O chef-açougueiro avisa: porco é coisa séria. E ao som de Tonico e Tinoco, vai sacando na ponta da faca pancetta, copa lombo, bochecha, peixinho – numa aula ‘para ninguém mais ser enganado em açougue’.
Destrinchar o porco
Bota reparo: pouca coisa orna tanto quanto Jefferson Rueda e porco. É como se “porco”,falado à maneira urbana, levasse a gente a pensar num bicho magrinho e solitário. O que é preparado por Rueda traz saliva à boca – só podem ser os erres arrastados –, aroma de mato e de flor.
Ninguém parece preocupado em ver o destrinchamento do porco no elegante salão do segundo andar do Attimo, o novo restaurante de Rueda na Vila Nova Conceição. Não orna. Ou será que orna demais? Com avental de açougueiro, o chef aguarda os 20 visitantes ao som de Tonico e Tinoco e ao lado das duas metades da carcaça de um bicho que, em vida, pesava 80 quilos.
“Aqui a gente vai fazer tudo, do focinho ao rabo.Só não tem serviço de porco”, brinca Rueda. Mas destrinchar um porco, diz ele, é coisa séria. Rueda até passa a falar com menos sotaque, trazendo de volta os esses dos plurais, e colocando um Power Point para explicar as atividades. Na aula externa mais concorrida do 6.º Paladar Cozinha do Brasil – esgotada em três dias – uma banda do porco sem a fissura (os órgãos internos) é destrinchada em pouco menos de duas horas. Rueda sabe do assunto: quando criança, pediu de aniversário dez galinhas, para “aprender a matar”. “Meu pai era mais louco que eu”,lembra.“Cheguei em casa e tava lá, ‘pipipipipi’, cheio de galinha cacarejando.” Aos 16, foi buscar picanha no açougue e levou uma peça de 3 quilos para casa. O pai deu bronca, os tios zombaram. De vergonha, procurou o melhor ponto da cidade para aprender o ofício. Foi açougueiro por quase três anos. Largou para estudar gastronomia.
No Attimo ele mostra que é fácil entender a anatomia do bicho. Basta lembrar do corpo do boi, do cavalo: os cortes estão todos ali. Vai do açougueiro descobrir as delícias escondidas entre músculos e nervos. O cérebro do porco não veio.
“Sabe o que se faz com miolo de porco? Bolinho de espinafre”, conta Rueda. E todos se assustam. Ao buscar, em vão, um bolinho que tivesse a cremosidade do de sua mãe, foi investigar o segredo.“A mãe enganava a gente. Dizia que era a mão dela, mas a liga era miolo de porco.”
Da cabeça (essa sim, intacta), ele tira a bochecha, “o filé mignon do porco”. E manda trazer da cozinha, no térreo, o estômago – com que se faz sarapatel – e as tripas limpas (para embutidos), esterilizadas e embaladas sob refrigeração. De volta ao porco, vai descendo, com serrote e faca de ponta. Da traseira, separa o pernil, corte por corte: picanha, alcatra, coxão mole, lagarto. Ensina a identificar copa lombo, pedaço de carne mais escuro que vai até a altura da 3.ª vértebra. E também a limpar um carré, osso por osso. Da barriga, separa a pancetta – “o ‘doce’ está aqui, ó, perto dos tetos do porco”.
Da paleta (dianteira), separa o acém e o peixinho, que de tão mole é vendido por açougueiro matuto como filé mignon. “Ninguém aqui vai mais ser enganado em açougue, hein?” Depois de dividi-lo, Jefferson monta uma barraca de porco diante da enorme mesa de degustação. E se põe a servir nada menos que 12 pratos. Entre eles, a papada de porco com ovas, purê de mandioquinha e beldroega e uma terrine de pé, miolo e rabo com ervas. A turma lambe os dedos ao provar um dos pratos do menu-degustação que Rueda antecipa para o grupo: a pururuca, delicada feito mandiopã. Tá vendo só? Claro que orna.
Texto publicado no caderno "Paladar", p.8, do jornal "O Estado de S. Paulo" de 5 de julho de 2012. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.