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CORPO FEMININO: PAISAGENS E PASSAGENS

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“Fazer-se bela, ser mulher”

Sobre a cera dos corpos femininos, o século XXI vai imprimindo suas marcas. Nos últimos anos, a mulher brasileira viveu diversas transformações físicas. Viu ser introduzida a higiene corporal, que, alimentada pela revolução microbiológica, transformou-se em uma radicalização compulsiva e ansiosa. Acompanhou a invenção do batom, em 1925; do desodorante, nos anos 1950. Cortou os “cabelos à la garçonne”, gesto sacrílego contra as bastas cabeleiras do século passado. O aprofundamento dos decotes levou-a a aderir à depilação. O espartilho, graças ao trabalho feminino nas fábricas, diminuiu e se transformou em sutiã, para possibilitar maior movimentação dos braços. “Manter a linha” tornou-se um culto. A magreza ativa foi a resposta do século à gordura passiva da Belle Époque. O jeans colado e a minissaia sucederam, nos anos 1960, ao erotismo da mão na luva e das saias à altura dos tornozelos, características dos anos 1920. Com o desaparecimento da luva, essa capa sensual que funcionava ao mesmo tempo como freio e estímulo do desejo, surgiu o esmalte de unhas.

No decorrer do século XX, a mulher se despiu. O nu, na mídia, na televisão, em revistas e praias, incentivou o corpo a se desvelar em público, banalizando-se sexualmente. A solução foi cobri-lo de cremes, vitaminas, silicones e colagens. A pele tonificada, alisada e limpa apresenta-se idealmente como nova forma de vestimenta, que não enruga nem “amassa” jamais. Uma estética esportiva votada ao culto do corpo, fonte inesgotável de ansiedade e frustração, levou a melhor sobre a sensualidade imaginária e simbólica. Diferentemente de nossas avós, não nos preocupamos mais em salvar a alma, mas sim o corpo da desgraça da rejeição social. Nosso tormento não é o fogo do inferno, mas a balança e o espelho. “Liberar-se”, ao contrário do que queriam as feministas, transformou-se em sinônimo de lutar, centímetro por centímetro, contra a decrepitude fatal – decrepitude, agora, culpada, pois o prestígio exagerado da juventude tornou a velhice vergonhosa.

O diagnóstico das revoluções femininas até o século XX é, por assim dizer, ambíguo. Ele aponta para conquistas, mas também para armadilhas. No campo da aparência, da sexualidade, do trabalho e da família, houve conquistas, mas também frustrações. A tirania da perfeição física empurrou a mulher não para a busca de uma identidade, mas de uma identificação. A revolução sexual eclipsou-se diante dos riscos da aids. Se trouxe independência, a profissionalização trouxe também estresse, fadiga e exaustão. A desestruturação familiar onerou, sobretudo, os dependentes mais indefesos: os filhos.

Nossa sociedade – não é a única, é bom que se diga – mira, cada vez mais, os valores de juventude e progresso. Ao mesmo tempo em que se reconhece a importância da saúde como fonte de prazer, e a medicina tem feito inúmeros avanços para nos prover com bem-estar, todos os esforços são investidos para dissolver a velhice; para reduzi-la. O aumento da esperança de vida se tornou um problema, pois as mulheres não querem mais “envelhecer”. Elas se negam a mudar. A se transformar. Como lidar com essas tensões?

Sexo belo ou sexo frágil, tais denominações vinculam-se às imagens que nossa sociedade fez deles, de sua beleza ou de sua saúde. No passado, como já vimos, o corpo da mulher era visto com as marcas da exclusão e da inferioridade. Cristalizada pelas formas de pensar de uma sociedade masculina, a evocação das imagens do corpo e da identidade feminina, na pluma de diferentes autores, refletia apenas subordinação: ele era menor, os ossos pequenos, as carnes moles e esponjosas, e o caráter, débil. A subordinação expressava-se, ainda, na capacidade de reproduzir, quando solicitada pelos homens. Contudo, na outra ponta dessa submissão, a mulher era senhora de beleza e sensualidade – aliás, beleza considerada perigosa, pois capaz de perverter os homens; sensualidade mortal, pois se comparava a vagina a um poço sem fundo, no qual o sexo oposto naufragava. As noções de feminilidade e corporeidade sempre estiveram, portanto, muito ligadas em nossa cultura.

Hoje, depois de séculos de ocultação, a sociedade entregou-se a uma verdadeira sacralização dos corpos. A higiene e o esporte primeiro reabilitaram os corpos masculinos; mas as mulheres, com rapidez, seguiram os homens. Em nossos dias, a identidade do corpo feminino corresponde ao equilíbrio entre a tríade beleza-saúde-juventude. As mulheres, mais e mais, são impelidas a identificar a beleza dos corpos com juventude, a juventude com saúde. O interessante, diz o antropólogo Bruno Remaury, é que essas são basicamente as três condições culturais da fecundidade, portanto, da perpetuação da linhagem. Em todas as culturas, a mulher é objeto de desejo. Em pouquíssimas esse desejo está dissociado da aptidão para a maternidade. Daí a valorização dos quadris femininos, berço e sementeira da raça humana.

Assim sendo, não deixa de ser curioso constatar que, numa sociedade em que as mulheres, graças aos contraceptivos, já têm o controle da própria sexualidade, o modelo resultante de tantas mudanças não trouxe maiores novidades. E pior: a redução brutal dos quadris, associada ao consumo de pílulas anticoncepcionais, não alterou, sob certos aspectos, sua situação. Mesmo tomando posse do controle do corpo, mesmo regulando o momento de conceber, a mulher não está fazendo mais do que repetir grandes modelos tradicionais; ela continua submissa – não mais às múltiplas gestações, mas a tríade de “perfeição física”. A associação entre juventude, beleza e saúde, modelo das sociedades ocidentais, aliada às práticas de aperfeiçoamento do corpo, intensificou-se brutalmente, consolidando um mercado florescente que comporta indústrias, linhas de produtos, jogadas de marketing e espaços nas mídias.

A intensificação desse modelo corporal é tão grave, que suas consequências na forma de técnicas e práticas vêm sendo bastante discutidas por sociólogos e historiadores. A pergunta que ainda cabe é: que tipo de imagem preside a ligação entre as mulheres e essa tríade? Foi sempre assim? O que mudou? O interesse dessas perguntas é que a imagem corporal da mulher brasileira está longe de se desembaraçar de esquemas tradicionais, ficando distante, portanto, da propalada liberação dos anos 1970. Mais do que nunca, a mulher sofre prescrições. Agora, não mais do marido, do padre ou do médico, mas do discurso jornalístico e dos publicitários que a cercam. No início do século XXI, somos todas obrigadas a nos colocar a serviço do próprio corpo, essa sendo, sem dúvida, outra forma de subordinação – que, diga-se de passagem, é pior da que se sofria antes, pois, diferentemente do passado, na qual quem mandava era o marido, hoje o algoz não tem rosto. O algoz é a mídia. São os cartazes da rua. O bombardeio de imagens na televisão.
 
“No princípio... éramos morenas”

Ao desembarcar na então chamada Terra de Santa Cruz, os recém-chegados portugueses impressionaram-se com a beleza das índias: pardas, bem-dispostas, com cabelos compridos, andando nuas e “sem vergonha alguma”. A Pero Vaz de Caminha não passaram despercebidas as “moças bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos compridos pelas espáduas”. Os narizes, segundo o mesmo narrador, eram “bem feitos”, assim como tinham “bons rostos”. Os corpos, “limpos e tão gordos e tão formosos que não pode mais ser”. As tupinambás se pintavam de tinta de jenipapo, “com muitos lavores a seu gosto [...] e põem grandes ramais de contas de toda a sorte nos pescoços e nos braços”, segundo informa, em 1587, Gabriel Soares de Souza, um dos primeiros cronistas a descrever a gente do Novo Mundo. Já o capuchinho francês Yves D’Evreux acentuava o gosto por banhos e por se pentear “muitas vezes”.

É bem verdade que as características de nossas belas estavam um tanto distantes do modelo renascentista europeu. Os grandes pintores do período – por exemplo, Veronese, o veneziano – preferiam mulheres de cabelos claros, ondulados ou anelados, com rosto e colo leitoso como pérola, bochechas largas, fronte alta, sobrancelhas finas e bem separadas. O corpo devia ser “entre o magro e o gordo, carnudo e cheio de suco”, segundo um literato francês. Como se dizia então, a “construção” tinha de ser de boa carnadura. A metáfora servia para descrever ombros e peito forte, suporte para seios redondos e costas onde não se visse um sinal de ossos. Até os dedos afunilados eram cantados em prosa e verso, dedos de unhas rosadas finalizadas em pequenos arcos brancos. Joias e pedrarias, bem diversas dos ramais de contas e da tinta de jenipapo que recobriam as índias, reafirmavam o esplendor da união entre elementos anatômicos e elegância.

Gilberto Freyre foi pioneiro em captar o interesse dos portugueses, não pelo modelo clássico que acabamos de descrever, mas pela “moura encantada”: segundo ele, tipo delicioso de mulher morena de olhos pretos, envolta em misticismo sexual – sempre de encarnado, sempre penteando os cabelos ou banhando-se nos rios ou nas águas de fontes mal-assombradas –, que os lusos vieram reencontrar nas índias nuas e de cabelos soltos: “Que estas tinham também os olhos e os cabelos pretos, o corpo pardo pintado de vermelho e, tanto quanto as nereidas mouriscas eram doidas por um banho de rio onde se refrescasse sua ardente nudez e um pente para pentear o cabelo. Além do que, eram gordas como as mouras”.

Ele lembra ainda que, enquanto em terras brasileiras prevalecia o modelo moreno, em Portugal, a moda italiana vingava. Lá, na época de Felipe II, as mulheres “das classes altas tingiam os cabelos de cor loura, e lá na Espanha, várias arrebicavam o rosto de branco e encarnado para tornarem a pele, que é um tanto, ou antes, muito trigueira, mais alva e rosada, persuadidas de que todas as trigueiras são feias”. Segundo Freyre, poderia se afirmar que a mulher morena era a preferida dos portugueses para o amor físico. A moda da mulher loura, limitada às classes altas, teria sido mais repercussão de influências exteriores do que expressão do gosto nacional. Prova disso, segundo o mesmo autor, é que nosso lirismo amoroso não revela outra tendência senão a glorificação da mulata, da cabocla, da morena celebrada pela beleza dos olhos, pela alvura dos dentes, pelos dengues, quindins e embelecos, muito mais do que as “virgens pálidas” e as “louras donzelas”. Estas surgiriam em um ou outro soneto ou modinha, sem o relevo das outras. A moda da loura, aliás, só desembarcaria no Brasil bem mais tarde.

Affonso Romano de Sant’Anna lembra que não faltaram marcas do apetite masculino em relação à morena ou mulata na literatura dos séculos XVIII e XIX. O riso de pérolas e corais, os olhos de jabuticaba, as negras franjas e a cor do buriti são os signos sedutores dessa fêmea que convida ao paladar, à deglutição, ao tato; são elas as verdadeiras presas do desejo masculino, mulheres-caça, diz ele, que o homem persegue e devora sexualmente.

Morenice e robustez eram, então, padrões de beleza. Não apenas na pluma dos poetas, mas ainda na pena de viajantes estrangeiros de passagem pelo Brasil, sensíveis, eles também, às nossas Vênus. Coube-lhes deixar o registro do que era percebido e apreciado – registro, diga-se, de uma forma de reagir à beleza. As palavras sobre nossas avós as reproduz, ao mesmo tempo em que as modela e esculpe. Registrava, cuidadoso, em 1757, M. de la Flotte:

As portuguesas do Brasil são, em geral, extremamente honradas e têm o corpo bem feito; seus cabelos são de um belo castanho-escuro e os seus olhos, grandes e negros, deixando transparecer uma espécie de languidez que denuncia um pouco de crueldade. Suas maneiras são doces e afáveis, sobretudo em relação aos estrangeiros. Em matéria de amor, entretanto, é muito perigoso despertar o seu ciúme, pois elas são capazes de grandes excessos.

Por sua vez, Juan Francisco Aguirre anotava em 1782:

As mulheres do Rio de Janeiro vestem-se como as de Portugal. Há algumas senhoras que não dispensam o uso de mantilhas e dos penteados adornados com fitas. O que mais lhes interessa, porém, é estarem bem calçadas e empoadas... Os portugueses que as contemplam julgam que estão diante das mais formosas damas do universo. A moda não tem grande penetração entre as mulheres do Rio de Janeiro e o gosto é bastante flexível, o que faz com que as cores e os padrões das vestimentas variem muito. Uma noite, no teatro, parou ao nosso lado uma senhora que, em razão dos grandes anéis e de outras joias que trazia, era apelidada pelas gentes da terra de Tabuleta ou Vitrine de Ourives. Essa mesma dama usava um penteado copiado de uma inglesa que há pouco passara por esta cidade a caminho do Oriente.

Um dos fundadores da Austrália, de passagem pelo Rio de Janeiro em 1787, legou-nos, também suas impressões:

As mulheres, antes da idade de casar, são magras, pálidas e delicadas. Depois de casadas, tornam-se robustas, sem, contudo, perder a palidez, ou melhor, uma certa cor esverdeada. Elas têm os dentes muito bonitos e melhor tratados do que a maioria das mulheres que habita países quentes, onde o consumo de açúcar é elevado. Seus olhos são negros e vivos e elas sabem como ninguém utilizá-los para cativar os cavalheiros que lhes agradam. Em geral elas são muito atraentes e suas maneiras livres enriquecem suas graças naturais. Estando um dia na casa de um rico particular do país, comentei com ele minha surpresa relativa à grande quantidade de cabelos das damas e acrescentei que me era impossível acreditar que tais cabelos fossem naturais. Esse homem para demonstrar que eu estava errado, chamou sua mulher, desfez seu penteado e, diante de meus olhos, puxou duas longas tranças que iam até o chão. Ofereci-me, em seguida, para rearranjá-los o que foi aceito com simpatia.

No passado ou hoje, os cabelos femininos ainda são altamente valorizados em nossa cultura.
 
A cultura feminina das aparências

Enquanto poetas e viajantes despiam o que a sociedade cobria, uma rede de objetos, matérias, cores e odores buscava transformar o corpo feminino – dissimular, apagar, substituir as imperfeições graças ao uso de pós, perucas, unguentos, espartilhos e tecidos volumosos era comum. A pele azeitonada, a robustez física, as feições delicadas e a longa cabeleira passavam por processos feitos de bens e serviços, utensílios e técnicas, usos e costumes capazes de traduzir gostos e rejeição, preceitos e interditos – muitos deles, aliás, já bem conhecidos na Europa moderna. Lá, desde o século XVI circulavam livros de receitas – os segredos – de beleza. A cosmética evoluía. A depilação das sobrancelhas, a pintura dos olhos e dos lábios, a coloração das maçãs do rosto, o relevo dado à fronte atestavam uma nova representação da mulher. Preparações variadas desdobravam-se em maquiagens pesadas, muito parecidas a máscaras.

Difíceis de manejar, muitos pós deviam ser diluídos em água de rosas, servindo para cobrir a cara inteira. Elaborado a partir de pau-brasil ou cochinilha e, mais raramente, de cinabre, o rouge se apresentava na forma líquida ou de unguento, quando se lhe adicionava gordura de porco ou cera. Servia para tingir boca e bochechas e tinha consistência ideal quando aplicado quente. Resistência era um critério recomendado: os bons tinham que durar entre sete e trinta dias. A cor variava do carmim, para passeios ao ar livre, ao vermelhão, usado à luz de velas, passando por um “meio-rouge”, utilizado para dormir.

Complexas ou onerosas, boas e baratas, tais receitas eram feitas com base em ingredientes diversos. A virtude de algumas atravessou os séculos. A ação depilatória do sulfato de arsênico, malgrado sua toxicidade, por exemplo, é uma delas. O leite de cabra e a gordura de cavalo, pela analogia com os longos pelos do animal, garantiam cabelos soberbos e sedosos. A pele e a gordura de cobra prometiam fazer a pele feminina se renovar. Pérolas esfregadas aos dentes garantiam brilho e brancura. Milagrosa, para o mesmo fim, era a pedra-pomes dormida no vinho branco e transformada em pó. Pomadas e pentes davam forma perfeita aos pelos faciais restantes. Coberto de alvaiade, o rosto era totalmente emaciado com a finalidade de cobrir as marcas deixadas por doenças, então corriqueiras: varíola, catapora, manchas de sol, acne.

Numa época em que o dimorfismo sexual era lei, a figura feminina era marcada, nas partes baixas do corpo, por curvas, e no rosto, pelos signos da feminilidade. A cabeleira em tranças e birotes era alvo de todas as preocupações. Monumento de afetação, extravagância e desmesura, ela se equilibrava graças a camadas de farinha empoadas pelo cabeleireiro. Embranquecer e perfumar os cabelos graças à utilização do amido, de ossos secos e transformados em pó depois de bem pilados, de madeiras raspadas e reduzidas a pó, era ofício desses cúmplices da intimidade feminina. Depois, os cabelos eram frisados, eriçados, encrespados e banhados em pomadas. Os penteados mais conhecidos eram o “tapa-missa” e o “trepa-moleque”, este último feito com uma infinidade de pentes sobre os quais se empilhavam perucas, inclusive as feitas com cabelos de moças defuntas.

O resultado final? Nuno Marques Pereira, cronista dos hábitos baianos do início do século XVIII, é quem descreve as mulheres que traziam “enfeites e toucados nas cabeças, e vinha a ser que se usava naqueles tempos uma moda que chamavam patas, feitas também de cabelos, porém presos em arames. Foi crescendo tanto a demasiada moda, [...] e tão disformes, que para entrar uma mulher com este enfeite nas igrejas, era necessário que estivessem as portas desimpedidas de gente”!

A mania dos cabelos longos vicejou. E como! Cem anos mais tarde, na rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, a loja do cabeleireiro Cabeça de Ouro exibia na vitrina uma formosa trança que media onze palmos e meio: “muito vasta, de cabelos finos e de cor castanha, quase pretos, de formosa nuance, e tão longa se estendia, que se mostrava em três lanços ou voltas na vidraça”. O artefato, transformado em objeto de desejo de centenas de senhoras, fazia também sonhar os homens. É um deles quem nos conta:

Eram cabelos de comprimento extraordinário e de beleza notável; mediam nada menos do que dois metros, fora o que deles ficara ornando ainda a cabeça da senhora que, sem dúvida, a seu pesar se privara de tesouro tão singular; deviam, pois, ter sido na cabeça de sua dona cabelos de doze a treze palmos de comprimento [...] Quando ela os abandonasse soltos, aqueles imensos e formosos cabelos não lhe cairiam até os pés, como os imaginários de uma das mais belas heroínas dos romances de Alexandre Dumas, arrastar-se-iam seis ou sete palmos pelo chão, como estupenda cauda de um manto de madeixas.

Apesar da pobreza material que caracterizava a vida diária no Brasil-colônia, a preocupação feminina com a aparência não era pequena; porém, era controlada pela Igreja. A mulher, perigosa pela beleza, pela sexualidade, pela associação com a natureza, inspirava toda a sorte de preocupações dos pregadores católicos. Não foram poucos os que fustigaram o corpo feminino, associando-o a um instrumento do pecado e das forças obscuras e diabólicas que ele representava na teologia cristã.

Aquela “bem parecida”, sinônimo no século XVII para “formosa”, era a pior! Logo, modificar a aparência ou melhorá-la pelo emprego de artifícios implicava adensar essa inclinação pecaminosa. Mais: significava, também, alterar a obra do Criador, que modelara os filhos à Sua imagem e semelhança. Interferência impensável, diga-se de passagem. Vários opúsculos circulavam tentando impedir as vaidades femininas. Os padres confessores, por exemplo, ameaçavam com penas infernais:

Estar à janela cheia de bisuntos, levantar os fatos (os vestidos) quando não há lama, levantar a voz entoando falsete, por ostentar melindre; tingir o sobrolho com certo ingrediente e fazer o mesmo à cara com tintas brancas e vermelhas, trazer boas meias e fingir um descuido para mostrá-las, rir de manso para esconder a podridão ou a falta dos dentes e comer mal para vestir bem.

