herzlich e Pierret, 1984, p. 203), mas sobretudo como um capital coletivo da classe, a sociedade burguesa consentiu na limpeza dos seus corpos.
No decorrer do século XIX, as emanações resultantes da atividade interna do corpo, que em momentos anteriores foram relativamente toleradas, tornaram-se insuportáveis. A ideologia de higienização que foi se instalando gradativamente provocou consideráveis mudanças na sensibilidade olfativa da época (ver Cobin, 1982, para uma história da percepção olfativa nos séculos XVIII e XIX; e Pagès-Delon, 1989, p. 43), o que forçou uma completa domesticação dos odores e produtos decorrentes dos processos metabólicos. Maus hálitos, maus cheiros, suores fétidos, ruídos intempestivos e os processos de excreção, entre outros, foram progressivamente submetidos a controles cada vez mais rígidos (Le Breton, 1990, p. 126), filtrados pela vigilância e pela disciplina. Surgiu uma nova etiqueta corporal, cuja palavra de ordem passou a ser a discrição.
A partir de meados do século intensificou-se a ritualização da toalete, no espírito do mesmo movimento que imprimiu às demais esferas da vida íntima um conjunto de regras que passaram a reger o comportamento cotidiano, de modo a restaurar e reassegurar, diariamente, a integridade do corpo. Para escamotear os odores da decomposição, foram incrementados a fabricação e o consumo de uma ampla gama de produtos, que surgiram em profusão, tal como transparece cristalinamente nos registros arqueológicos observados.
As mensagens de estímulo à vida ao ar livre, aos exercícios físicos, à limpeza da casa e ao asseio do corpo, somadas às intervenções no espaço urbano e à reprogramação do espaço doméstico, criaram as bases para a penetração dos valores burgueses e para a introdução de uma nova ordem no país. Os corpos foram preparados, adaptados, adestrados para novas formas de comportamento social, à imagem e semelhança da burguesia européia. Como assinalou Costa (1979, p. 120), “a semelhança física e de costumes com os europeus, já higienizados e domesticados em seus países de origem, era indispensável ao reconhecimento social e ao sucesso econômico ... . Os estigmas do brasileirismo colonial e senhorial passaram a funcionar com o sinal negativo. E tudo o que pudesse favorecer a persistência ou a reprodução destes estigmas passou a ser renegado.”
Neste quadro, a antiga medicina dos humores encontrou um campo fértil para sua sustentação, em pleno século XIX, ao fornecer as justificativas necessárias para a introdução das novas normas. Inúmeros procedimentos foram incorporados rotineiramente à vida cotidiana, destinados a evitar a rebeldia do corpo, o descontrole, o desequilíbrio dos humores, vigiar seu desempenho, circunscrevê-lo em regras estritas de higiene; domá-lo através da autodisciplina e da desobstrução sistemática das suas cavidades. Um estado de permanente atenção, vigilância e escuta do seu funcionamento interno passou a reger o comportamento íntimo, somando-se a novos modos de falar, gesticular, comer, se mover e se posicionar nas atividades diárias, tendo sido adotado um novo elenco de objetos como suporte material indispensável a esta nova mentalidade, conforme vem demonstrando amplamente a arqueologia de contextos domésticos.
Esses utensílios passaram a receber considerável atenção, já que uma sociedade só investe sua criatividade e seu esforço produtivo naquilo que é destinado a cumprir funções que são por ela valorizadas, o que explica a qualidade e diversidade desses artefatos nos registros arqueológicos da época. Não por acaso, os utensílios destinados a aparar os humores pelas vias superiores passaram a ser produzidos com formas e dimensões quase idênticas aos que recolhiam matérias expelidas pelas vias inferiores, mostrando tratar-se sem dúvida alguma de um mesmo processo, onde um mesmo código regia de modo inconsciente atividades aparentemente desconectadas.
Esses novos valores não emergiram naturalmente, espontaneamente, das condições internas da sociedade, como um realinhamento decorrente de suas próprias tensões, o que os faz à primeira vista parecerem “fora de lugar”, à luz da teoria desenvolvida por Schwarz (1977), na contradição do convívio do ideário do liberalismo europeu com o escravismo; mas foram em grande parte introduzidos por pressões externas, exercidas pelos interesses do capital internacional.
