ares e restaurantes tradicionais do Rio amargam crise agravada pela pandemia: patrimônio carioca está em risco; quatro estabelecimentos preservados pela prefeitura fecharam as portas
Foi-se o tempo em que era difícil até lavar o salão, de tanto entra e sai de gente no centenário Café Lamas, no Flamengo: cadeira não parava vazia, e, para limpar o chão do restaurante, era preciso pedir aos fregueses que levantassem as pernas, enquanto a água corria para lá e para cá. Mas o curso do Rio mudou, e a casa tem estado vazia, assim como muitos bares, botequins e restaurantes tradicionais. Com a crise agravada pela pandemia, alguns tiveram até que pedir a saideira.
Além do Lamas, outros 25 bares e restaurantes são preservados pela prefeitura como Patrimônio Cultural Carioca. A lista, instituída em 2011 e 2012, tem casas como o Nova Capela, na Lapa, que correram o risco de fechar, mas sobreviveram, e estabelecimentos, que, mesmo protegidos, sucumbiram. Fecharam as portas quatro deles, como o Restaurante 28, na Gamboa, que deixou de funcionar em 2015, e a Adega Flor de Coimbra.
As baixas mais recentes aconteceram na última semana. Depois de 67 anos sendo um dos berços da Bossa Nova, a Casa Villarino, no Centro, anunciou a suspensão do funcionamento “por tempo indeterminado”. Foi lá que, em 1956, Vinicius de Moraes e Tom Jobim selaram a parceria que deu origem ao musical “Orfeu da Conceição”. Não muito longe da antiga uisqueria, na Avenida Calógeras, o restaurante Sentaí também encerrou as atividades. Apesar de não ser protegida, a casa da Rua Barão de São Félix, também no Centro, era tradicional pelo cardápio de frutos do mar desde 1950.
No comando do Café Lamas há 35 anos, Milton Brito lembra bem do movimento de políticos e celebridades no restaurante, frequentado por nomes como Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Chico Anysio e Nelson Cavaquinho. Quando o Rio ainda era capital do país e o Palácio do Catete era sede do governo, até o presidente Getúlio Vargas, ele conta, dava umas escapadas à tarde para tomar chá por lá.
Os bons tempos ficaram na memória. O Lamas amarga uma queda de 70% no faturamento, mas fechar as portas da casa de 146 anos nunca foi uma opção. A solução encontrada foi a entrega em domicílio, o que hoje sustenta o restaurante. Os pratos tradicionais — Filé à Oswaldo Aranha, à Francesa e ao Metrô — seguem sendo os mais pedidos.
— Nossa clientela é mais velha, e ainda tem receio de sair. Nunca vi uma fase tão difícil, nem com o Plano Cruzado, nem com o Plano Collor — diz Brito.
No Bar Luiz, no Centro, o fantasma do fechamento ainda assombra Rosana Santos, dona do restaurante. Antes da pandemia, eram 14 funcionários, quadro reduzido agora para apenas cinco. No ano passado, a casa quase fechou, mas, depois de um movimento criado por frequentadores, que não aceitaram ficar sem a tradicional salada de batatas, o patrimônio carioca, fundado em 1887, conseguiu se manter de pé.
— A clientela é menor hoje do que quando eu anunciei o fechamento (no ano passado). Estávamos começando a planejar um futuro quando a pandemia chegou e jogou tudo para os ares — diz Rosana. — Mesmo com o bar aberto, nós ainda não faturamos nem perto do suficiente para cumprirmos com todas as obrigações.
No Café e Bar Brotinho, também conhecido como Bar da Dona Maria, na Tijuca, nem a placa azul, em formato circular, que sinaliza que o estabelecimento é patrimônio da cidade, está no lugar. A casa fechou há quatro anos. Dois anos mais tarde, reabriu, mas o negócio não durou. Agora, segundo vizinhos, o imóvel está sendo reformado para ser reaberto, mas sem muitas referências do antigo bar, fundado em 1950. O novo proprietário não foi localizado.
— Não estão restaurando. Pelo que vi, a única coisa que mantiveram foi o balcão. A parede de azulejos brancos onde estava escrito o nome do bar já não existe mais — contou um morador da Rua Garibaldi, que preferiu não se identificar.
Além de músico e compositor, Moacyr Luz diz ser um “garimpeiro” de botequins. O comandante do Samba do Trabalhador é autor de dois livros sobre a arte de conhecer a cidade através de seus pés-sujos: “Manual de sobrevivência nos butiquins mais vagabundos” (2005) e “Botequim de bêbado tem dono” (2008). O artista era assíduo no Dona Maria, onde fundou um bloco de carnaval com os frequentadores da birosca, o Nem Muda, Nem Sai de Cima.
— Conheci o bar em 1983, um lugar lindo. Comecei a frequentar e logo levei Aldir Blanc, Beth Carvalho, Zé Keti, Wilson Moreira, Teresa Cristina. Quem você pensar, eu levei lá — lembra.
Para Moacyr Luz, o fechamento de casas como o Bar Brotinho e a Villarino é uma perda para a cultura do Rio e do país:
— Conheci alguns bares maravilhosos dessa cidade que foram perdidos, esquecidos. Para mim, é um desencanto. Considero que os bares do Rio são um patrimônio como o Pão de Açúcar ou o Cristo — avalia.
Outra casa que enfrenta dificuldades já há alguns anos é o Cosmopolita, na Lapa, onde o político e diplomata Oswaldo Aranha batizou um dos pratos mais tradicionais da cidade. Fundado em 1926, hoje o restaurante tem apenas três funcionários, incluindo o único garçom, José Maria Rodrigues, de 60 anos.
— Já tivemos épocas bem melhores. Antigamente, chegávamos a servir até 60 filés à Oswaldo Aranha por dia. Hoje, quando tem cinco, seis pedidos, é muito — lamenta Zé Maria, há 16 anos no restaurante.
Incluído na lista da prefeitura, o Bip Bip, em Copacabana, mantém as portas fechadas, mas com rodas de samba virtuais nas noites de segunda e quinta-feira.
— Conseguimos nos manter com uma campanha de colaboração dos amigos do bar e estamos esperando melhorar as condições para reabrir. Com novo pico da Covid-19, é inviável. Mas fechar de vez, não vai — diz o Tiago Prata, um dos organizadores do boteco.
Mas não há só tristeza nas mesas dos bares tradicionais. Um caso de sucesso é o Velho Adônis, em Benfica. O espaço, reaberto em 2018, tem atraído um bom público, mas manteve o serviço de delivery, que garantiu o faturamento durante o pico da pandemia.
— Ainda estamos pagando os prejuízos do tempo em que o bar ficou fechado, mas me surpreendi com o movimento — disse o administrador João Campos.
Com a pandemia, a média de público nos bares e restaurante da cidade está entre 50% e 60% do que era visto antes. No Centro, a clientela gira em torno de 20%, e 480 estabelecimentos fecharam as portas este ano. Para Fernando Blower, presidente do Sindicato dos Bares e Restaurantes do Rio (SindRio), faltam incentivos para os bares e restaurantes tombados.
— Deveria haver uma política de fomento, com redução de impostos como IPTU, taxa de uso de calçada, além de investimentos nos entornos e até mesmo a criação de um roteiro de bares e restaurantes tradicionais que esteja à disposição dos turistas. Falta esse olhar de cuidado com a história e a cultura da cidade — avalia.
Texto de Letícia Lopes publicado em "O Globo" de 25 de novembro de 2020. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser publicado por Leopoldo Costa.