Apesar de tantas advertências, a mulher sempre quis ser ou fazer-se bela. Se a Igreja não lhe permitia tal investimento, a cultura lhe incentivaria a forjar os meios para se transformar. Os dispositivos de embelezamento, assim como o cortejo de sonhos e ilusões que os acompanhavam, eram de conhecimento geral. O antropólogo Bruno Remaury lembra que o investimento maior concentrava-se no rosto, lugar, por excelência, da beleza. Outras partes do corpo eram menos valorizadas. Consequência direta dessa valorização, o embelezamento facial recorria a certa incipiente técnica cosmética. A preocupação maior era, em primeiro lugar, tratar a pele com remédios. Seguia-se a maquiagem com pós, “bisuntos” e “tintas vermelhas e brancas”, como já se viu.

Desabrochava, nessa época, uma visão médica da cosmetologia, fortemente retomada no século XX pelos fabricantes de cosméticos. Assim como hoje, há quatrocentos anos, a ideia fundamental consistia em esconder os males de maneira artificial. Afecções cutâneas e má coloração da tez eram consideradas preocupantes. Para combatê-las, usou-se, até o aparecimento da química, um tipo de farmacopeia doméstica à base de produtos que ainda hoje vigoram: cera de abelha, mel, amêndoas doces, gordura de carneiro, água de rosas, leite de pepinos, glicerina, benjoim. Não à toa, a expressão make-up, que designa “maquiar-se” em inglês, também quer dizer “inventar”, “imaginar”. To make-up a story: todas as mulheres têm direito a se inventar, a se projetar na vida, como em uma tela de cinema.
 
Desvelar-se, revelar-se, descobrir-se

Vejamos como tudo começou. A partir do século XVI, o crescimento das trocas econômicas e comerciais incrementou o aparecimento de especiarias que vinham do Oriente ou da América para a Europa no fundo das naus: limão, arroz, açúcar, manteiga de cacau, que foram acrescidos ao receituário tradicional. Havia, contudo, produtos mais prosaicos. O “leite de mulher parida”, por exemplo, era considerado eficiente para a queda de cabelo, sinais e cicatrizes, erisipela, icterícia e “cancro”. Os excrementos de animais, mais conhecidos como “flores brancas”, foram largamente utilizados para clarear e cicatrizar sinais na pele – excrementos, aliás, que podiam ser tanto de sofisticado crocodilo africano quanto de prosaico cachorro doméstico. A urina, poderoso cicatrizante, idem. É obvio que tais produtos não eram aplicados sobre a pele sem certos cuidados: cozimentos, exposição ao sol, macerações buscavam decompor ou desmaterializar o componente original. A destilação da alquimia alimentava o imaginário de pureza associado aos tratamentos cosméticos – era preciso purificar para embelezar. Matérias puras, límpidas, essenciais são, ainda hoje, associadas à eficácia de certos produtos. A ideia platônica de aliar beleza e pureza persistiu, malgrado a passagem dos séculos.

O curioso é que o limite entre a cosmética saudável, aquela capaz de sanar males e doenças, e a cosmética para “embelezar” era estreito. As mulheres resvalavam de uma para a outra, sob o olhar sempre condenatório de maridos, padres e médicos. A crítica ao uso excessivo de tintas, cremes e unguentos se acumulava. Perseguia-se a possibilidade de vê-las se assemelhar a cortesãs ou prostitutas. O critério, portanto, era o “muito” ou “pouco” maquiada, critério esse que variou ao longo dos tempos. Basta pensar no “meio-rouge” que as mulheres usavam, ao deitar-se, no século XVIII!

Aos cuidados com a beleza do rosto somaram-se outros, relativos à roupa. O caráter ambivalente dessa última, desvelando ao cobrir, revestindo as partes mais cobiçadas da anatomia, constituía, ao mesmo tempo, um instrumento decisivo e um obstáculo à sedução. O filósofo francês Montaigne protestava: “por que será que as mulheres cobrem com tantos impedimentos, uns sobre os outros, as partes onde habita nosso desejo? Para que servem tais bastiões com os quais elas armam seus quadris, se não a enganar nosso apetite, e a nos atrair ao mesmo tempo em que nos afastam?”. O pudor aumentava a cobiça, que deveria se atenuar.

Quanto mais afastamos do campo do discurso e do olhar os objetos referidos ao sexo, mais eles invadem e habitam o imaginário. Em todas as latitudes, o jogo entre roupa e corpo foi uma constante. As várias funções condicionam formas que implicam comportamentos, posturas, gestos que, por sua vez, influenciam essas mesmas formas e sua função. Sabemos que uma mulher não caminha com saltos altos da mesma maneira que com chinelos. Da mesma maneira, roupas sempre variaram de acordo com circunstâncias, classes, papéis sociais. A oposição entre o amplo e o justo, o longo e o curto, que traduziam o desconforto ou a facilidade de movimentos, reproduzia, por exemplo, na Idade Média, as clivagens que separavam nobres e camponeses.

Os primeiros andavam e gesticulavam no ritmo ditado pela lentidão das cerimônias da corte; os segundos mostravam uma negligência sublinhada pela vivacidade do caminhar e pela amplitude dos gestos; uns manifestavam uma ociosidade digna do status; outros, um envilecido labor manual. Temos conhecimento de que, com o passar do tempo, a roupa curta caminharia para um ajuste e encurtamento crescentes, até ser considerada, no século XX, funcional. E sua funcionalidade tornou-se um valor de prestígio. A roupa longa, por sua vez, subsistiu como vestimenta de padres, juízes, professores, exigindo, pelo caráter solene, certa postura, certo modo de se locomover. Ela representa, ainda, a ideia simbólica de calma e majestade, reproduzindo o sentimento de gravidade e decoro que estiveram em sua base.

Entre os séculos XVI e XVIII, a roupa, quanto a forma, cor e substância, significou uma condição, uma qualidade, um estado. Não havia dúvidas em relação a isso. Instrumento de regulação política, social e econômica, as “leis suntuárias” existiam para manter visíveis os níveis sociais de quem se vestia. O luxo de tecidos e bordados era apanágio da aristocracia, pois seus membros não podiam ser confundidos com os das camadas emergentes. Semelhante ao que ocorre hoje com o uso de roupas de grife? Não. Algo muito mais rígido.

Nessa época, a roupa tinha um papel político-social; funcionava como signo de hierarquização, fixidez ou mobilidade dos grupos. Um exemplo? Em Portugal, judeus deveriam usar uma carapuça amarela, e mouros, uma lua de pano vermelho de quatro dedos, “cosida no ombro e na capa”, segundo o código de leis conhecido como Ordenações Filipinas.

Tais leis suntuárias funcionavam? Tem-se notícia de que mais freavam, do que impediam, o porte de determinadas vestimentas ou tecidos por quem não devia portá-las. Um exemplo? Nos finais do século XVII, durante o reinado de Luís XIV, chegou-se a cercear, de acordo com o nível social, a grossura dos galões ou a matéria dos botões. Restritos ao uso masculino, os botões só então passaram a ser usados por mulheres, antes obrigadas a manusear um sem-número de laços e fitas para fechar as vestimentas. Mas não há dúvida de que, com a emergência da burguesia e o declínio do feudalismo, tem início a corrida pelo consumo. Até então, as qualidades de vestimentas femininas eram baseadas na modéstia e na moderação, como pregava a Bíblia.

No século XVIII, tudo se precipitou. A gestão das rivalidades entre cortesãos começou a escapar progressivamente aos soberanos, e a moda, que desde o Renascimento parecia ter tendências seculares, adquiriu sua acepção moderna de tendência passageira, de gosto coletivo e efêmero. É essa, pelo menos, a definição que lhe é dada, em 1690, em um dicionário francês. Viajantes estrangeiros de passagem por Paris ficavam bestificados com o número de butiques e casas de comércio que ofereciam serviços para quem quisesse estar na moda. Cabeleireiros, peruqueiros, sapateiros, tintureiros, perfumistas, bordadeiras, costureiras, lavadeiras, joalheiros, enfim, os mais variados comerciantes eram responsáveis pela multiplicação de conceitos: beleza ou feiura, elegância ou ridículo. Tais prestadores de serviços eram chamados de petit-maîtres – pequenos mestres –, pois havia até especialistas capazes de incrustar insetos microscópicos em joias ou pedras raras em madeiras de cheiro utilizadas na confecção de botões, presilhas e pentes.

E entre nós, como funcionavam tais cuidados com a vestimenta? De acordo com as informações sobre o Brasil colonial, nossas antepassadas foram excelentes rendeiras. Se o trabalho de fiar algodão, reservado às escravas negras e índias, era considerado cansativo, adornar panos caseiros, roupas, xales e redes era tarefa generalizada entre as mulheres das mais variadas condições sociais. Sentadas com as pernas cruzadas ao chão, frente a certa quantidade de bilros e uma almofada, a tarefa funcionava ao mesmo tempo como fonte de lucro e diversão. O crivo, trabalho de agulha feito sobre desenho com fios de linha e cerzido em determinado padrão, complementava os adornos em qualquer vestimenta.

Sabe-se, também, que uma quantidade enorme de rendas era importada de Espanha e Portugal. Aqui, assim como lá, nenhuma mulher andava sem véus ou uma profusão de rendas nas roupas. A seda prestava-se bem para realçar tais trabalhos. De seda negra eram as mantilhas guarnecidas com rendas largas que serviam para tapar a cabeça, como um capuz, talvez para “embuçar” a dama nas ruas, na caminhada para a igreja. Há informações de que algumas eram tão grandes que só deixavam expostos os olhos, cobrindo a pessoa inteira até os pés. Mulheres negras, de origem muçulmana ou não, cobriam-se com finos véus de algodão branco, tido por “das mulheres do oriente”, além de longos mantos, que lhes caíam até os pés, envolvendo todo o corpo. Usavam-se também capas ou mantas em cores vivas.

O anil e o pau-brasil eram costumeiramente utilizados para tornar os tecidos mais atraentes, e a urina era o produto mais utilizado na fixação das cores. Tal como na Europa moderna, onde tecidos caros serviam para a realização de modelos da moda, entre nós as mulheres não pareciam ter dificuldade para escolher. Os percalços, contudo, chegavam na hora do pagamento, pois, mesmo sendo o ambiente da terra de grande precariedade e pobreza, vestir-se com apuro fazia parte das mentalidades, e não se mediam esforços para aparecer bem.

 O conteúdo dos baús

Emblemas exteriores de riqueza contavam, e muito, numa terra onde as aparências, na maior parte das vezes, enganavam. Não faltaram críticos ao hábito de “parecer, sem ser”. Já em 1587, Gabriel Soares de Souza queixava-se dos colonos que tratavam as mulheres “com vestidos demasiados, porque não vestem se não sedas, mormente entre a gente de menor condição”. Pavonear-se, em “sedas, veludos e panos finos de Portugal”, era muito comum, mas o outro lado dessa exibição eram as dívidas. O exibicionismo – e o consequente endividamento – levaram o padre Antônio Vieira a vituperar do púlpito contra o gasto excessivo dos fiéis com tecidos, na cidade de São Luís: “Vem um mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas [...] o que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra; [...] No triste farrapo com que saem à rua, para isso se matam todo o ano”.

A maior parte das naus que aportava no litoral trazia fazendas finas ou grosseiras para vender. A busca pelo raro e caro traduzia-se em uma cultura de aparências exibida em praça pública – cenário ideal para aquelas que buscavam fazer parte do espetáculo dos privilegiados – e multiplicada na concorrência. Era o efeito vitrina que contava, embora não escapasse aos mais observadores o ponto fraco da questão. “O luxo dos vestidos”, escrevia em 1768 o governador de São Paulo, “é desigual à possibilidade desta gente; se as fazendas fossem do Reino tudo ficava em casa, porém sendo estrangeiras não há ouro que as pague... Tudo isso se compra fiado, e depois se estuda para pagar”.

Por vezes, a descrição das roupas, mesmo as de festa, não indicava a ênfase em tais gastos. A descrição de uma denunciada à Inquisição, no século XVII, demonstra que suas melhores roupas (“e vestiu de festa”, diz o documento) constavam de “uma saia de tafetá azul e jubão de holanda e toucado na cabeça”. A dupla saia e o gibão dominavam também entre os burgueses e camponeses europeus, cujo guarda-roupa básico era de cinco peças – o que variava era o contraste com a qualidade e a quantidade de tecido. As cores, como no caso o mencionado azul, podiam identificar o uso da roupa: “festa”. Para atividades diárias, escolhiam-se as escuras. A lã era escolhida pela durabilidade.

Vestidos eram coisa de aristocracia, cujos membros vestiam uma média de dez peças de roupa, fora a roupa branca e íntima. O século XVIII introduziu na Europa tecidos novos: sedas, algodões, linho; os coloridos se diversificavam. Os ricos se adaptavam com mais rapidez a essa mudança de gosto, mas os pobres também aderiam. O que se ganhava em diversidade, perdia-se em solidez. Esse foi o momento em que as classes menos abastadas começaram, elas também, a acelerar o ritmo das compras.

Confirmando a hegemonia da aparência, a maior parte das mulheres só se vestia para ir às ruas – era a confirmação do velho ditado: Por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento! Em casa, cobertas com um “timão”, espécie de confortável camisolão branco em tecido leve, ocupavam-se das atividades domésticas. Os cabelos, mal penteados ou en papilottes, segundo a inglesa Maria Graham, davam uma péssima impressão de desmazelo. Pior: a tal camisola expunha os seios. E a estrangeira fulminava: “Não vi hoje uma só mulher toleravelmente bela. Mas quem poderá resistir à deformação como a que a sujeira e o desleixo exercem sobre uma mulher”? Ao visitar, em 1821, residências baianas, anotou consternada sobre as moradoras:

Quando apareciam, dificilmente poder-se-ia acreditar que a metade delas eram senhoras de sociedade. Como não usam nem coletes, nem espartilhos, o corpo torna-se indecentemente desalinhado logo após a primeira juventude; isto é tão mais repugnante quanto elas se vestem de modo muito ligeiro, não usam lenços ao pescoço e raramente os vestidos têm qualquer manga. Depois, nesse clima quente, é desagradável ver escuros algodões e outros tecidos sem roupa branca, diretamente sobre a pele, o cabelo preto mal desgrenhado, amarrado inconvenientemente, ou, ainda pior, em papelotes, e a pessoa toda com a aparência de não ter tomado banho.

A saída dominical para a missa levava as mulheres a usar uma mantilha negra de seda que ocultava as roupas mais transparentes e decotadas usadas por baixo delas. Outro inglês, Thomas Lindley, que esteve na Bahia no início do século XIX, observou que o vestuário feminino mais comum era uma saia usada por cima de uma camisa: “esta é feita de musselina mais fina, sendo geralmente muito trabalhada e enfeitada. É tão larga no busto que resvala pelos ombros ao menor movimento, deixando o busto inteiramente à mostra. Além disso, é tão transparente que se vê toda a pele”.

A simplicidade ou pobreza da indumentária contrastava com as joias. Sem elas, as mulheres não saíam às ruas. As negras portavam figas, crucifixos e pencas de ouro. As brancas, anéis, colares, brincos e braceletes ricamente trabalhados, tesouro que tanto podia ser presente do marido quanto parte do dote de casamento. Além de saírem aos domingos para ir à igreja, as mulheres apareciam em público nas reuniões da corte, se fossem aristocratas e morassem no Rio de Janeiro, ou nos espetáculos teatrais, que só se realizavam nas grandes cidades, momentos em que tiravam as joias do cofre. Pedras preciosas como esmeraldas, crisólitas, topázios brancos ou amarelos, diamantes rosa, águas-marinhas, pérolas, além de vestidos bordados a ouro e prata, ousadamente decotados à moda francesa da segunda década dos Oitocentos, enchiam a plateia. Na cabeça, colocavam quatro ou cinco plumas importadas da França, inclinadas para a frente, e, na fronte, diademas incrustados de diamantes e pérolas.

Para dançar nos bailes, o cerimonial exigia “vestidos redondos, luvas e enfeites de cabeça mais ligeiros, próprios para aquele fim”. O espetáculo teatral exigia menos luxo do que as cerimônias da corte, e, nesse ambiente, as mulheres usavam flores no cabelo, brincos compridos e vistosos, um xale pelos ombros e um leque que podia ser mais ou menos valioso. Para atender a essa demanda de consumo, armarinhos de luxo lotavam as ruas cariocas. Capelistas vendiam fitas largas ou estreitas, lisas ou lavradas, na maior parte de seda, mas também de veludo; galões de ouro e de prata, guarnições bordadas, franjas e rendas de várias qualidades (linho, linha, filó, seda), inclusive de fio de ouro para “véus de ombros”, tiras bordadas para “coleiras”, entremeios, cordões de seda, bordaduras de ouro e tudo o mais que servisse para enfeitar as mulheres.

Entre o mundo rural e o urbano, estabeleciam-se clivagens. No primeiro, os valores de estabilidade, identificados ao clima, à duração das peças e ao uso reiterado do vestuário, permaneciam regra. No sul do Brasil, John Luccock observou mulheres usando capotes de casimira com ornamentos de pele e escravas enroladas em pedaços de baeta enfeitados com franjas. Em Minas Gerais, elas se vestiam de branco ou com cores vistosas, e guarda-sóis coloridos abrigavam-nas do sol causticante. Na falta deles, usavam um chapéu em lã negra. O gosto pelas telas rústicas e tecidos resistentes como a baeta, o baetão, a estamenha, o lemiste e a sarja mostra que os hábitos não eram exclusivamente os ditados pelos ricos.
 
“Nem nuas, nem rotas”

Sendo a roupa o envelope do corpo, como seria andar nu? Com a pele em contato com o vento e o sol, as partes vergonhosas expostas, os índios inspiraram ao padre Anchieta tiradas de muito humor: “de ordinário andam nus [...] porque um dia saem com gorro, carapuça ou chapéu na cabeça e o mais nu; e lhes parece que vão assim mui galantes”.

Sabemos que escravas e índias vestiam-se com camisa e saia de algodão grosso. A preocupação era de que não se vissem “nuas nem rotas”, como se queixava Anchieta. Mas que significado teria o nu feminino na Idade Moderna? Havia, então, uma grande diferença entre nudez e nu. A primeira se referia àquelas que fossem despojadas das vestes. A segunda remetia não à imagem de um corpo sem defesa, mas ao corpo equilibrado e seguro de si mesmo. O vocábulo foi incorporado, no século XVIII, às academias de ciências artísticas, nas quais a pintura e a escultura faziam do nu o motivo essencial das obras. No mesmo ano do achamento do Brasil, Bellini pintou uma mulher fazendo a toalete, obra em que já se observam as formas amplas que iriam caracterizar a arte veneziana. Giorgione criara uma Vênus, deitada e adormecida numa paisagem cor de mel, totalmente oferecida ao olhar do espectador, embora o corpo branco exalasse castidade.

Para os pintores do Renascimento, a mulher desnuda era símbolo de vida criadora e geração. Nessa época, os nus começaram a se revirar na tela, abandonando a posição frontal. A ideia de sedução do corpo feminino fez-se presente; carnes ou pele ganham luz, cor, enfim, parecem vivas. Os movimentos de torção colocam em evidência seios, ancas e quadris. A entrada do açúcar nos mercados europeus vai ajudar a criar um modelo de corpo repleto de curvas, e por que não dizer gorduras, cuidadosamente reproduzidas por mestres como Rubens e Rembrandt. No século XVIII, outro padrão invade as telas. São corpos dóceis e pequenos, como os que pintou Boucher, que – grande surpresa – mostram-se de costas. Estendidas sobre a barriga, apoiando-se nos cotovelos, ninfas e heroínas exibem, com ar de sedução, as nádegas.