Tampouco o conjunto das medidas referidas foi adotado concomitantemente: parte dos cuidados com o corpo precederam os adotados com as moradias e o espaço urbano, tendo sido paradoxalmente a remoção sistemática de lixo para áreas periféricas — fundamental em um projeto de sanitarização nos moldes desejados — uma das medidas mais tardias.
A sociedade que cuidava de sua aparência pessoal e procurava promover seu asseio corporal era a mesma que vivia em casas recendendo a urina e excrementos; que preparava seus alimentos, servidos nas mais finas louças e cristais, em cozinhas imundas e fétidas; que reservava suas bem arrumadas salas às visitas, mas despejava todo o lixo que produzia nas soleiras de suas próprias portas. Bem penteada, finamente vestida e perfumada, passeava elegantemente por ruas e praças, em meio a toda sorte de imundícies. Com uma população profundamente doente, de faces lívidas e encovadas pela tísica, ingeria frivolamente “pink pills for pale people” para adquirir ares mais saudáveis, atacando os problemas na sua aparência, mas não na sua essência.
Muitas dessas medidas foram portanto meramente superficiais, como que adotadas, empregando-se aqui a consagrada expressão popular, “para inglês ver”; ou, colocando-a nos seus devidos termos, “para inglês lucrar”. A propaganda subliminar, a serviço do capitalismo internacional, incutiu novas idéias em uma sociedade despreparada para absorvê-las: introduzidas através de mecanismos sutis, como a persuasão e o aliciamento, acabaram por criar tão-somente uma fantasia de civilização, uma ilusão de desenvolvimento (Needell, 1987).
Não se trata aqui da importação ou da apropriação, simplesmente, por parte de uma sociedade dependente, periférica, das idéias em circulação nas grandes nações metropolitanas, mas sim da ação expansionista dos grandes centros produtores, própria do capitalismo mundial, na direção de seus mercados consumidores. Sob este prisma elas não estão “fora de lugar”, mas, por circularem no interior de um mesmo e único sistema, “são situações particulares que se determinam no processo interno de diferenciação do sistema capitalista mundial, no movimento imanente de sua constituição e reprodução”, como apontou Franco (1976, p. 62) em sua crítica à teoria de Schwarz. Assim sendo, elas estão rigorosamente ‘no lugar’, tendo assumido feições próprias, particulares, ao longo do processo da sua assimilação e implantação, onde, não raro, urinóis foram transformados em terrinas para servir canjica...
Novas mentalidades não se difundem ou se implantam meramente através de pressões, até porque podem ser acionados mecanismos reativos se não há condições propícias para sua adoção. É preciso que haja compatibilidade entre elas e a estrutura social, é preciso que uma lógica interna lhes dê sustentação (Campos, op. cit.), que haja, em suma, uma demanda, ou elas simplesmente não se instalam.
Cabe averiguar que circunstâncias tornaram tão favoráveis a sobrevivência do humorismo hipocrático nas mentalidades do século passado; que fatores fizeram a sociedade escravista buscar e encontrar nessa teoria as explicações para os mecanismos das suas doenças, as bases para a formulação dos seus diagnósticos e a fundamentação das práticas curativas para debelá-las, já que, como assinalou Loyola em sua apresentação ao trabalho de Boltanski (1979): “toda a constelação de atos e representações que constituem as práticas de saúde de uma população estão intimamente imbricados (como produtos e mecanismos de reprodução) a uma estrutura de classes”.
Fortemente fundada em um sistema dual, em pares de oposições rigidamente fixados em seus loci, procurou marcar a ferro e fogo no imaginário coletivo de dominantes e subalternos, brancos e negros, livres e escravos, opressores e oprimidos, a noção ‘hipocrática’ de que esses pares de oposições deviam ser mantidos em equilíbrio, para a ‘saúde e harmonia’ do corpo social. Balanceadas, essas oposições constituiriam uma ‘sociedade saudável’; desequilibradas, acionaram de pronto seus mecanismos de defesa, sua faculdade expulsora, eliminando o(s) fator(es) de perturbação.