Na mesma época no Brasil, índias e negras andavam seminuas. Ambas tinham, porém, condições de transformar a nudez em objeto estético. Todo um código artístico era inscrito na substância corporal através de técnicas arcaicas: pinturas faciais, tatuagens, escarificações, que as transformavam em obras de arte ambulantes, em “quadros vivos”. Não escaparam a Gilberto Freyre os sinais de nação, as tatuagens africanas ao longo do nariz, os talhos que imitavam pés de galinha na testa e nas faces, “talhinhos ou recortes, verdadeiras rendas, pelo rosto todo”. As orelhas furadas, para argolas ou brincos, também eram uma constante. As iaôs, em rituais religiosos, tinham direito a pinturas corporais.

No corpo, valorizavam-se as nádegas arrebitadas para trás, empinadas e salientes: a “bunda grande”. Os peitos, pequenos e duros, a ponto de haver uma lenda recolhida por Nina Rodrigues sobre o assunto: uma mulher muito grande e valente tinha peitos tão grandes que caíam pelo chão. Depois de um embate com guerreiros inimigos, na floresta onde morava, foi morta, despedaçada e cozida pelas mulheres da mesma tribo. “Então”, diz o conto, “cada qual tratou de apoderar-se de um pedaço do peito; as que puderam apanhar um pedaço grande tiveram os peitos muito grandes, as que só alcançaram um pedacinho, ficaram de peito pequeno, e é por isso que as mulheres não têm peitos do mesmo tamanho”. A gigante de peitos grandes e caídos, entidade maléfica, era também critério de feiura na cultura africana.

Os anúncios de jornal, que notificavam a fuga de escravos, informavam sobre as características físicas de nossas avós negras: a cor “preta”, “alva ou fula da pele”; os cabelos encarapinhados, crespos, lisos, anelados, cacheados, acaboclados, russos, assas, avermelhados e até louros – cabelos que eram arranjados com cuidado em birotes, tranças, coques; cabelos “agaforinhados com pentes de marrafa dos lados” ou alisados com óleo de coco. Os dentes quase sempre inteiros e alvos podiam ser “limados” ou “aparados”. As deformações profissionais deixavam marcas em mãos, pés e pernas, e os vestígios de chicote pelo corpo não eram escamoteados: “nas nádegas marcas de castigo recente” ou “relho nas costas”. Os olhos podiam ser “na flor do rosto”, grandes, castanhos ou “tristonhos”. Podiam ainda piscar “por faceirice” enquanto a negra falava. De muitas se dizia “ter boa figura”, ser “uma flor do pecado”, ser “alta e seca”, “bem-feita de corpo” ou apenas robusta. “Ter peitos em pé”, “peitos escorridos e pequenos”, “nariz afilado e pequeno”, “peitos em pé e grandes”, “pés e mãos pequenas” eram sinais de formosura que podiam impressionar o comprador.

Os vistosos panos da costa, turbantes e rodilhas, xales amarrados à cabeça, saias rendadas, camisas abertas de renda e bico e chinelinhas vestiam muitas delas. Uma poesia de Melo Moraes Filho veste e enfeita a mulata ou a negra com muitos dos adereços utilizados pelas brancas: camisa bordada, fina tão alva arrendada, torso de cassa à cabeça, corais engrazados nos pulsos, saias de rendas finas, brincos de pedrarias, correntinha de prata. E as palavras exprimem o ciúme das últimas: “Eu sou mulata vaidosa, linda faceira, mimosa, quais muitas brancas não são!”. Para arrematar: “minhas iaiás da janela, me atiram cada olhadela. Ai dá-se! Mortas assim... E eu sigo mais orgulhosa, como se a cara raivosa, não fosse feita pra mim”.

No século XIX, o país começava a sair de profunda sonolência. Sobretudo nas áreas urbanas. A vinda da família real, em 1808, introduzira hábitos sociais que foram se multiplicando nas várias camadas sociais. Recepções, casamentos, batizados, cortejos, jogos, óperas, enfim, o luzir de fidalgos dava modelos e incitava imitações. Construíam-se casas nobres, e palácios eram rapidamente recheados de “imensas cousas”. Móveis eram importados da Inglaterra, assim como o piano, para ser mansamente batucado pelas mãos das sinhazinhas. Importavam-se, também, professores de dança e canto, capazes de ensiná-las a animar bailes e saraus da cidade. Viajantes observavam o crescimento da influência francesa na importação de modas, artigos de fantasia e decoração. Em 1821, havia 54 modistas francesas instaladas no Rio de Janeiro. Não eram poucas as negras livres que, graças a “seu talento”, não apenas trabalhavam com tais profissionais, mas conseguiam “imitar muito bem as maneiras francesas, trajando-se com rebuscamento e decência”. Jornais dirigidos às mulheres exibiam figurinos, receitas culinárias, moldes de trabalhos manuais. Era o caso do Correio das Modas, de 1839, o Espelho Fluminense, de 1843, o Recreio do Bello Sexo, de 1856, ou o Jornal das Famílias, de 1863.

Ouçamos a descrição que Álvares de Azevedo fez, em 1849, dessas belezas que enfeitavam um baile acadêmico:

A Condessa de Iguaçu e a Belisária eram as rainhas do baile, com a diferença que a Belisária com a simplicidade de seu traje estava mais bonita do que a Bela com a sua riqueza de joias e sedas. A Bela tinha um vestido cinzento que lhe fazia uma cinturinha de sílfide – No colo numa volta só lhe corria o colar de finíssimas, digo grossíssimas pérolas. Na cabeça prendendo as tranças tinha um pequenino boné à grega, cujo fundo era de rede de prata e em franja também de prata. No colo, na cintura, no bouquet exalavam-lhe perfumosos ramos de violetas.

A Bela era ninguém menos do que a filha da marquesa de Santos com o imperador dom Pedro I. Na época em que a jovem condessa de Iguaçu rodopiava pelos salões, os vestidos, armados e em forma de sino, inflados pelo uso da crinolina, estavam na moda. As flores – outra moda – acentuavam o erotismo dos contornos, a cintura fina, um decote ligeiramente mais ousado. Flores deveriam coroar a beleza da mulher-flor.
 
Os imperativos da moda

Importada da França, que sempre ditara a última tendência, ao final do século XVIII, a moda eram as saias corola, usadas por Maria Antonieta. Desfolhada durante a Revolução Francesa, essa encolheu a ponto de se assemelhar à espiral de uma íris; dessa mesma maneira, foi largamente utilizada durante o Diretório e o Império. As mangas haviam se enchido, tal cálice de imensa papoula. A Restauração voltara a encher as corolas das saias.
Tanta inflorescência alimentou a fabricação de flores de penas, escamas e asas entre nós. Entremos em uma dessas lojas para conhecer, de perto, o acessório mais importante da moda oitocentista no Brasil:

“[...] seguindo pela Rua do Ouvidor, chega-se ao estabelecimento de Madame Dubois, a principal fabricante de flores de pena no Rio. Ela sucedeu Madame Finot [...] Ao entrar em sua loja, encontra-se a parte da frente destinada à venda de flores, e a de trás à sua fabricação. As caixas nas paredes e nas janelas estavam cheias de flores das mais belas, grinaldas de flor de laranjeira, festões de cravos brancos pintados de azul e rosa, e camélias alvas [...] Na parte de trás da loja havia uma longa separação, atrás da qual muitas moças trabalhavam, armando as flores, torcendo, cortando e colando com afinco. Diante delas havia montes de penas, um monte de cada cor. De fato, é surpreendente como um material tão delicado pode ser manejado com tanta perícia, principalmente porque as flores não são tingidas, como as da Madeira, mas formadas por penas isoladas, coladas para produzir todos os efeitos. Ao manter em público o processo de fabricação, Madame Dubois oferece uma garantia material da ausência de tinturas, demonstrando que as flores são feitas, honestamente, de penas de muitas cores. As dames de comptoir são geralmente mulatas e, embora mais escuras até que as moças espanholas, são geralmente mais belas. Uma demoiselle inglesa é mantida para atender visitantes ingleses e seu emprego não parece uma sinecura.

Os preços das flores variam. Como são mais comuns, os cravos são vendidos por um mil-réis cada; dos outros tipos de flor, Madame Dubois em geral cobra demais para o bolso do pessoal da Marinha. Os pássaros custam comumente dez xelins a dúzia; existem alguns “extrassuper” beija-flores, vendidos a três mil-réis cada, e as aves-do-paraíso custam vinte mil-réis”.

Além das flores e dos chapéus, luvas e sapatos eram outro acessório capaz de decretar um dos lugares do desejo no corpo feminino. Mãos e pés atraíam olhares e atenções masculinas. Grandes romances do século XIX, como A pata da gazela ou A mão e a luva, revelam, em metáforas, o caráter erótico dessas partes do corpo. Mãos tinham de ser longas e possuidoras de dedos finos que acabavam em unhas arredondadas e transparentes.

Ouçamos José de Alencar descrevendo uma de suas personagens, Emília, em Diva: “Na contradança as pontas de seus dedos afilados, sempre calçados nas luvas, apenas roçavam a palma do cavalheiro: o mesmo era quando aceitava o braço de alguém”. Não apenas os dedos eram alvo de interesse, mas seu toque ou os gestos daí derivados eram reveladores da pudicícia de uma mulher. O ideal é que estivessem sempre no limite do nojo ou da repugnância por qualquer contato físico.

Pequenos, os pés tinham de ser finos, terminando em ponta; a ponta era a linha de mais alta tensão sensual. Faire petit pied era uma exigência nos salões franceses; as carnes e os ossos dobrados e amoldados às dimensões do sapato deviam revelar a pertença a determinado grupo social, no interior do qual as mulheres pouco saíam, pouco caminhavam e, portanto, pouco tinham em comum com escravas ou trabalhadoras do campo ou da cidade, donas de pés grandes e largos. O pé pequeno, fino e de boa curvatura era modelado pela vida de ócio; era emblema de “uma raça”, expressão anatômica do sangue puro, sem mancha de raça infecta, como se dizia no século XVIII.

Circunscrita, cautelosamente embrulhada no tecido do sapato, essa região significou, muitas vezes, o primeiro passo na conquista amorosa. Enquanto o príncipe do conto de fadas europeu curvava-se ao sapatinho de cristal da Borralheira, entre nós, os namoros começavam por uma “pisadela”, forma de pressionar ou de deixar marcas em lugar tão ambicionado pelos homens. Tirar com gentileza o chinelo ou descalçar a mule era o início de um ritual no qual o sedutor podia ter uma vista do longo percurso a conquistar.

No nordeste e no sul do país, os sapatos eram muito coloridos, e algumas damas se esmeravam em exibi-los – vistosos, bordados e de seda – erguendo uma ponta de saia ou movendo com habilidade a capa. As esposas de ricos comerciantes do litoral, além de sempre usarem meia de seda e sapatos, mostravam-se, segundo o viajante Walsh, “particularmente hábeis e cuidadosas na decoração de suas pernas e pés, que são geralmente pequenos e de bonita forma”. As moças usavam botinhas de salto e chapeuzinhos franceses. Dos vapores vindos do Havre desembarcavam “borzeguins de Meliés todos de bezerro e cordovão”, última novidade! Alguns insistiam, diz a historiadora, no pouco que viam as senhoras bem calçadas. Essas portavam o que parece ser o antepassado da sandália: “o que é chamado sapatra: uma sola de madeira com os calcanhares altos, seda ou cetim costurado cobrindo a parte dos dedos. Com meias ou sem meias, elas metem seus dedos sob o cetim e a cada passo a parte posterior da sola cai com estrondo”, informava Wheeler, outro viajante.

E o “talhe”, palavra hoje ausente, mas presente em toda descrição de mulher bonita no século passado? A mesma Emília, por exemplo, era possuidora de um invejável talhe, desses “flexíveis e lançados, que são hastes de lírio para o rosto gentil”, conta-nos Alencar. Ora, o talhe, quando não atributo natural, era conseguido graças ao uso do espartilho. O artefato, nascido com a Idade Moderna, correspondia a uma nova sensibilidade voltada para a ausência de sinuosidades, a linha plana e reta. A estranha couraça, segundo o autor, encerrava o tronco, ajustando formas convencionais a uma inflexível.

A postura, tal qual a haste do lírio, impunha posição teatral, imponente, altaneira, manifestando igualmente as qualidades da alma e as virtudes de certo caráter feminino. Inicia-se, assim, toda uma severa estética da compostura, uma ética da contração. A vida nas cortes europeias, ou na nossa, iria controlar todas as possíveis turbulências do corpo, sua expansão ou vacilações. O envelope em couro ou pano duro, que cobria dos joelhos aos ombros, servia também para conter a moleza do corpo feminino, corrigindo sua fragilidade natural e constitutiva. Vitória da razão sobre a natureza, da fixidez contra os movimentos intempestivos, da impassibilidade sobre a emoção, o espartilho, a luva, as plumas do chapéu e o salto alto no sapato, remetia aos signos nobres da improdutividade.

O uso do corpete deve ter se generalizado no Brasil durante o Segundo Império. Não há uma descrição de heroína de romance nem fotografia da aristocracia do café em que as mulheres não apareçam com o enrijecimento dorsal, típico do uso do espartilho. Ficavam para trás as damas meio desnudas, de cabelos desgrenhados, prostradas pelo calor, displicentemente sentadas no chão ou abandonadas em uma rede. A vida urbana e os serviços as haviam retirado das camarinhas escuras, onde, rodeadas de parentes, crianças e escravas, passavam os dias levando-as para passeios, jardins, praças.

Ato de diferenciação, vestir-se era, em essência, um ato de significação. Manifestava, em termos simbólicos ou por convenção, ao mesmo tempo ou separadamente, uma essência, uma tradição, um apanágio, uma herança, uma casta, uma linhagem, uma proveniência social e geográfica, um papel econômico. Em resumo, a roupa tornava visíveis as hierarquias, segundo um código garantido e perenizado pela sociedade. Na elaboração da aparência, as classes dominantes procuravam, desde sempre, distanciar-se das camadas populares. Não só pelo uso de tecidos e materiais prestigiosos, mas pela falta de conforto que levaria a um comportamento menos hierático. O importante para uma mulher de elite era ficar o mais longe possível da imagem da mulher descomposta, em chambre ou timão, que se confundia com a simplicidade de escravas e mulheres do povo, e cuja amarfanhada intimidade tanto chocara Maria Graham.

Não é por acaso que, alguns anos mais tarde, José de Alencar vai emprestar a um dos personagens o olhar para definir o que fosse a beleza feminina. E essa definição acaba contaminando-se com a ideia de classe ou riqueza. Bela era quem fosse igualmente chique. Em Senhora, seu romance de 1875, Alencar empresta a voz a Seixas, para falar desse critério duplo: “Seixas era uma natureza aristocrática, embora acerca de política tivesse a balda de alardear uns europeus de liberalismo. Admitia a beleza rústica, como uma convenção artística; mas a verdadeira formosura, a suprema graça feminina, a emanação do amor, essa, ele só compreendia na mulher a quem cingia a auréola da elegância”.

Belezas rústicas e plebeias eram, para o escritor romântico, uma convenção estética. A beleza como realidade, só aquela sustentada pelo luxo dos salões nos quais circulavam as mulheres da aristocracia cabocla. A beleza popular, inculta, plebeia, poderia até ser bela, mas não seria nunca aceita como tal. O autor deixava entrever, em suas linhas, o preconceito social implícito nos valores. As perfeições físicas que descreve só aparecem enredadas em tafetás, babados, rufos e sedas. Beleza e elegância, no século XIX, eram uma coisa só.

Ouçamos novamente o escritor: “A lua vinha assomando pelo cimo das montanhas fronteiras; descobri nessa ocasião, a alguns passos de mim, uma linda moça que parara um instante para contemplar no horizonte as nuvens brancas esgarçadas sobre o céu azul e estrelado. Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe esbelto e de suprema elegância”.

Num país escravista, a noção de beleza associada à roupa se estendeu às mulheres negras. Em 1849, o pintor Edouard Manet atribuiu o conceito de feias às que viu “nuas da cintura para cima”, trazendo no máximo “um pano de seda preso ao pescoço e caindo sobre o peito”. As “bastante bonitas” eram aquelas que, segundo ele, “traziam turbantes” ou “carapinhas artisticamente arranjadas”, usavam turbantes e saiotes enfeitados com imensos babados. Era como se a nudez excluísse as primeiras da estima social, pois não havia, então, separação entre a roupa e a condição do indivíduo. A moda já era um princípio de leitura do mundo. Vestidas, as negras se apropriavam, à sua maneira, da economia de luxo de outros grupos, suscitando e, ao mesmo tempo, prolongando o desejo de consumo que aqui já existia.

Belas, lindas... como seriam, dentre nossas avós, aquelas que inspiravam os suspiros do poeta? No século XIX, eram majoritariamente morenas. Manet extasiara-se: “as brasileiras são geralmente lindas; têm olhos e cabelos magnificamente negros”!

Os padrões de beleza

Manet não foi o único. Em 1875, John Bigg-Wither também não podia esquecer a harmonia das formas de mulheres negras, sua elegância e nobreza na postura e na altura, sua graça e alegria, a perfeição do desenvolvimento físico, a compleição perfeitamente adaptada ao clima, a pele como “ébano polido”. E exclamava, maravilhado:

Eu nunca vi em qualquer raça europeia tão perfeito desenvolvimento e maravilhosa simetria na forma como a que quase universalmente essas mulheres exibem. Altas e eretas, com peitos nus e braços que literalmente reluzem quando elas se movem com uma textura de seda lustrosa e belamente tecida, existe um ar de graça e dignidade natural perfeitas em cada movimento que é absolutamente indescritível, mas que uma senhora muito bem-nascida em nosso próprio país poderia ter invejado. A típica feiura (do semblante) é esquecida numa rara perfeição das formas.

A obesidade, fantasma do final do século XX, já provocava, no XIX, interjeições negativas. Sobre as baianas, “os maiores espécimes da raça humana”, dizia um estarrecido viajante, essas pesavam mais de duzentas libras e andavam “sacudindo suas carnes na rua, e a grossa circunferência de seus braços”. As mulheres brancas eram descritas como detentoras de um corpo negligenciado, corpulento e pesado, emoldurado por um rosto precocemente envelhecido. As causas, explica Tânia Quintaneiro, eram várias: a indolência, os banhos quentes, o amor à comodidade, o ócio excessivo desfrutado numa sociedade escravista ou recém-saída desse sistema, o matrimônio e a maternidade precoces, as formas de lazer e de sociabilidade que não estimulavam o exercício físico, o confinamento ao lar impregnado de apatia, onde prevalecia o hábito de “desfrutar de uma sesta, ou cochilo depois do jantar”, como explicava James Henderson em 1821.

Apesar do declarado horror à obesidade, os viajantes reconheciam que o modelo “cheio”, arredondado, correspondia ao ideal de beleza dos brasileiros, o que explicavam pela decorrência do gosto dos ancestrais. Gorda e bela eram qualidades sinônimas para a raça latina meridional, incluídos aí os brasileiros, e para explicar essa queda pela exuberância era invocada a influência do sangue mourisco. Dizia-se que o maior elogio que se podia fazer a uma dama no país era estar a cada dia “mais gorda e mais bonita”, “coisa”, segundo o inglês Richard Burton, em 1893, “que cedo acontece à maioria delas”. Gordas quando mocinhas, ao chegarem aos trinta anos já eram corpulentas, incapazes de seduzir o olhar dos estrangeiros. A que em jovem possuíra formas longilíneas, breve seria volumosa e pesada senhora. “O leitor pode notar, nessas moças vestidas de preto da cintura para cima, um contraste com a gorda matrona que a segue”, queixava-se Daniel Kidder.

Alguns viajantes atribuíam a palidez e o desmazelo das moças à severidade com que eram tratadas pelos pais e maridos, sendo mantidas muito segregadas da vida social – situação ainda mais grave no interior, em que passavam às vezes meses encerradas entre quatro paredes, sem aparecer às janelas. A sujeira e o desleixo que diziam testemunhar provocavam, segundo eles, violentas deformações físicas. As mulheres brancas, ainda que em geral bem tratadas, levavam “uma vida estúpida, fechadas para o mundo em seus quartos escuros”, e, por esse motivo, pareciam também descoradas e doentes, queixava-se Herbert Smith em 1879.

Mesmo mulheres mais jovens não deixavam de exibir no rosto uma tonalidade amarelada, desagradável e enfermiça. Um certo Gastón, em 1867, lamentava-se de que “existia uma marcada deficiência de beleza” por parte daquelas que estiveram sob sua observação. Seu diagnóstico, depois de assistir a uma missa em Paranapanema, era de que a “grande maioria era absolutamente feia”! A pá de cal veio, na mesma época, de Ulick Burke. Para ele, beleza física feminina era coisa inexistente no Brasil.

Se houve aqueles que enxergavam pouca beleza em nossas avós, não faltaram os que preferiam elogiar. Os cabelos brilhantes e densos, os olhos escuros, fogosos, curiosos e expressivos chamaram a atenção de muitos estrangeiros. O inglês John Mawe achava as mineiras “decididamente lindas”! O missionário Kidder exultava com a beleza das paulistas, sem igual no Império e “motivo de orgulho e nobreza de sua linhagem”. Percorrendo, em 1865, o vale do Paraíba, Alfredo Taunay registraria, em cartas à família, “os rostos de belas cores”, “moças agradáveis e bonitas”.

Uma olhada no álbum de fotografias que acompanha o livro Salões e damas do Segundo Reinado confirma a tese de que os conceitos de beleza, como quaisquer outros, são construções culturais que obedecem aos critérios de uma época. As figuras da senhora Taupin, da baronesa de Canindé, de sinhazinha Barros Barreto ou da viscondessa de Guaí revelam fisionomias fechadas, arredondadas pelo queixo duplo, escurecidas por um indisfarçável buço, encerradas em imensos vestidos balão incapazes de sequer sugerir o que escondiam. O talhe fino tantas vezes descrito por José de Alencar? Nem pensar.

Gilberto Freyre chega a dizer com graça que as “vastas e ostensivas ancas” das matronas brasileiras eram verdadeiras “insígnias aristocráticas”, a “descadeirada” sendo olhada como deficiente de corpo! A mulher de formas mais salientes tendia a ser considerada a mais ortodoxamente feminina, e assim o foi por muito tempo. Manuel Bandeira, em sua Evocação do Recife, cantou as “caderudas” recifenses que se banhavam nuas no então limpo Capiberibe. Ancas eram o símbolo da mulher sexuada, desejável e fecunda. Feliz prisioneira dessas formas, ela sublinhava a relação entre a conformação anatômica e a função biológica, ao mesmo tempo sagrada: reproduzir, procriar, perpetuar.

As ancas ganharam grande aliada com a moda das “anquinhas”. Essa espécie de enchimento artificial, capaz de valorizar o baixo corporal feminino, deu ao posterior da mulher uma silhueta ainda mais luxuriante. Se fosse preciso, usavam-se suplementos de variados tipos, feitos de barbatanas, lâminas de ferro, pufs de jornal e até “pneumáticos” para preencher e valorizar as virtudes calipígias das que não as tinham. Houve quem se prestasse ao riso dos amigos por usá-las tão exageradas – eram ridicularizadas no momento da missa, pois quem estivesse atrás de um desses monumentos nele escorava o livro de orações. Quem conta é Wanderley Pinho:

Devia ser graças à ajuda de um desses postiços cheio de ar que certa Baronesa exibia, apesar dos tributos que já havia pago à idade, e continuava a pagar, umas parábolas de forte arrojo. O dandy ousado, arriscando-se muito, quis tirar a limpo aquela burla ou inacreditável realidade. Muniu-se de um grampo de chapéu, e observado de longe por um grupo a quem comunicara a aventura em que ia meter-se, foi sentar-se num sofá junto à titular, por sinal, excelente palestradora. E, tendo feito seus cálculos e medidas, à medida que a conversa se desdobrava cheia de verve, mantendo o interesse da prosa, talvez com algum nervosismo mas com grande presença de espírito, ia enfiando no flanco, através de renas e tufos de seda e saias de baixo, o estilete audaz, milímetro por milímetro, tateando, receoso de, ao invés de uma ampola de ar, encontrá-la de carne sensível. A Baronesa nada acusava [...] e o grampo foi menos suavemente recolhido ao bolso do analista minudente. Quando vaidosa, se ergueu a Baronesa notou, admirada que as saias lhe desciam em cauda meio palmo abaixo; e os conspiradores daquela audácia riam à socapa, contemplando o desapontamento murcho da fidalga, despojada dos efeitos remoçantes de sua câmara de ar.

No século XIX, belas eram, portanto, as elegantes, possuidoras de um corpo-ampulheta, verdadeiras construções trabalhadas por espartilhos e anquinhas capazes de comprimir ventres e costas, projetando seios e nádegas. A couraça servia para protegê-las simbolicamente do desejo masculino, alimentado pela voluptuosidade da espera, do mistério, do jogo de esconde-esconde que as mulheres traduziam com o corpo.

A mão cobria-se com luvas; os cabelos, com véus e chapéus; os pés, com sapatos finos; o corpo, submerso por toneladas de tecidos, só se despia por ocasião de bailes. Nessas ocasiões, os decotes revelavam o verdadeiro desenho de pescoços e ombros. O ideal do charme feminino correspondia a um mosaico de cheios e vazios, curvas e retas: ombros arredondados e inclinados em suave queda, pescoço flexível e bem lançado, seios “obviamente” opulentos, bacia larga e evasé, talhe esbelto e fino, braços carnudos, pulsos delicados e magros, mãos longas, mas recheadas, dedos afilados, pernas sólidas, pés pequenos e de artelhos bem graduados. Curvas, ondas, acidentes compunham a cartografia física, feita de escrupulosa distribuição de superfícies e volumes – corpo em formato de violão que, ainda no século XX, fazia homens como Nelson Rodrigues suspirarem com nostalgia: “grande época! Grande época”, a das ancas “imensas e intransponíveis”, que obrigavam “as meninas a atravessar as portas de perfil”!

Quanto ao rosto, a moda da fisiognomonia, ou seja, a arte de conhecer o caráter das pessoas pelos traços do rosto, ditava regras. Trocas fisiológicas entre interior e exterior, relações entre físico e moral compunham um abecedário de normas para fazer o rosto “falar”: a fronte alta e lisa era denotativa de temperamento dócil e serenidade de alma; sobrancelhas naturalmente arqueadas diziam da franqueza de sua possuidora; olhos negros anunciavam calor e vontade; os azuis, ternura e paixões tranquilas; o nariz não podia ser nem muito pontudo nem muito largo, e as aletas, suficientemente bem recortadas para exprimir “impressões fugitivas”; a boca jamais poderia ter lábios finos, pois os associavam à mesquinharia.

Tratava-se de uma beleza feita de convenções, que deveria inspirar pânico às nossas avós, temerosas, coitadas, de que se descobrissem seus vícios e defeitos, no menor dos movimentos, no mais inocente dos gestos, na menos feliz das características físicas e hereditárias. E o que fazer para arrancar essa máscara ao modelo?
 
O corpo em movimento

A segunda metade do século XIX foi marcada pela presença do romantismo na literatura e, por conseguinte, de imagens românticas associadas às mulheres. Movimento que atingiu, sobretudo, as camadas letradas no Brasil, o romantismo propunha como atitude certa prostração exibicionista, a exaltação fervorosa do eu, a excitação sentimental. Tais sentimentos desdobravam-se na valorização da tez espectral, marmórea, de reflexos verdes ou azuis, a propalada “fronte ebúrnea”, cantada por poetas como Alberto de Oliveira. Essa face de esfinge era percebida como reflexo do fogo interior, do destino vencido pelas doenças que grassavam: tísica, anemia ou tuberculose. O ar lânguido era também o da fatalidade.

O interessante é que não faltaram receitas de beleza para dar realidade a tais representações. Uma cosmética à base de óleos de cacau, máscaras à base de sangue de galinha, urina de criança de peito ou excrementos agilizavam a obtenção da palidez elegíaca, cantada em prosa e verso. Para ajudar a expressão dos sentidos, a maquiagem ganhava relevo.

Um doce olhar de bondade deveria se diferenciar daquele inflamado de paixão. A pergunta que as mulheres se faziam diante do espelho era: “Como dar um ar mais sedutor a esse rosto apagado?!”. Um produto ceroso, feito à base de amêndoas doces e aromatizado com essência de rosas, garantia lábios pouco coloridos, porém apetitosos. Pós e lápis pretos, feitos com carvão, terras escuras ou outros colorantes escuros, delineavam, sem exagero, os olhos.

Ao lado dos esforços para aproximá-las de uma heroína romântica havia, contudo, outro movimento a impelir as mulheres. Desde o início do século, na Europa, multiplicavam-se os ginásios, os professores de ginástica, os manuais de medicina que chamavam atenção para as vantagens físicas e morais dos exercícios. As ideias de teóricos importantes como Sabbathier, Amoros, Tissot ou Pestalozzi corriam o mundo. Uma nova atenção voltada à análise dos músculos e das articulações graduava os exercícios, racionalizando e programando o aprendizado. Não se desperdiçava mais força na desordem de gesticulações livres. Os novos métodos de ginástica investiam em potencializar a força física, distanciando-se do maneirismo aristocrático da equitação ou da esgrima, ou da brutalidade dos jogos populares.

Nos finais do século, mulheres começaram a pedalar ou a jogar tênis na Europa. Não faltou quem achasse a novidade imoral, uma degenerescência e até mesmo pecado. Perseguia-se tudo o que pudesse macular o papel de mãe dedicada exclusivamente ao lar. Era como se as mulheres se apropriassem de exercícios musculares próprios à atividade masculina. Algumas vozes, todavia, levantaram-se contra a satanização da mulher esportiva. Médicos e higienistas faziam a ligação entre histeria e melancolia – as grandes vilãs do final do século – e a falta de exercícios físicos. Confinadas em casa, diziam, as mulheres só podiam fenecer, estiolar, murchar. Era preciso oxigenar as carnes e se alegrar, para dar equilíbrio saudável ao organismo. O esporte seria mesmo uma maneira de combater os adultérios incentivados pelo romantismo. Afinal, encerradas ou aprisionadas, só restava às mulheres a sonhar com amores impossíveis ou tentar seduzir o melhor amigo do marido.

A elegância feminina começou então a rimar com saúde. Se a mudança ainda se revelava hesitante, não demorou muito a se instalar e a se tornar inexorável. O leitor, contudo, deve estar se perguntando como se passaram tais transformações entre nós.

As mulheres da elite sempre montaram a cavalo. A equitação, como esporte, foi praticada por uma parcela importante da aristocracia, sobretudo durante o reinado de dom Pedro II. Ao ser recebido em Petrópolis em abril de 1872, o monarca teve à sua espera “as amazonas da Corte!”. “Elegantes enchiam as estradas com suas plumas rogaçantes, em fogosos corcéis, deixando voar nas lufadas de vento indiscreto as fímbrias do vestido revolucionário”, conta um memorialista. A própria condessa de Barral, paixão de dom Pedro II, era conhecida como amazona intrépida, capaz de se precipitar a galope sobre vacas fugidas. Gilberto Freyre acrescenta que, desde os finais do século XIX, a ginástica sueca concorria para dar maior vigor aos brasileiros crescidos nas cidades, sem a vantagem dos banhos de rio, dos passeios a cavalo e da vida ao ar livre em fazendas e engenhos.

Mas o Brasil onde o corpo feminino começa a se movimentar em direção aos esportes já não é mais o do fim do Segundo Reinado. É o do início da República, no qual as cidades trocavam a aparência paroquial por ares cosmopolitas; nelas, misturavam-se imigrantes, remanescentes da escravidão e representantes da elite. Nesse cenário, nascia uma nova mulher.

“Hoje em dia, preocupada com mil frivolidades mundanas, passeios, chás, tangos e visitas, a mulher deserta do lar. É como se a um templo se evadisse um ídolo. É como se a um frasco se evolasse um perfume. A vida exterior, desperdiçada em banalidades é um criminoso esbanjamento de energia. A família se dissolve e perde a urdidura firme e ancestral dos seus liames”, recriminava um editorial da Revista Feminina em agosto de 1890.

Ela abandonara os penteados ornamentais com ondas conseguidas graças aos ferros de frisar para cortar os cabelos à garçonne. O esporte, antes condenado, tornara-se indicativo de mudanças: “Nosso fim é a beleza. A beleza só pode coexistir com a saúde, com a robustez e com a força”, alardeava o autor de A beleza feminina e a cultura física em 1918. A revolução dos costumes começou a subir as saias, e essas brigavam com as botinhas de cano alto que, por sua vez, procuravam cobrir o pedaço da canela exposta.

A cintura de vespa, herdada do século anterior, continuava aprisionada em espartilhos. Esses, contudo, haviam melhorado. O dissimulado instrumento de tortura, feito de pano forte e varetas de barbatana de baleia, tão rígidas a ponto de sacrificar o fígado e os rins, mudou. Era, agora, feito de varetas flexíveis de aço. A partir de 1918, ao final da Primeira Guerra, as chamadas “exuberâncias adiposas” passaram a ser contidas não mais pelo terrível espartilho, causador de danos irreparáveis, mas pelo “corpinho” ou pela cinta elástica. Se os primeiros salientavam os seios como pomos redondos, o corpinho os deixava mais livres e achatados.

“Artigos sanitários”, antes desconhecidos e que atendiam pelos insólitos nomes de Kotex, Kez e Modess, anunciavam o fim do tabu da menstruação nas revistas femininas. Vendidos à dúzia, eram complicadas “toalhas higiênicas com franjas”, serviettes esterilizadas, “calças sanitárias em borracha e marquisette, rematada com debruns de borracha”, “cintos para serviettes”. Catálogos de roupas brancas, feitas por sofisticadas bordadeiras, revelavam que a vida no quarto de vestir e de dormir ganhava novos contornos. Contrariamente às antepassadas, capazes de passar os dias em roupão branco e desgrenhadas, a mulher dos anos 1920 parecia querer seguir à risca os conselhos da Revista Feminina, em que a articulista Henriette admoestava:

Como então, há algumas leitoras que andem em casa sem meias? Há pelo menos 60% de senhoras casadas que pelo menos até a hora do almoço, ficam com o chinelo com que se levantam, o cabelo amarrado com uma fitinha e um roupão “saco” à vontade do corpo! [...] Devemos lembrar-nos que nós, mulheres, fomos criadas para a fantasia. Todas as vezes que nos mostrarmos muito materiais perdemos o encanto que nos acham os homens.

Para além do “corpinho” e de cintas, o corpo começava a se soltar. O famoso costureiro francês Paul Poiret rompia com o modelo de ancas majestosas e seios pesados para substituí-lo por outro. No início do século XX, teve início a moda da mulher magra. Não foi apenas uma moda, mas também o desabrochar de uma mística da magreza, uma mitologia da linha, uma obsessão pelo emagrecimento; tudo isso temperado pelo uso de roupas fusiformes. O “tamanho”, ou seja, rubrica que passa a determinar a largura e a conformação do corpo em relação à roupa, torna-se uma espécie de forma anatômica. Além de constrangimento moral e não apenas corporal, o tamanho traduzia, num martírio mental e não mais físico, a linha de demarcação que passara a reprovar e estigmatizar toda mulher que o extrapolasse. “Dê-me um menor, esse não é o meu tamanho!”, passava a ser triste confissão.

Na Europa, de onde vinham todas as modas, a entrada da mulher no mundo do exercício físico, do exercício sobre bicicletas, nas quadras de tênis, em piscinas e praias trouxe também a aprovação de corpos esbeltos, leves e delicados. Tinha início a perseguição ao chamado enbompoint – os quilinhos a mais –, mesmo que discreta. O estilo “tubo” valorizava curvas graciosas e bem lançadas.

Alguns médicos se rebelavam contra a moda de tendência masculina, que associavam a ideias feministas e ao desprezo pela maternidade. Os cabelos curtos, as pernas finas, os seios pequenos eram percebidos por muitos homens como negação da feminilidade. O movimento, contudo, estava lançado. Regime e musculação começavam a modelar as compleições longilíneas e móveis que passavam a caracterizar a mulher moderna, desembaraçada do espartilho e, ao mesmo tempo, da gordura decorativa. As pesadas matronas de Renoir foram substituídas pelas sílfides de Degas. Insidiosamente, a norma estética afinava, emagrecia, endurecia, masculinizava o corpo feminino, deixando a “ampulheta” para trás.
 
Corpos esculpidos

Entre nós, o esporte, responsável indireto por tantas mudanças, foi introduzido pelos imigrantes e por alguns representantes das oligarquias em contato com as modas europeias. Segundo Mônica Schpun, a prática desportiva era destinada a combater o ócio e os hábitos mundanos da juventude, tendo, portanto, uma função profilática. Num número da revista Sports, o educador Fernando de Azevedo definia:

A educação física da mulher deve constar de: a) jogos infantis, especialmente os nacionais b) ginástica sueca, principalmente apropriada à função respiratória e à bacia e aos membros inferiores c) esportes, tais como dança clássica, ao ar livre, pedestrianismo (pequenos passeios, corridas e marchas de pouca duração e extensão) d) e, finalmente, a natação que é esporte utilitário de maior capacidade higiênica e morfogênica. Referindo-me às danças, sob o ponto de vista higiênico, claro está que nesta categoria de indiscutível valor fisiológico não podem entrar as danças modernas (danças de salão), à noite, em salas mal arejadas, tão repelidas pela higiene moderna como por ela são aconselhadas as danças antigas – essas admiráveis variações do salto e da marcha. Os exercícios, pois, que mais convêm à mulher são aqueles que aumentam a flexibilidade e a destreza da coluna vertebral, isto é, os movimentos que, sujeitos às leis da cadência e do ritmo, se tornam, por assim dizer, a poesia da locomoção. É que na flexibilidade do tronco e da harmonia dos movimentos depende um dos maiores encantos da mulher: a GRAÇA. A educação física para moças deve ser, pois, higiênica e estética, e nunca “atlética”, visar sobretudo o desenvolvimento da parte inferior do corpo, dar a graça e a destreza dos movimentos, procurando antes a ligeireza do que a força.

A despeito da presença de mulheres nas raias das piscinas ou nas quadras de tênis dos clubes privados, o mundo onde, de fato, estava presente era o da casa. Sua vida doméstica ganhava, contudo, valores de consumo nunca antes vistos no Brasil. Certos produtos de beleza começavam a ser industrializados. Quem podia, cedia aos encantos do produto importado. Guerlain e Coty eram as marcas mais procuradas. Pequenas oficinas domésticas produziam cremes e pós para o rosto, perfumes, produtos para os olhos e maquiagem em geral, vendidos de porta em porta para consumidoras de camadas médias. A moda também se desenvolvia. As lojas de luxo importavam vestidos e moldes; algumas chegavam mesmo a oferecer os serviços dos ateliês de costura para consertos e ajustes, ou ainda para fazer roupas íntimas. Costureiras e chapeleiras de origem estrangeira se instalavam com suas lojas.

Vitrinas e manequins enfeitavam grandes lojas como o Mappin Stores de São Paulo, cujos produtos eram também vendidos por meio de catálogos, de encomendas por telefone e correio e de serviço de entregas. Anúncios em francês visavam atrair a clientela mais sofisticada, apregoando robes d’aprés midi et de soirées – vestidos sociais e de gala. A inovação de saldos e liquidações permitia às camadas urbanas médias adotarem roupa de gente rica. Mais do que consumir, com os olhos ou a bolsa, os milhares de novos produtos expostos em vitrinas, anúncios públicos e revistas femininas, as mulheres imbuíam-se, lentamente, de uma nova preocupação: a apresentação física, que as introduzia na vida urbana de maneira conveniente. A palavra de ordem, portanto, tornou-se beleza! A feiura devia ser banida.