Bipolarmente organizada sob um regime tirânico de opressão e coerção explícitas, onde os confrontos eram constantes, a sociedade escravista nada reteve, nada ocultou, fazendo inclusive da punição física um grande espetáculo. Empenhada em não reter dentro de si o que considerava como possíveis agentes de desordem, conflito e desequilíbrio social — ou seja, tudo que conseguisse escapar à sua vigilância, controle e escuta permanentes —, eliminava-os em público através dos instrumentos legítimos de purgação e drenagem do corpo social, como o pelourinho, onde negros rebeldes eram açoitados, “sarjados”, sangrados escancaradamente até a morte, sem maiores constrangimentos. Ao mesmo tempo, num singular e admirável mecanismo de inversão, compensação e equilíbrio de tensões e forças, fazia com que os brancos fossem por sua vez escarificados, sarjados e sangrados oficialmente, muitas vezes até a morte, pelos barbeiros negros.
Não podendo tolerar a rebeldia, o descontrole, o desequilíbrio do corpo social, sob pena do seu próprio desmantelamento, colocou seus corpos sob estritas regras disciplinares para, através deles, emitir mensagens de ordem, já que, ao domá-los, domava por extensão todo o corpo social.
Os hábitos de escarrar em público, de estimular artificialmente a evacuação, de aspirar rapé, de publicar em jornais textos sobre excreções de humores corporais e doenças sexuais são altamente simbólicos. Através deles, a sociedade que os adotou discorreu inconscientemente sobre si mesma, sua estrutura e visão de mundo, de tal forma que, ao desempenhar essas atividades banais, cotidianas, as pessoas estavam na verdade falando de relações sociais e dos princípios que estruturam essas relações. Urinóis, retretes, escarradeiras, tabaqueiras, purgantes, sanguessugas, ungüentos, jarras e bacias, elixires, ventosas, perfumes — assim como túmulos e cemitérios — e muitos mais fazem parte de um mesmo sistema de símbolos e emitem uma mesma mensagem. Objetos tão disparatados e de domínios aparentemente tão desconectados estão na verdade profundamente interligados, relacionados uns aos outros como diferentes manifestações de um mesmo código, organizados no interior de um mesmo esquema simbólico, e uma mesma ‘gramática’ parece reger esses dois ‘textos’. Por trás dessas escolhas culturais há uma ordem, uma estrutura, que fazem delas elementos indissociados no interior de um mesmo sistema.
A análise dessa cultura material, destinada ao trato corporal, recuperada arqueologicamente, permitiu entrever o tipo de relação que a sociedade escravista carioca do século passado desenvolveu com seu corpo, seus humores, com os produtos finais do seu metabolismo e, em última instância, consigo mesma. Ao contrário da sociedade capitalista do século XX, ela lidou abertamente não só com seu sangue e seus catarros, mas também com suas doenças íntimas. Adotando estratégias apenas superficiais de ocultação e estimulando vivamente a liberação dos fluidos corporais, continuou a expeli-los em público, como antes, passando apenas a canalizar o que até então era feito de modo indiscriminado.
A práticas corporais, anteriormente exercidas com liberdade quase total e ausência de mecanismos efetivos de controle, foram impostos alguns redirecionamentos e restrições. Submetidos a novas regras, os humores foram confinados a recipientes específicos, reposicionados no espaço doméstico e social, transformados em hábitos requintados e elegantes, mas sempre expostos a olhares alheios.
A eliminação através dos orifícios superiores, descobertos e visíveis, foi estimulada em domínios públicos, formais: nas ruas, salas de visitas e gabinetes masculinos da unidade doméstica. Já através dos orifícios inferiores, cobertos e invisíveis, a excreção foi limitada aos domínios privados, como quartos de dormir, ou mais raramente de banho e de retrete, porém exposta ainda aos olhos dos que circulavam pelos espaços íntimos da casa.
Insólitas para a sociedade do século XX, que dissimulou e escondeu completamente seus fluidos corporais, incapaz de suportar sua visão e exibição, essas práticas revelam a forma aberta como a sociedade escravista lidou com eles. No contato direto com o sangue, através das freqüentes sangrias; com a secreção nasal estimulada pelo rapé; com a saliva e o catarro projetados com habilidade e perícia nas escarradeiras de chão; com os anúncios ostensivos de medicamentos contra distúrbios íntimos, como catarros vaginais, doenças venéreas e prisão de ventre, ela expunha de forma transparente não só a natureza interna de seu corpo social, mas também o que se passava dentro dele.