A preocupação de ser bela não era novidade. Mas, aqui, a percepção da beleza feminina transformava-se em algo mais palpável. Os concursos de beleza, recém-inventados, chancelavam essa preocupação, ao lado de centenas de imagens femininas que invadiam a imprensa, como “conselheiras de beleza”. Todo tipo de melhora devia ser estimulado. O misto de beleza e elegância, antes apanágio do romantismo, começava a ceder às formas de exibição do corpo feminino. O discurso higienista, tão ativo entre os anos 1920 e 1930, estimulava a vida das mulheres, menos cobertas e mais fortificadas, ao ar livre. O hábito dos esportes, a fundação de clubes, a ênfase na dança, estimulada pela recém-inventada indústria fonográfica, instigavam a exposição dos corpos. Instalou-se a busca da aparência sã. A medicina passava a sublinhar a importância de exercícios e vida saudável para preservar, não somente a saúde, mas a frescura da tez, a pele sadia, o corpo firme e jovem. Acreditava-se que os defeitos físicos poderiam ser corrigidos, não à custa de toneladas de maquiagem ou qualquer outro artifício, mas por outros meios salutares, como a vida higiênica, disciplinada e moderada. Vejamos o conselho da Revista Feminina de outubro de 1920:

As feias [...] não devem fingir-se belas. Contentem-se em ser feias, tratem de educar seu espírito, de viver higienicamente para adquirir saúde, de nutrir-se convenientemente, de ser simples, bem-educadas e meigas. A vida higiênica, a boa nutrição, os esportes garantir-lhes-ão a saúde, a boa pele, os bons dentes, a harmonia das formas, o desembaraço dos gestos e a graça das atitudes; a leitura sã, o cultivo do espírito, dar-lhe-ão inteligência e à fronte; a bondade, a simplicidade, a meiguice torná-la-ão perturbadoramente simpáticas. Deixarão, pois de ser feias; ou, se continuam feias, valerão mais do que as belas, terão mais prestígio pessoal, impor-se-ão às simpatias gerais.

Mas ser feia, nas primeiras décadas do século XX, tinha seus pontos negativos. Todas as mulheres sabiam que a fotografia, o cinema e a imprensa divulgavam padrões que deviam ser seguidos, excluindo as que deles não se aproximassem. Tipos femininos criados por Clara Bow, Alice White, Colleen Moore incentivavam imagens sobre “garotas modernas”, misto de alegria, mocidade, jazz e coquetéis! Um controle mais rígido sobre a apresentação pessoal era exigido, até em empregos ocupados por mulheres. A chamada “boa aparência” impunha-se; os bons casamentos, sobretudo, dependiam dela. Olhos e boca, agora, graças ao batom industrial, passavam a ser o centro das atenções. Theda Bara e Greta Garbo arrasavam com sua malícia singular; eram o símbolo da mulher-mistério. O aparato colocado a serviço da beleza corporal, feito de receitas de fabrico doméstico, de produtos farmacêuticos ou de artifícios de maquiagem, parecia prometer à mulher a possibilidade de, em não sendo bela, tornar-se assim. Havia salvação! A propalada coquetterie, desdobrada em cursos de maquiagem, cuidados de pele e cabelo, massagens e tratamentos dos mais variados, cursos para aprender a caminhar e a gesticular, constituía um investimento – as feias teriam uma chance.

Feia? Só quem quisesse. Explicava o número quinzenal de A Cigarra, em julho de 1920:

A coquetterie é a qualidade mais admirável na mulher. Graças a ela muitas mulheres feias parecem bonitas, e as bonitas – encantadoras. É a coquetterie que acentua a graça aos cabelos que beijam a nuca ou sombreiam a fronte; é a coquetterie que imprime sorrisos de glória à linda curva do seio; por ela os olhos expressam languidez ou triunfo, os corpos, com trajes artísticos, fazem ressaltar a harmonia das formas. A coquetterie rodeia a mulher como uma allure graciosa ou grave segundo correspondia o seu tipo; ela rege as modulações da voz e a harmonia do rosto.

As palavras francesas como coquetterie, literalmente “a preocupação de se valorizar para agradar”, e allure, distinção de porte, somavam-se outras em inglês, influência do cinema: sex appeal e it. A primeira dispensa tradução; a segunda referia-se ao “quê” de sedutora que havia em cada mulher. “It é um dom de atração [...] uma qualidade passiva, que atrai a atenção e desperta o desejo. A mulher deve possuir o it para atrair o homem”, explicava o articulista de Cinearte em 1928. Já o sex appeal, segundo o mesmo cronista, definia-se pelo físico “atraente e perfeito, pelas atitudes provocantes, o olhar liquefeito e perigoso, no andar lento e sensual, nos lábios contornados e convidativos. As que têm (isso) os homens seus escravos são”. A “malícia”, outro ingrediente indispensável ao sucesso feminino, era sugerida tacitamente na estética cinematográfica.

Graças ao cinema norte-americano, novas imagens femininas se multiplicavam. A moda, diz a historiadora Fernanda Bicalho, foi uma das principais articuladoras do novo ideal estético imposto pela indústria cinematográfica norte-americana. Não era mais Paris quem a ditava, mas os estúdios de Hollywood. Nas páginas de revistas como Cinearte, podiam se encontrar, às dezenas, artigos com títulos sugestivos como: “O que as estrelas vestem?”, “Cabelos curtos ou compridos?”, “A volta das saias compridas”, “A mulher e a moda, segundo a opinião de Esther Ralston”, “As moças devem ou não usar meias? Falam algumas estrelas de Hollywood”, “Por que as estrelas fumam?” etc.

Na matéria “Não se vistam como nós”, o articulista constata com certa ironia que, após a exibição de um filme com “uma mulher perigosa, toda vestida de cetim [...] voluptuosa e tentadora”, é inevitável que, “dias depois, nos escritórios das cidades [...] as datilógrafas entrem, perfeitamente vestidas de cetim, com imensos brincos, com o penteado daquela artista. E, quando possível, imitando-a, terrivelmente”. O que estava em jogo era a transformação do corpo feminino em objeto de desejo fetichista. Se por um lado a estética cinematográfica representava a mentalidade moderna e um domínio em meio ao qual a mulher podia tomar iniciativas, por outro, a sensualidade que emanava de sua representação a transformava em objeto passivo de consumo. Mais um adendo: a indumentária usada pelas atrizes, e copiada no mundo inteiro, não fazia mais do que traduzir metaforicamente a personalidade feminina. Ora, o poder de sedução de estrelas do cinema marcou toda uma geração de mulheres, servindo de modelo para a imagem que elas queriam delas mesmas.

Ao aparecimento desses rostos na tela – rostos jovens, maliciosos e sensuais –, somaram-se outros fatores cruciais para a construção de um modelo de beleza. Data dessa época o banimento de cena da mulher velha. Se até o século XIX matronas pesadas e vestidas de negro enfeitavam álbuns de família e retratos a óleo, nas salas de jantar das casas patrícias, no século XX, elas tendiam a desaparecer da vida pública.

Envelhecer começava a ser associado à perda de prestígio e ao afastamento do convívio social. Identificava-se gordura à velhice; era a emergência da lipofobia. Não se associava mais o redondo das formas – as “cheinhas” – à saúde, ao prazer, à pacífica prosperidade burguesa que lhes permitia comer muito, do bom e do melhor. A obesidade tornou-se critério determinante de feiura, representando o universo do vulgar, em oposição ao elegante, fino e raro. Esbelteza e juventude se sobrepunham: “É feio, é triste mesmo ver-se uma pessoa obesa, principalmente se se tratar de uma senhora; toca às vezes as raias da repugnância”, advertia a Revista Feminina em 1923. A gordura opunha-se aos novos tempos, que exigiam corpos ágeis e rápidos. A magreza tinha mesmo algo de libertário: leves, as mulheres moviam-se mais e mais rapidamente, cobriam-se menos, com vestidos cada vez mais curtos e estreitos, estavam nas ruas. O rosto rosado pelo ar livre, pela atividade, não se coadunava com o semblante amarelado das mulheres confinadas em casa.

Vitória da silhueta reta? Não! Ilustrações e charges dão pistas para o gosto masculino em relação às formas femininas. Elas seguiam arredondadas, valorizando quadris e nádegas, seios pequenos e pouco salientes. Resumindo: quatrocentos anos de morenas e mulatas sinuosas, da consagrada “morenidade” descrita por Gilberto Freyre, resistiam com bravura aos modelos importados e aos avanços das beldades escandinavas, ditados pelo higienismo ou por influência hollywoodiana, imposta pelo cinema.
 
Sol e sal...

Os banhos de mar, mesmo com muitas restrições, tiveram importante significado para as mulheres. Encarados inicialmente como remédio, acabaram por proporcionar uma nova oportunidade de convívio social. A princípio, as “mulheres de respeito” tomavam banhos de madrugada, quando o dia ainda clareava, usando uma indumentária rigorosa feita de “calças muito largas de baeta, tão áspera que mesmo molhada não lhe pode cingir o corpo”. Do mesmo tecido, um blusão com gola larguíssima, à marinheira, abrigada a um laço amplo que servia de enfeite, mas também de tapume a uma possível manifestação de qualquer coisa que sugerisse um seio. Calças até os tornozelos caíam em babados, cobrindo os pés. Estes eram calçados com sapatos de lona e corda, amarradas, à romana, na perna. Na cabeça, uma touca de oleado ou chapelões de aba larga. Mesmo com tantas precauções, a presença de mulheres na praia significava tal revolução, capaz até mesmo de mexer com a imaginação dos homens. Não eram, por consequência, poucas as admoestações que estes encontravam afixadas nas casas de banho, que se multiplicavam nas praias: “É expressamente proibido fazer furos nestas cabines; os encontrados nesta prática serão entregues à ação da polícia”. Apesar dos avanços, Hermínia Adelaide, conhecida artista, ainda escandalizava a população ao banhar-se na praia do Flamengo com roupas que desenhavam-lhe a forma física. Todos paravam para olhar; as moças de família, encabuladas, viravam o rosto.

Em maio de 1923, a gaúcha Cecília de Assis Brasil, em férias na avenida Atlântica, número 686, Rio de Janeiro, registrava no diário: “Às sete horas da manhã, toda a família está de roupa de banho, em volta da mesa, tomando café. Do outro lado da rua, está a praia. Agora que aprendemos a nos defender das grandes ondas, nadamos bastante todos os dias e até somos as moças mais ousadas deste bairro. Depois do banho, ficamos em casa até a hora do almoço, costurando, remendando, tricotando”.

Mas as mudanças caminhavam a passos largos. Para ficar num exemplo, no dia 8 de fevereiro de 1920, na piscina do Fluminense Futebol Clube, ocorreu a primeira competição em piscina com três provas femininas. Nadaram: Edith Julien, Maria Augusta Lopes, Mirian Antunes e Adélia Caldas Brito. Tudo indica que, desde 1919, quando a piscina do Fluminense foi inaugurada (a primeira no Rio), mulheres, sócias do clube, já participavam de aulas de natação. Em 1949, a ligação pelo então túnel Carioca, hoje Túnel Novo, ganhou uma segunda galeria. O fácil acesso às praias de Copacabana e Ipanema chegou com uma nova invenção: a do biquíni. Os cinejornais de César Nunes revelam as cariocas em pesados duas-peças, muitas delas esquivando-se das câmaras para não serem reconhecidas pelos familiares. A voz do locutor anunciava que a praia era patrulhada por uma “polícia marítima” encarregada de impedir “os malandros de tirar casquinhas no rebuliço das ondas da arrebentação”.

Esses foram os anos dourados da natação feminina. Na piscina do Flamengo, por exemplo, a arquibancada vinha abaixo com gritos de “Boa”, “Boa”, cada vez que a escultural Neusa Cordovil subia à raia para disputar uma prova. Em São Paulo, treinando no Tietê, destacou-se a grande nadadora Maria Lenk, autora de Natação, coroa dos exercícios físicos, livro no qual explicava que nadar “não prejudicava as virtudes femininas de graciosa fragilidade impostas pelo machismo dominador”. Revistas como a Tricolor, de 1929, louvavam a natação, esporte que transformava mulheres em sereias:

Devemos destacar a prova em que Vera Oiticica, qual sereia encantadora, olhando o teto da piscina com o sorriso da vitória nos meigos lábios entreabertos, venceu a já famosa Veroneze. [...] venceu admiravelmente bem. Como a nadadora excelente que é e empolgou ainda mais pela elegância do estilo que possui [...]. O seu triunfo foi saudado por estrepitosa salva de palmas [...] que sirvam de incentivo [...] para que ela, jovem como é, chegue a ser mais tarde a embaixatriz brasileira em contendas mundiais [...] Que Vera ofereça ao mundo um exemplo da pujança da nossa raça.

Entre sereias e rainhas, Daisy Correa de Oliveira, nadadora do Fluminense, foi a rainha dos Jogos da Primavera de 1955.
 
“Nasce a louraça Belzebu”

Foi Gilberto Freyre quem chamou atenção para o surgimento da moda das louras entre nós. No final do Império, o Brasil foi invadido por uma série de inovações técnicas adaptáveis à busca de melhoria da situação industrial em que estávamos. Importavam-se desde descascadores, despolpadores e ventiladores para produtos agrícolas, até o gosto pela cerveja – Franziskaner Brau e Pilsener, ou Ypiranga –, já fabricada entre nós. Os sapatos Clark, feitos por escoceses, “expressamente adaptados ao clima do Brasil”, prometiam dar aos pés “a maior elegância”. Armarinhos e lojas importavam “as novidades das estações”, o “chic parisien”, enquanto nos leilões de arte disputavam-se artigos com nomes antes desconhecidos: bibelot, cristofle, fayance, maple. A máquina Singer, introduzida no final do século, permitia copiar todos os francesismos. Uma representante de Au Printemps, no Rio de Janeiro de mil oitocentos e tanto, incentivava o consumo de roupa de baixo e enxovais de noivas ou de colégios, cuja brancura doméstica era mantida graças aos excrementos de cabra, alvejante sem par.

Na voga das coisas que vêm de fora, explica-nos Freyre, chegaram as louras. Não as de carne e osso, mas as de porcelana com olhos azuis. Eram as bonecas francesas, substitutas das de pano, companheiras de brinquedo de tantas meninas e iaiás. Eram bonecas de meninas ricas, as mais prestigiosas. Coradas e vestidas de seda, “resultado de mãos hábeis no modelamento, possuíam feições simpáticas”. Segundo Freyre, o culto da boneca loura e de olhos azuis entre as meninas da gente mais rica do Império deve ter concorrido para contaminar algumas delas de certo arianismo; para desenvolver no espírito a idealização das crianças que nascessem louras e crescessem parecidas às bonecas francesas; e também para tornar a francesa o tipo ideal de mulher bela e elegante aos olhos das moças nas quais depressa se transformavam no trópico aquelas meninas.

O desprezo pela pele trigueira foi agravado pela contemplação de anjos, madonas e santos nórdicos nas capelas de colégios, ou pela leitura das aventuras de Chiquinho, herói louro da revista O Tico-Tico. Depois das bonecas de louça do final do Império, chegaram outras louras, muitas delas falsas. Eram as Mimis, prostitutas estrangeiras de cabelo “cor de fogo”, carnes brancas e, na maioria, com sotaque carregado: “Menino, vem cá prá dentro sinó vam te fazer mal”!, gritou certa vez uma delas para o jovem artista Di Cavalcanti, fugitivo de uma briga na rua do Núncio, Rio de Janeiro. Foram tais “mundanas” ou “hetairas” europeias que desenvolveram entre nossos homens certa “consciência sanitária”, participando a seu modo da onda de higienização que varria as grandes capitais da jovem República.

A moda da loura ganharia força logo depois da proclamação da República, por diferentes razões: a princípio, pelo ideal de branqueamento das elites, incomodadas com o mulatismo da população; a seguir, graças à chegada massiva de imigrantes estrangeiros, os alemães sobretudo, considerados exemplares modelos de eugenia; por fim, pelas teorias arianas que conquistaram parte dos intelectuais brasileiros. Era crença comum que o “clareamento da pele” aproximaria o Brasil de certa “melhoria da raça”, responsável, em última instância, pela construção do progresso nacional. Em tal cenário, fica fácil entender a valorização social das mulheres claras.

Quem não era branca tratava de parecê-lo com o auxílio de pós, pomadas brancas e cabelos tingidos. Revistas femininas recomendavam às mulheres protegerem-se do sol antes de sair de casa, evitando a todo o custo o “aspecto grosseiro” e a “cor feia” resultante do bronzeamento. A beleza natural não estava associada à pele dourada, mas às faces rosadas. Gustavo Barroso, no romance Mississipi, retrata os efeitos da moda da loura na literatura: “Para mal de seus pecados, seu coração se inclinou por Dona Almerinda. Tudo sedução daquela beleza física até certo ponto estranha numa terra de morenas: o ouro dos cabelos e a safira dos olhos, a pele de pêssego que dava vontade de morder”.

A sequência encabeçada pela platinum blonde Jean Harlow, seguida de Marlene Dietrich, Marilyn Monroe, Anita Ekberg, Jane Mansfield, Doris Day, entre outras, constituíram uma linhagem de grande influência entre nós, até a chegada das Barbies nos anos 1990.
 
Abaixo as Barbies!

A feiura não tem história. Tampouco se escreveu a história da solidão e da dor, e de suas consequências mais imediatas. Há séculos, os feios servem de bode expiatório a sociedades muito seguras da própria verdade e do discurso das elites, que, tal como as nossas nos anos 1920 e 1930, determinavam que a beleza era o modelo “sueco”. Hoje, embora o discurso higienista tenha desaparecido, continuamos falando em coisas como “patricinhas e mauricinhos”, em “peruas e marombeiros”. Nessa perspectiva, as transformações do corpo da mulher brasileira foram brutais. Uma radicalização compulsiva e ansiosa a impeliu nos últimos dez anos, e continua a impeli-la, para a tríade abençoada pela mídia: ser bela, ser jovem, ser saudável! Graças à supremacia das imagens, instaurou-se a tirania da perfeição física. Hoje, todas querem ser magras, leves, turbinadas. Em um mundo onde se morre de fome, grassa uma verdadeira lipofobia – todas as mulheres parecem querer participar da sinfonia do corpo magnífico, quase atualizando as intolerantes teses estéticas dos nazistas.

Na outra ponta, criaturas como Madre Teresa de Calcutá conheceram de perto os horrores do sofrimento físico. Numa entrevista, ela dizia que o trágico da “feiura” de um leproso era a solidão, o fato de ser indesejável, não amado, rejeitado; que tudo se podia fazer por um corpo em sofrimento, mas nada por esse “outro” sofrimento feito de negação. Anônimas, as que não são belas apenas recusam o próprio corpo, tanto mais quanto vivemos hoje a supremacia da aparência. A fotografia, o filme, a televisão e o espelho das academias dão à mulher moderna o conhecimento objetivo da própria imagem, mas também a forma subjetiva que ela deve ter aos olhos dos semelhantes. Numa sociedade de consumo, a estética aparece como motor do bom desenvolvimento da existência. O hábito não faz o monge, mas quase...

A feiura é vivida como um drama. Daí a multiplicação de fábricas de “beleza”, cujo pior fruto é a clínica de cirurgia plástica milagrosa. Os pagamentos a perder de vista, com “pequenos juros de mercado”, parecem garantir, graças às próteses, a constituição de um novo corpo: formal, mecânico, teatral – corpo que é a efígie do desejo moderno, desejo derrisório de uma perpétua troca das peças que envelhecem, desde nádegas até coxas e panturrilhas.

Essa relação com o corpo implica opiniões contraditórias. Os adversários da cirurgia estética recusam-se em acordar ao corpo uma importância que valha a pena modificar; o que conta é a alma ou o espírito. O desejo de modificação torna-se para alguns até mesmo suspeito. Os partidários, por sua vez, acreditam que a forma corporal é uma realidade cujo papel na vida cotidiana está longe de ser pequeno. A cirurgia, nesse caso, é um elemento importante para o equilíbrio psicológico e seus desdobramentos: o casamento feliz, o sucesso profissional! As pessoas pouco percebem que a chave de um bom relacionamento com a vida passa por certa dose de aceitação, inteligência, carinho e alegria – pelo menos, é o que afirmam os especialistas!

O tal equilíbrio passa, também, por uma constatação à qual é dada pouca atenção: o culto à beleza, e exclusivamente a ela, é perigoso. Estando intimamente ligado àquele da juventude e do efêmero, torna-se um desafio ao tempo, e, mais dramático, ao homem por si mesmo. Pior é quando um modelo de beleza nosso, mestiço, passa a ser ameaçado pelo que vem de fora. Entre nós, aumenta assustadoramente o número de mulheres que opta pela imagem da “Barbie” norte-americana, dona de volumosos seios de plástico, cabeleiras louras falsas e lábios de Pato Donald. No outro extremo encontramos a androginia mais absoluta, onde cada um quer ter as formas do outro, com todas as consequências. Inclusive aquela terrível, de que, quando as preocupações físicas tomam a frente, significam o medo e a recusa dos que não são como nós. Mal se percebe que nossa sociedade valoriza não a identidade, mas a identificação. Os pequenos defeitos, que outrora davam charme a uma mulher, o tal de it, estão em baixa.

Ora, o Brasil é um país mestiço. Nossos corpos são o resultado de uma longa história biológica em que se misturam índios, negros, brancos de várias procedências, além de amarelos. Os resultados foram ancas, cabelos crespos, a maneira ondulante de andar e o que Gilberto Freyre chamava de “morenidade”. É preciso proteger e libertar a sociedade do que ela pode fazer consigo mesma. É preciso proteger nela sua integridade, identidade, a dignidade de suas formas e de suas cores originais, contra o desmantelamento do corpo. Resumindo: cada uma de nós deve ser “mestiça” a seu jeito.

Xô Barbies, próteses, anabolizantes, anoréxicas e oxigenadas! Abaixo a insistência em fabricar mulheres sem marcas nem diferenças capazes de individualizá-las. Num país onde são tantas as variáveis corporais, onde graças e desgraças são distribuídas de acordo com as diversas heranças biológicas e sociais, a imposição de um modelo “perua” importada só é bom quando se trata de veículo de passeio sobre quatro rodas!
 
A academia, o médico e o monstro

Mas como é que médicos, especialistas e jornalistas vêm tratando das transformações do corpo feminino em nossa sociedade? Realizada em setembro de 1996, uma pesquisa Datafolha, cujo título era “Beleza a Qualquer Custo”, revelava que 50% das mulheres não estavam satisfeitas com seu peso e 55% gostariam de fazer uma cirurgia plástica. O dado contrastante é que 61% delas não praticava exercícios físicos, preferindo cuidar da beleza na base da compra de cosméticos. Barrigas perfeitas, pernas rijas, seios altos, enfim, se possível, “tudo no lugar”... graças a produtos milagrosos! A jornalista Alessandra Blanco informa, ainda, que, de todas as entrevistadas, apenas 2% disseram não se importar e não comprar produtos de beleza. As demais, segundo ela, compram, e muito: 44% das mulheres gastavam mais de 20% do salário com esse tipo de produto. E esse número não fica apenas nas camadas sociais mais elevadas, informa-nos a jornalista. Ao contrário, entre mulheres cujos rendimentos iam até dez salários-mínimos, 54% diziam gastar mais de 20% do salário com cosméticos.

As partes menos apreciadas do corpo feminino, e, portanto, sujeitas à mudança graças ao bisturi seriam barriga (16%), seios (12%) e rosto (9%). Por que isso tudo? “Medo de envelhecer”, confessa uma entrevistada. “A hora que cair tudo, eu subo. Não tenho o menor pudor”, afirma conhecida atriz. Segundo a jornalista, a eterna reclamação masculina de que as mulheres nunca estão satisfeitas com a própria aparência também parece ser verdade. Segundo a Datafolha, 64% gostariam de mudar alguma coisa no cabelo, 50% não estão satisfeitas com o peso atual e 20% gostariam de perder mais de dez quilos. Emagrecer, sim. Fazer ginástica, como propunham os higienistas dos anos 1920, não! A preocupação com a beleza suplanta a com a saúde.

Microcâmaras que entram no corpo, cânulas que sugam gentilmente camadas de gordura entre peles e músculos, transferência de gordura de uma região do corpo para outra, substâncias sintéticas que funcionam como massa de modelar – tudo isso permite à mulher “fazer-se mais bela”. Na ânsia de escapar às transformações que chegam com a idade, ou à fantasia de ter o nariz da Cindy Crawford, ela é capaz de tudo. Demi Moore fez onze operações para obter um corpo escultural e Jane Fonda, apesar de propalar as receitas de um corpo feliz por seu método de ginástica, retirou costelas inferiores para afinar a cintura.

A maior rede nacional de televisão apresentou em horário nobre uma moça de vinte anos que havia começado, ainda adolescente, a se submeter à “prática estética” de cirurgias, já contando com duas dezenas delas. Se ao público o corpo e o rosto não pareciam ter sofrido grandes mudanças, ela, por outro lado, afirmava sentir-se muito mais feliz!

Segundo pesquisa realizada pela Globo Ciência em 1996, 6 mil profissionais brasileiros que atuavam na área realizaram nada menos de 150 mil operações estéticas (o maior índice mundial em relação à população) e o dobro de reparadoras, conforme as estimativas. Em 2010, passamos a ser o segundo país em cirurgias, perdendo apenas para os Estados Unidos: 629 mil. Em 2013, foram 905.124. O caso parece sinalizar a existência de uma “epidemia nacional de vaidade”, dizem os jornalistas responsáveis pela matéria. Ivo Pitanguy negou o fato: “Não há um culto em relação à cirurgia estética. O que existe é a valorização do corpo, da boa forma física. Nos últimos anos, houve uma maior tendência em se cultuar a imagem. As pessoas procuram fazer ginástica, preferem uma alimentação sadia, com o objetivo de ficarem bem consigo mesmas. E também procuram os caminhos da cirurgia plástica para isso”.

Alimentação sadia? Tudo indica que esse é um erro da avaliação de Pitanguy. A revista Época publicou avassaladora matéria cujo título é “O triunfo do hambúrguer”. O que deveria ser uma preferência juvenil, ou seja, cachorro-quente, batata frita, sorvetes e chocolates, é hoje o cardápio de 30% de integrantes das classes A e B. A obesidade ameaça, adverte a Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição. As transformações na alimentação são certamente responsáveis por mudanças na saúde e na forma física. Consumimos, cada vez mais, uma alimentação calórica, responsável por terríveis quadros de hipertensão, diabetes e colesterol alto, segundo adverte o diretor da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Marcos Vinícius Malaquias.

No campo da beleza, a alimentação também faz suas vítimas. Em 2012, realizaram-se cerca de 1.788 cirurgias plásticas por dia, das quais quase 30% são lipoaspirações, segundo o Ibope. Encontros como as Jornadas Cariocas de Cirurgia Plástica colocam em cena prós e contras dos diferentes tipos de cirurgia estética. Há polêmicas sobre a eficácia dos implantes de silicone nas nádegas, por exemplo, que, segundo alguns cirurgiões, não funciona nos glúteos volumosos da mulher brasileira: “A cirurgia só é indicada para mulheres totalmente sem nádegas ou de nádegas caídas ou flácidas, mas os resultados não têm sido satisfatórios. Ainda há riscos de compressão dos nervos que vão para as pernas”, adverte o cirurgião plástico Paulo Roberto Leal. Já seu colega José Aurino Cavalcanti Saraiva afirma ser essa uma “cirurgia campeã”. “Do ano passado para cá”, comenta, “aumentou bastante a procura. Hoje se equipara à procura por implantes de mama”. Sua cliente Isabel, empresária, garante: “Fiz e foi ótimo. Nos 15 primeiros dias senti um pouco de incômodo e o bumbum pesado e, durante dias precisei dormir de bruços. Mas já no sexto dia viajei de carro durante três horas, sem problemas!”.

Outra questão: a lipoaspiração, que faz vinte anos. A intervenção aumentou 129% nos últimos quatro anos. Um dos temas mais debatidos é a quantidade de gordura que deve ser retirada de cada paciente. Alguns médicos criticam colegas que fazem megalipoaspirações, retirando de dez a quinze litros de gordura do paciente. A clínica Santé, em São Paulo, faz rotina dessas cirurgias e está sendo intimada pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica a dar explicações. Não à toa, multiplicam-se os casos como o de Roberta Woo, leitora da revista Plástica e Você, que pergunta à coluna do doutor Ewaldo Bolívar: “Eu fiz lipoaspiração na barriga há um ano e ficou cheia de ondas. Dá para consertar isso?”.

O cirurgião plástico Farid Hakme aponta os hábitos alimentares das brasileiras como responsáveis pelo aumento da demanda de cirurgias e lipoaspirações ou lipoesculturas. Some-se a isso, explica o médico, a miscigenação, característica de nossa cultura, capaz de somar um nariz levantino com um posterior africano. “A combinação nem sempre harmoniosa dos traços promove desproporcionalidades”, que podem ser eliminadas graças à “multiplástica”, ou seja, uma cirurgia que corrige, ao mesmo tempo, diversas imperfeições anatômicas, paga em suaves prestações. Hakme é dos poucos a dizer com todas as letras que beleza não pode ser um “apanágio dos endinheirados”. De fato. As revistas femininas e a mídia em geral, ao referirem-se às benesses da plástica, fazem-no sempre tendo como interlocutoras as mulheres que pertencem às camadas altas da população. É como se, na outra ponta, feiura e pobreza se misturassem num rótulo único. O efeito não pode ser mais perverso. Além de todas as clivagens econômicas e sociais que existem no Brasil, haveria essa outra: a da estética.

Entrevistada, a fotógrafa Isabel Pedrosa deu sua versão das dificuldades encontradas pelos bons profissionais ao ter de clicar uma siliconada para revistas tipo Playboy ou outras do gênero:

Será que o leitor percebe que o que está vendo, admirando em fotos de mulher nua em revistas como a Playboy, não é o que o fotógrafo vê quando está diante daquela modelo? Será que dá para perceber que tudo é uma grande ilusão? Que não há mulher perfeita no mundo? Alguns fotógrafos contam que muitas vezes, quando olham a mulher nua a ser fotografada, pensam: “Ih! Agora dancei mesmo!”. Tentam compensar todos os “defeitos” daquele corpo com truques de iluminação, foques e desfoques de lentes, filtros e toda a tecnologia ao alcance. Mas o milagre efetivamente ocorre no computador. Onde todas as “falhas” são minuciosamente corrigidas. Não há uma foto sequer, publicada nesse tipo de revista, que não tenha sido retocada, aliás, brilhantemente na maioria das vezes. Não importa se a mulher é uma garota, uma balzaquiana ou uma cinquentona: sempre há alguma “imperfeição” que é apagada. Me pergunto como essas mulheres (e seus maridos/namorados/amantes), depois de se verem transformadas pelos programas do computador, se sentem? Ficará a frustração de não serem daquele jeito [...] A pergunta é: até que ponto as revistas vendem a fotografia de mulher nua como algo real, verídico. Até que ponto os leitores compram a revista pensando que aquilo que estão vendo não tem nenhuma interferência humana (outra que não a dos médicos, bem entendido!). E até que ponto essas imagens de perfeição impossível não interfere nos relacionamentos homem/mulher. E não minam a autoestima feminina?

Alimentação equivocada, falta de exercício e mestiçagens biológicas somam-se a outro dado da pós-modernidade para consagrar a obsessão pelo corpo perfeito: a magreza. As carnudas estrelas dos anos 1950, como Marilyn Monroe, Sophia Loren ou Anita Ekberg, foram substituídas, nos 1960, por criaturas esquálidas. O modelo? Certa Twiggy, uma inglesa sardenta e seus epígonos: Kate Moss, Claudia Schiffer, entre outras. Nossa época lipofóbica deixou para trás o padrão de estética burguês que associava riqueza e gordura. A estigmatização de gordas é produto do fosso cada vez mais profundo entre identidade social e identidade virtual.

A alimentação em quantidade foi substituída pela de qualidade, esta promessa de saúde e beleza. Nessa lógica, o corpo precisa refletir o controle narcísico dos apetites, das pulsões, das fraquezas. Ai daquelas que não se controlam frente ao prato de batatas fritas! Vencidas pela gula, as gordas são consideradas fracassadas, inspirando, segundo pesquisadores, imagens ligadas a “piedade” e “pena”. Tornar-se um saco de ossos parece o ideal da mulher contemporânea, que habita um mundo onde milhares morrem de fome. Regimes obsessivos associados à estética do corpo multiplicam-se em revistas femininas, que lhes consagram números inteiros com terríveis títulos do tipo: “Última chance antes do verão!”. O espelho retruca: “nunca magra o bastante!”.

A retórica sobre a magreza não pode ser mais repressiva. O resultado dessa onda é que os casos de bulimia e anorexia nervosa não param de se multiplicar entre jovens europeias. As chamadas desordens alimentares vêm mobilizando médicos de toda parte. Eles não hesitam em afirmar que a magreza é, hoje, uma questão sociocultural. A pressão de se tornar fisicamente perfeita caminha, lado a lado, com o ideal de conseguir chegar ao corpo ideal, em forma, saudável. Mesmo que à custa de atropelar calorias necessárias para uma vida equilibrada. “Jantares? Só quando convidada e mesmo assim deixou de ser um dos meus programas prediletos, pois vivo numa dieta rigorosa [...] como já disse, comer há muito deixou de ser um prazer e sim a satisfação pura e simples de uma necessidade vital. Alimento-me muito mais dos elogios que recebo”, explica uma mulher.
 
“Sofrer para ser bela”

Nos anos 1970, desembarcaram no Brasil, com as bonecas Barbie, numerosas máquinas e técnicas do corpo, instrumentos de um verdadeiro marketing de vivências corporais: o body business. Passava-se de uma estética para uma ética feminina, que obrigaria a mulher a se responsabilizar pelo próprio envelhecimento. O corpo numa sociedade de abundância industrial tinha uma nova tarefa: ser um corpo consumidor e, pior, consumidor em cada uma das partes individualizadas e cuidadas. Para as unhas, esmaltes e lixas. Para os cabelos, xampus, tinturas, secadores. Para o corpo, bronzeadores, hidratantes, sabonetes cremosos e desodorizantes.

Difundindo padrões de beleza, as imagens publicitárias de produtos nunca dantes vistos refletem-se no público feminino. De modo irônico, diz a psicóloga Joana Novaes, trata-se de um corpo que, ao buscar incessantemente sua originalidade, apaga-se no coletivo dessa busca, pois esta se transforma em regra. De maneira dramática, a busca sempre se referirá a um ideal inatingível, uma vez que as imagens veiculadas nada têm de humano, e a promessa de felicidade absoluta, plenitude e intemporalidade aí contidas empurram as mulheres para a impossibilidade de se adequar aos novos padrões estéticos. A publicidade embute, em relação a essas que não se encaixam aos padrões, uma ideologia de fracasso, de impotência perante o próprio corpo.

A indústria cultural ensina às mulheres que cuidar do binômio saúde-beleza é o caminho seguro para a felicidade individual. É o culto ao corpo na religião do indivíduo, em que cada um é simultaneamente adorador e adorado. Mas o culto não é para todos – o tal corpo adorado é um corpo de “classe”. Ele pertence a quem possui capital para frequentar determinadas academias, tem personal trainers, investe em body fitness, sendo trabalhado e valorizado até adquirir as condições ideais de competitividade que lhe garantam assento na lógica capitalista. Quem não o modela está fora; é excluída.

O artifício é inteligente em termos econômicos, uma vez que insere em outro tipo de mercado consumidor toda uma camada da população feminina privada dos serviços de academias de ginástica e de práticas dispendiosas, explica Joana Novaes. O canal de TV Shoptime e os catálogos em domicílio, com todas as ofertas a preços populares, desde aparelhos para “tirar a barriga”, cremes para celulite, pastas emagrecedoras até steps e esteiras domésticas, são exemplares para ilustrar a lógica de mercado. O modelo visa a gratificação imediata, prometendo à consumidora que nada lhe será negado. A beleza é vendida como uma promessa para todas!

Ter um corpo trabalhado, explica Novaes, está na ordem do dia, e não é à toa que o verbo mais empregado é “malhar”. Malhar como se malha o ferro, malhar significando o intenso esforço embutido nesse significante – trabalhar diferentes partes do corpo que precisam ser modificadas. Do joelho ao culote, do braço à panturrilha, o corpo é visto como fragmento, cada parte passível de ser reesculpida, consertada, desconectada do todo.

Questionadas sobre por que malham, as mulheres respondem:

• “Na moda atual conjugamos roupas ínfimas e corpos secos destituídos de qualquer gordura. Para meu desespero, gordinhas não são apreciadas!”
• “Para lutar contra a lei da gravidade, meu bem...”
• “Vivo em função disso. Igual a criança quando vicia nas coisas.”
• ”Gostaria de ser do tipo de mulher que acredita que idade é um estado de espírito...”
• “Porque a competição hoje é foda.”
• “Isso aqui é a minha dose diária de injeção no ego.”
• “Sabe que eu me acho o máximo? Quando eu vou à praia e olho aquelas garotas de 20 anos cheias de estrias, flácidas e a bunda coalhada de celulite, e eu não tenho nada disso...”
• “Para ficar gostosa”.

A beleza moderna, longe de prometer compensação à mulher, aprofunda sua frustração e impotência em face da imagem ideal. Ela passa a ser mais algoz de si mesma, desenvolvendo uma relação persecutória contra o próprio corpo. Cada ruga, cada grama levam-na ao desespero. Aprisionada às máquinas, ao personal trainer, às drogas anabolizantes, essa mulher se vê como escrava da imagem de Barbies, Xuxas, Galisteus e quejandos. É cada vez mais aquilo que o outro quer, precisa ou permite que ela seja. Pior: transformada em miragem, não é o que se vê, mas o que se quer ver. A modelo carioca Marinara exemplifica, em uma entrevista, tal projeção: “Levei menos de dois anos para esculpir meus músculos e, além de musculação, gosto de dançar e pedalar. Depois dos 30 anos a mulher precisa se cuidar. A tendência é ela ter um corpo cada vez mais definido, mas é preciso saber dosar para não ganhar uma silhueta masculina. A Madonna é um exemplo de corpo ideal”.

O fim do século XX inventou um narcisismo coletivo. A beleza instituiu-se como prática corrente; pior: ela consagrou-se como condição fundamental para as relações sociais. Banalizada, estereotipada, ela invade o cotidiano através da televisão, do cinema, da mídia, explodindo num todo – o corpo nu, na maioria das vezes –, ou em pedaços – pernas, costas, seios e nádegas. Nas praias, nas ruas, em estádios ou salas de ginástica, ela exerce uma ditadura permanente, humilhando e afetando os que não se dobram a seu império.

Em resposta às questões de Joana Novaes, muitas mulheres mostram-se participantes desse modelo:

Já tomei de tudo: bomba, aminoácido, fat burner e, além disso, me trato com ortomolecular, onde comecei a tomar minerais, antioxidantes e vitaminas. Mas antigamente era pior, quando malhava na Radar (academia, segundo a psicóloga, situada na zona sul do Rio de Janeiro e frequentada por malhadores compulsivos). Para mim é assim: acho que a gente não tem de conviver com aquilo que a gente não gosta. Eu, por exemplo, não gostava do meu nariz; fiz plástica. Achava que tinha uma bola nos quadris, lipoaspirei o culote. Achava que tinha seios pequenos demais, virei Barbie, taquei silicone. Não queria esperar o meu cabelo crescer, coloquei um Mega hair. Mas hoje só consumo o que é realmente necessário, pois não dá para bancar tudo.