Profundamente escatológica, a sociedade escravista expôs sem pudor a perversão de seu ideário, exibiu suas entranhas purulentas, seus humores viciosos, seus odores pestilentos, tal como nos espaços funerários encarou a morte, representando-a sem sutilezas ao adornar suas lápides tumulares com morcegos, caveiras e serpentes, entre outros signos de natureza semelhante.
No entanto, a ascensão e o fortalecimento da burguesia, desde então uma constante histórica (Sennet, 1993), a par da maior mobilidade social, da crescente penetração do ideário liberal e da intensificação das práticas capitalistas foram paulatinamente complicando esta relação direta. O deslocamento de fluidos do interior para o exterior do corpo, encarado com naturalidade e tolerado durante o período escravista, passou a ser objeto de extrema repugnância. Para as mentalidades burguesas, o que é de dentro não é para ser visto ou tocado, deve ser retirado do campo visual e olfativo, subtraído ao olhar, mascarado, bem tapado como as antigas retretes da aristocracia, das quais elas se apropriaram; fechado, ‘silencioso’, discreto como o criado-mudo. A exploração e a violência social foram mantidas, e até mesmo intensificadas no novo sistema, só que veladas, sutis, disfarçadas, de modo a não atentar contra a moralidade hipócrita da nova classe. Desapareceram dos cemitérios os signos sombrios, surgindo em seu lugar o erotismo e a luminosidade. Saiu de cena o rapé, os catarros foram confinados ao interior do corpo; as escarradeiras, onde até então vicejavam os fluidos viscosos, foram banidas das salas de visitas e prosaicamente transformadas em ‘curiosidades’. As matérias fecais, levadas pelas águas do revolucionário water closet do final do século (há tanto tempo inventado mas convenientemente ‘esquecido’), tornaram-se absolutamente invisíveis, tragadas para as profundezas da terra através de novas instalações hidráulicas, impelidas por uma aversão de evidente significado social. Conforme assinalou Rodrigues (1986, p. 167), ao discorrer sobre o nojo, “o homem aprende a detestar em si, metaforicamente, aquilo que em si a sociedade necessita odiar”, como bem demonstra a expressão latina in odio habere, que deu origem à palavra.
A descoberta da teoria microbiana e dos mecanismos de contágio da doença, cujos princípios se vulgarizaram apenas ao final do século e só então, trazendo benefícios e resultados (Flandrin, 1988, p. 228), deu o golpe de misericórdia no velho humorismo hipocrático, que já não mais atendia aos interesses da nova classe emergente. Determinando uma das mais notáveis revoluções na medicina, forneceu o argumento de peso que faltava para erradicar das mentalidades burguesas uma concepção que, desde os gregos, conseguiu perdurar por mais de dois milênios na história da humanidade.
A mudança na posição do corpo adotada pela burguesia na micção e na evacuação, de agachada (no urinol ou no chão) para sentada (na retrete, até então exclusiva da nobreza, e mais tarde no water closet), fortemente simbólica, passou a expressar a nova posição, no corpo social, de uma classe antes rebaixada, que agora se torna poderosa, altiva e dominante. Uma classe que, valorizando extraordinariamente as aparências e escondendo sua face sombria, não mais se submete, não mais se “agacha” diante de nada ou de ninguém e que até mesmo para expelir seus excrementos, urinando e defecando, reina soberana, “aristocrática”, vitoriosa, em seu “trono”, supostamente limpa, saudável, higienizada. A mesma classe que, num primeiro momento de afirmação, repudiou violentamente a velha aristocracia, para em seguida se identificar totalmente com ela, esmerando-se na apropriação e reprodução do seu comportamento e dos seus símbolos.
Texto de Tânia Andrade Lima em “Humores e Odores: Ordem Corporal e Ordem Social no Rio de Janeiro, Século XIX”, publicado em "História, Ciências, Saúde: Manguinhos. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, vol.II, nº3, nov.1995 — fev.1996, excertos pp.76-94. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.