Outra comenta: “O meu corpo é diferente do padrão brasileiro. Pouco busto, no máximo 40; pouca cintura e pouco quadril. Um corpo sem excessos. Pernas longas, braços longos, pescoço muito longo. Se você perguntasse para um homem, ele diria preferir uma Tiazinha, ou uma Carla Perez, muita coxa, cinturinha e bundão. Eu prefiro assim...”. E também: “O que não suporto é gente se lamuriando insatisfeita com o próprio corpo, mas que não faz nada a respeito. No meu caso, quando começar a sentir que tem algum excesso, vou me cortar”. Outra mulher afirma: “Minha autoestima melhorou muito com esse lance de preocupação com o corpo. Mas não é só isso. É toda uma postura, uma forma de encarar a vida sempre light, contra o baixo-astral. Isso tudo acredito que tenha ajudado a atrair mais homens, sobretudo, os gatinhos mais jovens”.

E há ainda outros relatos: “Quando venho malhar e mantenho o meu peso ideal, tá tudo azul, saio, me divirto, levo uma vida normal. Quando não, é depressão na certa, não me relaciono nem com meus filhos”; “Ah! Mas isso tudo não é para agradar os outros... é para eu me sentir melhor comigo mesma, mais feliz. É felicidade irrestrita, entende?”; “Jamais vou alcançar Luana Piovani e Adriane Galisteu!”.

Segundo Novaes, para as entrevistadas (mulheres na faixa etária entre 16 e 48 anos), “malhar” está associado à saúde, porém o conceito de saúde refere-se, ele mesmo, às melhorias estéticas. Implícita nessa associação existe a construção social de uma identidade feminina calcada quase exclusivamente na montagem e escultura desse novo corpo. Ou seja, um corpo cirúrgico, esculpido, fabricado e produzido, corpo que é centro das atenções e objeto-fetiche de consumo.

A beleza, nesse contexto, explica-nos ela, deixa de ter como função mostrar as características essenciais das mulheres e passa, cada vez mais, a seguir modelos menos diferenciados entre homens e mulheres – o modelo andrógino. É na “bundinha definida”, ou seja, no bumbum arrebitado e bem trabalhado, que se cruzam dois ideais: o de valorização masculina de beleza de uma parte do corpo e a construção social da feminilidade como corpo. Por consequência, a mulher fica diante de dois modelos inatingíveis: o primeiro referido ao modelo masculino do corpo, anatomicamente impossível de ser alcançado; o segundo, referido às modelos fotográficas.

Ora, tais corpos, como explica a psicóloga, colocam distância entre real e imaginário. Sim, pois o que as fotografias propõem são corpos idealizados, abstratos, inatingíveis e mesmo eternos – corpos que não são submetidos à dor, ao envelhecimento e muito menos à morte. O que muitas vezes poderia ser encarado como uma das maiores possibilidades do feminino, qual seja, a vivência da dor, do corpo em sua interioridade, em função da anatomia, foi sempre ocultado, não valorizado e, muitas vezes, tido como vergonhoso. Dessa maneira, em vez de se apropriar do que, até por essência, seria da ordem do feminino, a mulher contemporânea investe na exterioridade do corpo, deixando-se aprisionar pelo mito imposto da juventude eterna – é prisioneira no próprio corpo.

Professora do Departamento de Psicologia da PUC-RJ e psicanalista, Dirce de Sá Freire Costa, ao refletir sobre as relações homem e mulher nessas circunstâncias, acrescenta:

Não é dessa mulher plastificada que ouvimos falar em nossos consultórios. Os clientes adultos masculinos nos falam de companheiras de carne e osso, ao contrário do que querem os meios de comunicação, e muito provavelmente o círculo de amigas e conhecidas que legitimam esse (falso) desejo de manterem um corpo esculpido de acordo com o modelo Barbie de consumo. As mães desses homens adultos, que exercem uma grande influência sobre suas escolhas amorosas, não partilhavam dessa estética perversa que veste com uma grande camisa de força o imaginário de suas mulheres e companheiras. Percebo uma tentativa, na maioria desses clientes, de provar para suas companheiras que estão satisfeitos com seus corpos, que chegam mesmo a achá-los belos. Mas eles não são sequer ouvidos, pois suas afirmações soam ao ouvido delas como um reles afago numa ferida narcísica, não podendo tais afirmações serem consideradas como verdadeiras.

Convertida em discurso, a beleza inunda a imprensa, confiando às imagens a representação incessante e exorbitante de suas graças. Manequins, atrizes e modelos fotográficos ditam o padrão a ser seguido diariamente. Vidas e corpos passam a fazer parte do imaginário feminino por meio de entrevistas na imprensa, biografias e sites. Não há beleza sem saúde – eis de onde vem o primado da forma, do shape, do fitness, primado chancelado por especialistas:

“O treinamento muscular”, garante um professor de musculação, “diminui o percentual de gordura. E isto faz parte de um padrão estético determinado pela sociedade moderna. Até modelos famosas, como Naomi Campbell, estão com o corpo mais musculoso. Mas é preciso ter um mínimo de percentual de gordura para manter as curvas que agradam a maioria dos homens e evitar problemas de saúde”.

Especialista no estudo de revistas femininas, Selma Garrini diz que elas têm papel fundamental na vigilância e reconstrução do corpo feminino. Títulos imperativos repetem palavras nas capas; em todas uma promessa de milagre: “Reduza seu manequim”, “Pílulas vão deixar cabelo e corpo perfeitos”, “Emagreça andando com seu cachorro”.

“Estar em forma” é fetiche que mudou a maneira de viver e pensar, inaugurando condutas que se estendem, inexoravelmente, às camadas subalternas da população. As academias, em bairros chiques, convivem com incipientes sucedâneos em favelas, segundo Joana Novaes. A visão de classe do corpo da bela rica será, em pouco tempo, a visão de um corpo padronizado. Para concluir: o terrível é que, de maneira geral, pobres e ricas, bonitas ou feias, as mulheres parecem se condenar a ser apenas um corpo, seu corpo.

Patinhos feios

Nos anos 1980, Carmen da Silva escreveu um artigo para Claudia, “A arte de não ser bela”. Nele, dizia: “Há pessoas que nascem bonitas: já aos dois ou três anos de idade, seus traços encerram uma inequívoca promessa de beleza. Outras nada têm de especialmente distintivo: podem vir a ser bonitas, medíocres ou feias”. Invocando as que, ao se olhar no espelho, reconheciam que “não eram lá essas coisas”, pergunta: “Não sou bonita e daí”? A preocupação com a feiura é antiga entre as mulheres. Produtos variados, ênfase na coquetterie, no charme e nos esportes foram tentativas de ultrapassar o problema.

No século XIX, só contava a beleza natural, livre de artifícios. No conto Diana, Machado de Assis revela o desencanto do homem que se vê cara a cara com a amada sem maquiagem: “Luís soltou um grito e recuou [...] Era que o sonho que durante dias criara e idealizara desfizera-se ali todo e de uma vez. Diana, a jovem, a bela, a sedutora mulher que tanto impressionara o advogado, era amarela, sem beleza, sem mocidade, sem encanto algum. Todos os encantos eram artifícios comprados e aplicados diariamente com uma paciência de feia pretensiosa”.

Pobres feias! Não tinham sequer o direito de se retocar. O diagnóstico consolador, dizia Carmen, é que “quem vê cara não vê coração”. E listava as belas infelizes: Marilyn Monroe, Brigitte Bardot e Elizabeth Taylor, cujas vidas, apesar do rosto perfeito, foram desperdiçadas. A insatisfação, insistia a jornalista, era o pior defeito. Tomar como referência padrões inatingíveis, depreciar os próprios valores, atribuir a solidão ao desgracioso nariz ou às pernas tortas só reforçavam o círculo vicioso de frustrações. Tudo bem se cuidar, tratar de melhorar o aspecto, ser faceira, mas sempre no limite do natural, admoestava. Importante mesmo era “a beleza da alma”; sim, adquirir confiança em si e “amar”: amar o mundo, as pessoas, estar aberta ao outro. “Dotada da capacidade de amar, a pessoa irradia calor vital, um clima estimulante e acolhedor que chama a simpatia, a amizade, o carinho, a dedicação alheia”.

Válido, o conselho de Carmen não dobrou as exigências de que as mulheres se aproximem de determinados ideais, que, apesar de mundializados, são variáveis no tempo e no espaço; porém, que seguem existindo e são ditatoriais. Com eles, revistas, telas e outdoors bombardeiam as mulheres; são rostos “maxfactorizados”, diz o filósofo Edgard Morin. O excesso de cirurgias plásticas os despersonalizam para superpersonalizá-los, até que encontrem a fixidez de máscaras.

A feiura é uma certeza: “Fui bela por um dia, com dezessete anos. Só o pai de uma amiga reconheceu e me disse. Fora disso, fui feia toda a vida”, diz uma personagem de romance. Por outro lado, por uma dessas artimanhas do destino biológico, a beleza tende a se extinguir com o tempo, caminhando ela também para a feiura. Consolo? A feia é amada por ela mesma, e não por seus belos olhos.

A palavra feiura, em português, vem do latim foeditas, que quer dizer, ao mesmo tempo, sujeira e vergonha. No francês, feiura é laideur, que vem de laedere, que significa ferir. Já no alemão usa-se hässlichkeit, derivado de hass, ou ódio. E, em japonês, feio, ou minikui, significa “difícil de ver”. Em uma sociedade na qual a imagem tem muito peso e a maior parte das mulheres considera que o corpo é uma mercadoria e a vitrina de suas qualidades, a televisão faz estragos definitivos. Quem desabafa é a grande atriz e diretora de arte Cristina Mutarelli:

A primeira imagem que me vem à cabeça quando pensamos no tema “a mulher na TV” é a da mulher loira, alta, bonita e magra. Essa imagem é muito forte, e aí está a Xuxa que não podemos desvincular dessa imagem. Mas antes da Xuxa, já havia a imagem americana de mulher, protagonista da televisão, das novelas e dos programas. Eu fico pensando não só na imagem dessa mulher, mas no seu comportamento. No programa matinal da Xuxa, ela falava para as pessoas tomarem café da manhã. Ela dizia: “Ah! Você é criança, você precisa crescer”! Vinha então um garçom e trazia um café maravilhoso, com sucos, geleias, queijos. Ela ia comendo e as pessoas iam ficando cada vez mais “verdes”. E ela dizia: “Isso você precisa ter na sua geladeira, você tem de pedir para a mamãe”. Era horrível.

Mas esta imagem é tão forte que, quando eu quis ser atriz, logo desisti porque pensei: uma atriz tem de ser loura, alta, bonita e magra. Aí eu olhei para mim e falei: eu não sou nada disso. Desisti então de ser atriz.

Cristina entrou em cena com o grupo Pod Minoga, que, com o Asdrúbal Trouxe o Trombone, de Regina Casé, fazia a crítica dessa imagem: “Eu fazia uma miss. A nossa proposta era criticar tudo o que era veiculado como imagem dominante”. E prossegue:

A mulher, na televisão, ou é bonita ou é cômica. É como a televisão absorve a imagem da mulher. E, às vezes, essa comicidade serve até para criticar a própria condição da mulher que não é bonita. A comicidade está na mulher não ser bonita, não ter o padrão de beleza. Quando o Sílvio de Abreu me convidou para fazer a novela Deus nos acuda, ele me perguntou se eu estava gorda e eu respondi que sim, um pouco. Então ele me disse: “Emagrece porque você vai fazer novela e assim não dá”.

Alvo de comentários de mau gosto de colegas, do tipo “Sai gorda, eu não gosto de mulher gorda”, Cristina sublinha que as mulheres na telinha são esquálidas, pois há uma teoria de que as linhas horizontais da TV engordam. A beleza é tão importante para o sucesso da novela que “muitas modelos são atrizes, não importa se têm talento ou não. Tem uma escolinha na Globo que ensina a falar meia hora e pronto. E já aparecem, já são lindas e pronto: já botam biquíni”. Quanto às atrizes negras, Cristina lembra que seu papel, ao final dos anos 1990, era sempre de escrava ou empregada doméstica.

A realidade bate de frente com a imagem da TV. As brasileiras são gordas. Os números alarmam os departamentos de saúde pública: 51% da população nacional tem sobrepeso, sendo mais da metade desse universo constituído por mulheres. Destas, em 2009, 48% acima dos vintes anos estavam acima do peso e 16% foram consideradas obesas; mais de 4% – o dobro dos homens – como “obesa mórbida”. Além de gordas, são mestiças, morenas, de cabelos crespos e negros. Nada têm a ver com a Barbie da telinha. O impacto de apresentadoras de programas infantis, todas louras, altas e magras, na massa de meninas mulatas e negras é perverso. Elas são vítimas do que a psicanalista Maria Rita Kehl chamou de “o Grande Outro: a mídia sem rosto”.

Os gordos, explica o psicanalista Charles Feitosa, são os “novos feios”. São tratados como desviantes, fruto de “maus costumes”. Disse-lhe uma paciente: “Meus amigos não dizem na minha cara, mas já deixaram escapar diversas vezes a repulsa que sentem ao verem pessoas gordas na praia”. O riso, modo de agressividade expresso na forma de escárnio, destitui a gorda de qualquer valor; dessexualiza o corpo: “Quando uma gordinha se aventura a entrar numa boate ou andar pela rua com uma roupa sensual, tem de fingir que não percebe os risinhos, os cochichos, ser alvo das pessoas apontando na rua como se estivessem numa apresentação de circo, onde são apresentadas coisas exóticas... Se não estivesse acostumada a fingir que não percebo a reação das pessoas, viveria trancafiada dentro de casa e não sairia à rua para nada”, confessou-lhe outra paciente.

De fato, muitas sentem vergonha de celulites e estrias, inclusive as mais jovens e magras, e, por isso, não usam shorts nem biquínis. Muitas só fazem sexo de luz apagada, e outras, ainda, passam a vida reféns de regimes malucos. Se no passado gordura era formosura e magreza, sinônimo de doença, tudo mudou. Antítese do belo, a feiura parece ser algo a ser melhorado ou eliminado em nossa sociedade. Que o diga o professor de ginástica, quando interpela a aluna: “Vai, gordinha, que você chega lá”. O que diria se ele ouvisse a bela cantora Gaby Amarantos: “Meu peso não me incomoda. Isso só incomoda aos outros”?

E Feitosa conclui:

Beleza e feiura não é questão de gosto de cada um. Está na época, no momento em que se vive. Essa superpreocupação com as transformações do corpo para se adequar a certos padrões refletem um contexto, um momento, em que a técnica da medicina está dando condições para a gente conseguir produzir esse corpo idealizado, perfeito, e isso não é questão de uma pessoa específica, e sim de um momento cultural. Eu acredito que isso tem a ver com certa dificuldade do ser humano de aceitar a sua própria finitude e que tem um corpo transitório, que envelhece, se modifica e morre. Já passamos por alguns momentos da história em que as pessoas conviviam melhor com essa fase da vida.

Nos Estados Unidos, uma estudante obesa foi expulsa de uma escola de enfermagem por “dar mau exemplo aos pacientes”. Empregadas no comércio são despedidas por ganhar peso ou não se maquiar. Estudos revelam que pessoas mestiças ou não brancas são percebidas como “feias” e, por consequência, consideradas “menos competentes, menos inteligentes e menos dignas de confiança”. Esse tipo de discriminação encobre outras, de ordem racista, e o estereótipo anglo-europeu pesa fortemente na construção dos ideais de beleza. Estados como o de Michigan e seis cidades norte-americanas, entre as quais San Francisco, já têm leis antidiscriminatórias. Suas vítimas recorrem cada vez mais aos tribunais.

Pesquisas revelam também que investimentos na melhora do aspecto físico superam os que se direcionam a um diploma universitário. Os belos ganham quase 10% a mais do que os feios, contrariando a premissa de que as aparências não importam. O mais surpreendente é que opiniões, em diferentes partes do mundo, coincidem sobre quem é ou não atraente. Mulheres menos atraentes ganham 6% menos nos Estados Unidos; 11% menos no Reino Unido; e 31% menos em Xangai. Estatura maior acompanha aumento de renda e quem tem dentes melhores ganha mais!
E pensar que, nos anos 1960, o grito de liberdade das mulheres era: “Nosso corpo nos pertence”!
 
Magra como um palito!

Os desfiles de moda não deixam dúvidas: a sociedade brasileira ficou “lipofóbica”: odeia a gordura. Por um lado, a cultura de massas, produtora de milhares de imagens, estimula-nos a admirar e invejar corpos jovens e magros. Por outro, a medicina vê na obesidade um problema de saúde pública, procurando, em resposta, impor um “peso teórico” ideal. Quantas revistas femininas não ajudam a calculá-lo? “Multiplique a altura pelo peso e raiz quadrada de X...”. Enfim, o resultado é só frustração! Os corpos verdadeiros, os reais, correm, por sua vez, desesperados atrás dos modelos sonhados. Longe estamos dos tempos nos quais as formas cheias eram benquistas e bem-vindas. Não faltaram poetas como Manuel Bandeira, a cantar o sonho de sereias redondas a nadar nas águas translúcidas do Capiberibe, em Recife. A gordura já esteve associada a saúde, prosperidade e respeitabilidade.

A magreza, por sua vez, remetia à doença, à consumição, à tísica, anemia e clorose: doenças que enfeavam e matavam homens e mulheres. Pior: a magreza tinha uma conotação psicológica – remetia a mesquinharia, avareza ou ambição desenfreada. Não faltam exemplos na pintura e na literatura nos quais os maus são sempre magros, esqueléticos, as mãos em garra, a fisionomia enrugada. Havia algo pior do que ser chamado de “seco de tão ruim”? Informações como essas apenas confirmam que esculpimos o corpo de acordo com a cultura na qual estamos inscritos; que a definição social do corpo ideal mudou ao longo dos tempos.

Mas será que o desejo de ser magro e a reprovação da gordura são fenômenos exclusivamente modernos?

Dois especialistas, Cibelle Weinberg e Táki Cordas, demonstram que não. Afirmam que, pelo contrário, há uma longa tradição de abstinência alimentar no mundo ocidental cristão – abstinência que pode ser parcial, total, episódica ou permanente. A origem? A mística religiosa, que previa que, se o corpo fosse o único obstáculo à salvação eterna – pois é ruim e sujo –, melhor fazê-lo desaparecer. Daí um número infinito de martírios aos quais os fiéis se impunham na perspectiva de ganhar os céus, para que o corpo se tornasse alma; para desencarnar. O caminho mais rápido? Parar de comer.

Desde a Idade Média, a privação alimentar era a punição mais imediata. Havia gente que jejuava à base de pão e água. Outros misturavam pão velho a cinzas, molhando-o nas águas sujas que escoavam das bacias dos conventos. Ingerir líquidos fétidos era outra forma de privação. Engolir só hóstias consagradas, outra. Vivo, o místico preparava a própria morte. A abstinência lhe dava a sensação de ser mestre, e não escravo, do corpo – era o espírito dominando a carne. Essa era uma maneira anoréxica de se estar no mundo, com o simples objetivo de escapar dele. A anorexia mística era uma maneira de se aproximar de Deus, afastando-se dos homens. E via-se, nessa domesticação das necessidades físicas, uma manifestação de santidade.

No século XIX, as razões psicológicas da anorexia começaram a ser mapeadas. Nasceu nessa época, e com o auxílio da fotografia, uma medicina das deformidades, a anorexia sendo uma delas. Certo olhar eugenista e racista obrigava as anoréxicas a comer; impunha que as doentes ingurgitassem enormes quantidades de comida, enquanto a moda ditava formas firmes e ágeis, resultantes da introdução do esporte na vida feminina. Hoje, a anorexia continua a se transformar. Místicas, cloróticas e anoréxicas são apenas uma parte de uma imensa constelação ainda não totalmente conhecida. Longe das beldades arredondadas que foram nossas avós, a magreza que antecede a anorexia está em todas as imagens que nos cercam: magnificada, onipresente, um verdadeiro suporte para todas as mercadorias. Nua, lisa, sem dobras, bela, corrigida, maquiada, quase deificada, ela reina. É suporte natural para a sedução, o desejo e a sensualidade. Os corpos magros são jovens, belos e... vazios! Diferentes do corpo das místicas, plenos de fé, sua evidência está ligada apenas ao consumo. Mas até quando?

Contra a submissão

Nos países desenvolvidos, a vaga feminista dos anos 1970 foi realizada por mulheres brancas, de classe média e de nível superior. A agenda do movimento foi constituída com base em necessidades e experiências das próprias mulheres. Nela, a palavra “submissão” aparecia repetidas vezes. A luta era “contra” – contra a submissão imposta por maridos, patrões, amantes, pais e irmãos.

Referido a obediência e sujeição, o vocábulo se popularizou no século XVII. Antes, contudo, o tema já havia sido pensado. Entre 1530 e 1563, o francês Etienne de La Boetie escreveu uma obra, o Discurso da servidão voluntária, em que analisava uma questão muito avançada para a época: por que se obedece a um mestre, que por vezes é um tirano? Muitas respostas: o hábito, que fazia as pessoas acreditarem que obedecer é natural; a admiração pelo poder, a esperteza do mestre em distribuir favores, sossegando os descontentes. A obra foi fundamental para demonstrar que as pessoas se submetem porque querem, e, muitas vezes, ainda tiram vantagens da submissão. O tema foi retomado ao longo dos séculos. Até Freud o analisou em livro publicado em 1921: A psicologia das massas.
Os estudos sobre a submissão datam de uma época em que a palavra “autoridade” tinha algum sentido. O poder de pais, maridos e instituições era forte e sua autoridade, legítima. Quem contestava o da Igreja ou o das Forças Armadas? Mas e quanto a hoje? Há décadas, sociólogos e psicólogos concordam que assistimos ao declínio da autoridade – na família, na empresa ou na escola, a democratização roeu as bases das antigas hierarquias.

E se tudo isso fosse uma ilusão? E se, por trás das aparências de liberdades conquistadas, muitas delas graças às feministas, novas formas de servidão tenham se imposto? Não vemos mulheres “liberadas” se submeterem a regimes drásticos para se conformar a um único modelo físico, o de tamanho 38? Não as vemos se infligir sessões de musculação nas academias, empanturrando-se de todo o tipo de anabolizantes? Não as vemos se desfigurar com as sucessivas cirurgias plásticas, negando-se a envelhecer com serenidade?

Se as mulheres orientais ficam trancadas num espaço determinado, o harém, as ocidentais têm outra prisão: a imagem. E são açoitadas para caber nela: eternamente jovens, leves e saudáveis – uma armadura que em tempos de globalização irradia-se por todo o planeta. Tamanho grande? Só no fundo da loja. A energia que as mulheres consagram ao corpo para não deixá-lo enrugar nem engordar é impressionante. E tudo para entrar em outro cárcere: o do olhar masculino. “Os homens olham as mulheres. E as mulheres se olham ser olhadas”, diagnosticou o sociólogo John Berger. E a feminista Naomi Wolf cravou sem dó: “A fixação sobre a magreza feminina não é expressão de beleza da mulher, mas de obediência feminina”. Se ainda existem mulheres engajadas em lutas, vale lembrar esta, contra as novas formas de submissão – contra o servilismo moldado pela mídia, pela televisão, pelos outdoors. Quem sabe isso ajude a pensar esse trágico erro: o de que só o corpo pode falar a linguagem da sedução.
 
“Mutante: ai de mim que sou assim...”

Más notícias na entrada do século XXI: as mulheres continuam submissas! De quase nada adiantou a propalada revolução sexual, a queima de sutiãs em praça pública, a difusão da pílula. É como se quiséssemos continuar como as eternas representantes do “sexo frágil”, a quem tudo se impõe.

E como envelhecer, quando tudo que nos cerca – o outdoor, a televisão, as fotos na revista – é construído de forma a negar o envelhecimento, definido, em nosso tempo, como sinônimo de perda? Os sociólogos têm denunciado o fato de que vivemos um terrível paradoxo: a possibilidade oferecida de, enfim, prolongar os dias é vivenciada como algo negativo. Moldada em torno de valores como progresso e juventude, nossa sociedade lida mal com o número crescente daqueles que, envelhecendo, beneficiam-se de um alongamento sem precedentes da esperança de vida.

Os efeitos dessa constatação entre as mulheres são perversos. Na maioria, elas investem tudo o que podem na aparência exterior. O modelo de Giseles e Xuxas parece não deixar opção: não há limites para continuar magra, turbinada e vitaminada. As cirurgias plásticas, no entender de uma conhecida atriz, tornaram-se uma questão de “higiene”. Ora, a identidade corporal feminina está sendo condicionada não pelas conquistas da mulher no mundo privado ou público, mas por mecanismos de ajuste obrigatório à tríade beleza-juventude-saúde.

Pode não parecer evidente, mas as relações com o corpo revelam o tipo de identidade que estamos construindo. As revistas femininas nos ensinam que vivemos um momento ideal de “otimismo”. “Que idade? Jovem!” O anúncio acompanha o produto antirrugas com o rosto sorridente da mulher de idade indefinida. A foto resume bem essa disposição para fazer com que a idade madura pareça o fim da história – nada existiria depois dela, nem mesmo aquele país cinza, da cor da cabeça de nossas avós. A mídia, por sua vez, cauciona essas teses sem nenhum pudor. Argumentos publicitários, produtos de beleza e medicina vulgarizada nas revistas são os mecanismos sutis, mas extremamente repressivos, que agem sobre o corpo feminino. Bom seria começar a ter uma posição crítica em relação a esses discursos, tão mais perigosos quanto se moldam ao cotidiano, fazendo-nos confundir normalidade com banalidade.
 
Mulheres no país das cabeças brancas

Para muitas, a velhice é um tema que provoca arrepios. Palavra carregada de inquietação e angústia, também representa uma realidade difícil de capturar. Quando é que se fica velha? Aos 60, 65 ou 70 anos? Nada mais flutuante do que os contornos da velhice, vista como um conjunto complexo fisiológico-psicológico e social. Temos a idade das artérias, do coração, do comportamento? Ou enxergamos a idade no olhar dos outros? Enfim, a única certeza é que desde que nascemos começamos a envelhecer, embora o façamos em velocidades diferentes. O modo de vida, o ambiente, a situação social aceleram ou retardam a evolução biopsicológica, e entramos na terceira idade em idades muito diferentes. Sobre o envelhecimento feminino, poucos tiveram a graça de Nelson Rodrigues, que dizia: “na intimidade da alcova, ninguém se lembraria de pedir à rainha de Sabá, à Cleópatra, uma certidão de nascimento”!

O Brasil está envelhecendo, e as mulheres, junto. Já se observam mudanças. Antes marginais, hoje elas são a espécie mais comum de cidadãos. A idosa em boa forma, sábia e experiente cada vez mais faz parte da publicidade: oferece máquinas de lavar, passeios turísticos, seguros de vida e outros produtos. A medicina se debruça sobre os problemas específicos dessa clientela; economistas se inquietam diante do aumento de aposentadorias; e os demógrafos se desolam com uma pirâmide de idade invertida – mais velhos, menos jovens –, que aponta, a médio prazo, um país cheio de rugas. O Estado também vai tomando consciência da amplitude da situação e, com a lentidão habitual, começa a pensar nela.

Segundo o IBGE, em 2009, elas representavam 55,8% das pessoas com mais de 60 anos e 56,7% das com mais de 65 anos. A população de brasileiras na terceira idade não cessa de crescer. Mas desde quando mulheres são consideradas “velhas”? Muitos autores reconheceram, na virada do século XIX para o XX, o momento em que, em vez de imaginar que o acúmulo dos anos traria experiência, a última etapa da vida passou a ser associada à ideia de decadência. O que era novo passou a ser glorificado, e o velho, recriminado. Um exemplo? De um lado, o Império, dom Pedro II com as barbas brancas e a esposa, Teresa Cristina, enrugada e manca. E, do outro lado, a República, constituída por jovens jornalistas e políticos, usineiros e industriais. Era a modernidade contra a tradição. Até aquela época, a velhice não passava de uma condição de algumas poucas pessoas, uma vez que a mortalidade era muita alta e a esperança de vida, baixa: menos de quarenta anos em 1930, e cinquenta anos em 1950.

Como eram as velhas? Memorialistas como Júlio Bello viam na chegada dos quarenta anos os sinais da tristeza mais profunda, da velhice mais doída. Dos engenhos nordestinos onde cresceu, o escritor guardava a lembrança de tias metidas na “disciplina dos conventos”, “senhoras sem alegrias, que nunca foram moças com as ilusões e os prazeres da juventude”. Se casadas, murchavam logo por conta dos partos sucessivos. Aos vinte anos eram “matronas veneráveis”, conta. Se solteironas, viravam “maracujá de gaveta”; secas. Assim como a “tia Cândida: [...] severa, rígida, autoritária, intolerante, cheia de excessivos melindres e implicâncias quanto à decência e à moralidade de sua casa, de sua família, de seus escravos e dependentes”.

Graciliano Ramos, em relato sobre sua infância, também dá notícia de uma avó: “grave, ossuda, tinha protuberâncias na testa e bugalhos severos. Anos depois contou-me desgostos íntimos: o marido, ciumento, afligira-a demais. Só aí me inteirei de que ela havia sofrido e era boa, mas na época do ciúme e da tortura não lhe notei a bondade”.

E de uma negra, egressa da senzala, imagem de uma velhice sem paz. Geniosa e temida pelo temperamento forte, “andava cambaleando”, mas fazia “trabalhos duros de homem”. No dia a dia, “zangava-se facilmente e endireitando o busto franzino de virgem murcha, uma coragem feroz, a sacudi-la, despia a subserviência hereditária. E rugia: a escravidão era coisa do passado. Morreu como viveu: trabalhando”, relata o escritor, “[...] de supetão, vomitando sangue debaixo do jirau onde se acumulavam frigideiras, mochilas de sal, réstias de alho.”

O retrato da velhice feminina varia segundo diferentes camadas sociais. Quem pode pagar o home care, a acompanhante, o massagista, remédios e ter um seguro saúde eficiente tem velhice mais cuidada. Bem diversa é a velhice da mulher dependente e sem recursos.

Mudou também a maneira de falar em envelhecimento. Nos anos 1970, Carmen da Silva perguntava-se sobre como enfrentar a nova fase da vida, então chamada “idade madura”, a “antessala da velhice”: “E quando a gente menos espera, completou 40 anos. Pensando bem, ninguém teria de surpreender-se com isso: já se sabe que o tempo passa. O tempo passa? [...] E quando chega a idade madura, a gente se recusa a crer: ah, esses anos traiçoeiros, sorrateiros, que foram se empilhando sem que a gente se quer percebesse: quarenta, eu não tinha me dado conta que eram tantos assim!”.

E recomendava um “exame sereno, livre de preconceitos”. Recomendava pensar, não no que a vida tirou, mas naquilo que ela ofereceu. Positiva, aconselhava: “sempre existe a possibilidade de compensar falhas e déficits daqui para frente”. O importante era acomodar-se à meia-idade sem angústias artificiais. Era preciso reconhecer alguns limites. Ninguém acordava mais “fresca como uma alface”. As “extravagâncias amarfanhavam o rosto e amorteciam o olhar”. Mas uma mulher saudável podia realizar muitas proezas, mesmo sabendo que a “fonte não era inesgotável”. O importante era não valorizar excessivamente as perdas da beleza física: “A cútis já não pode enfrentar sem cosméticos a crua luz do dia, o contorno do rosto vai perdendo a nitidez, as pálpebras começam a se empapuçar, o busto a cair, a cintura a espessar-se; o que era suave arredondamento torna-se compacto, o que era esguio vai se tornando anguloso. A modificação é tão lenta que a própria interessada nem nota”.

É preciso o comentário maldoso de uma amiga ou a franqueza de alguém simplório, como uma doméstica, para encarar a realidade, conta-nos Carmen: “A senhora deve ter sido muito bonita no seu tempo”! Mas a jornalista não desistia. Animava as leitoras. O importante era ter segurança, amor no coração, buscar o equilíbrio:

É no terreno psíquico e mental que se manifestam os saldos positivos da idade. Aos quarenta anos bem vividos já não têm lugar os passos em falso, a desorientação sobre a própria personalidade, a confusão sobre o papel que nos cabe desempenhar no mundo. A mulher quarentona que não tenha permanecido imatura já superou inibições, receios e constrangimentos, sente o solo firme sob os pés e a tranquila certeza de haver no universo um lugar que ela conquistou e que só a ela pertence [...] sabe que não foi amada como uma linda boneca, mas como uma pessoa singular, condição que os anos, em vez de roubar, reafirmam e acentuam. Mereceu seus quarenta anos e saberá vivê-los como prêmios e não como maldição.

Sábia Carmen da Silva!

“Segredo indecente do qual se fala com vergonha”, definiu a escritora Simone de Beauvoir, a velhice representa ao mesmo tempo o sucesso da medicina, capaz de prolongar vidas, mas também seu fracasso, pois não consegue deter o quinhão de dependência e sofrimento que chega com ela.
 
Sem “coitadismo”

A expressão do título é da cantora Gaby Amarantos, e critica aquelas que morrem de pena de si mesmas. Na contramão do coitadismo, há milhares de brasileiras na terceira ou quarta idade. A idosa é sobretudo uma lutadora. Há muitas que não se resignam a reduzir a atividade física ou o trabalho físico e intelectual: “Posso desejar desejos bastante bons de viagens e ajudar minhas filhas quando elas precisam”, diz uma professora aposentada. Outra, pintora, dá aulas numa escola particular e no ateliê, complementando a renda da aposentadoria. A maior participação de mulheres com mais de sessenta anos no mercado de trabalho indica que elas estão com saúde.

Outras encontram na dança de salão, no teatro, na filantropia, no jogo de cartas, no artesanato, nas palavras cruzadas seu desafio. As atividades escolhidas, direta ou indiretamente, são o símbolo da juventude, dizem gerontologistas. Muitas optam pela ginástica, pelo Pilates ou Tai Chi Chuan. Nas cidades, onde há espaços públicos para práticas de exercícios, elas são visíveis. Os grupos se movimentam com extrema delicadeza; os corpos se dobram aos movimentos impostos pela professora. Na coleira, cães atentos observam as donas. Seguem com os olhos aflitos o balé possível dos corpos. Nas mesas de cimento, o jogo corre solto. Uma cesta pousada no chão garante o lanche, que será repartido. Algumas preferem caminhar – não importa como – juntas. Outras o fazem também, mão na mão do companheiro.

Nessa fotografia, o tempo é outro. Lento, ele perturba os ritmos da cidade, mergulhada em velocidade. Fora dessa tela macia, a rapidez triunfou como forma de conquista do espírito e da civilização. Onde os pássaros outrora voavam, hoje domina o jato. Sob monstruosos abismos marinhos, pairam engenhocas flutuantes. Na terra, tudo foi criado para anular o passo cadenciado e firme do homem. No terreno metafísico, a velocidade poderia ser pensada como fator auxiliar da vitalidade. Ser rápido significa estar vivo “mais tempo”. A rapidez, assim como o primeiro passo na Lua, marcou a chegada a um novo mundo. Uma fratura separa o mundo lento do acelerado.

Na outra ponta, idosas criam frequentemente os netos. Guardam a casa, para filhas ou noras trabalharem. São chefes de família, fardo da mulher pobre desde sempre. Outras, mais domésticas, contentam-se em receber para o almoço de domingo, em cozinhar guloseimas, costurar e fazer tricô. Organizam a aposentadoria de modo a tentar não deixar faltar nada. Lembram a agenda de aniversários, festas religiosas e datas como o Natal e a Páscoa. São elas a memória do tempo que passa e daqueles que vêm e vão: nascimentos, casamentos e enterros.

Todas correspondem a uma parcela da população brasileira, à qual é negada a visibilidade social. Não rebolam nas revistas nem nas telas; não precisam de bisturis nem de silicone. Têm outra beleza, imune à velocidade excessiva, lúdica e trágica. Cada ruga conta uma bela história de vida. São nossas velhas. Somos nós, amanhã, herdeiras, infelizmente, de uma sociedade cujos valores mais importantes são a juventude e o progresso.

Inventado nos anos 1960, o conceito de “aposentadoria” permitiu empurrar para bem longe as verdadeiras marcas da idade. O futuro renasceria cor-de-rosa. Atividade, dinamismo e vitalidade seriam a tônica de segundas carreiras escolhidas para participar, outra vez, da corrida da vida. Há, contudo, um momento em que se chega ao país das cabeças brancas. Embora sua população aumente nas estatísticas, não temos para ela serviços nem projetos. Pior. Na terra dos “mais turbinados”, eles significam “menos”: menos capacidade física, menos vivacidade intelectual, menos tudo.

Muitas dessas mulheres não estão em parques, jardins ou praias, mas dependentes e condenadas a receber, de outrem, o que lhes falta. Ler, contudo, esse momento da vida como um acúmulo de perdas é um equívoco. A velhice, ao contrário, é uma rica e longa história de singularidades. Em nossa louca corrida, o valor simbólico da idade só pode ajudar a aprender a envelhecer. Chega de eufemismos tipo “quarta idade”, que só revelam nossa angústia diante de um processo ao qual podemos e devemos dar um sentido. Caminhemos, sem medo, para a lentidão – lentidão que, como diz o filósofo, esposa a eternidade.
 
Histórias sobre a velhice

O historiador francês George Minois fez um estudo sobre os idosos na sociedade inca do Peru. Ele descobriu informações interessantes sobre o envelhecimento em outra sociedade. O Estado inca, que funcionava como uma espécie de grande família do chefe inca, procurou atribuir um papel especial aos idosos. Sociedade extremamente organizada, cada um tinha ali seu papel, como as formigas em um formigueiro. Embora antes do século XII os indígenas matassem e comessem os velhos, a partir da conquista do chefe Manco Capac, nesse século, uma nova organização foi estabelecida, oferecendo aos idosos toda a segurança. Recenseados a cada cinco anos, eles eram repartidos por idade: dos cinquenta aos setenta, dos setenta aos oitenta ou mais, demonstrando que a longevidade era normal. Havia a classe dos que “andavam com facilidade”, dos “desdentados” e dos que só queriam comer e dormir. Registros da Igreja católica em certos vilarejos, a partir de 1840, comprovam que existia uma forte proporção de centenários que fumavam, bebiam e tinham uma surpreendente atividade sexual.

Numa sociedade sem escrita, os idosos possuíam o papel de arquivos vivos. Eram conselheiros de soberanos, e cada tribo enviava ao chefe inca um conselho informal, a fim de guiá-lo em suas decisões. As mulheres idosas tinham o papel de médicas, enfermeiras e parteiras. Eram também sacerdotisas no templo do Sol, em Cuzco. Os idosos do povo eram cuidados pela comunidade. Os lavradores trabalhavam suas terras gratuitamente e lhes levavam alimentos. Recebiam também grãos dos armazéns do chefe inca. Um tributo especial, na forma de corveia, ou seja, de trabalho obrigatório, consistia em fabricar roupas e sapatos para os idosos, que estavam também livres de pagar impostos a partir dos cinquenta anos. Uma sociedade assim foi apresentada como utópica aos europeus, tendo efeito importante na imaginação de homens e mulheres entre os séculos XVI e XVIII. Segundo essa sociedade, cada um tinha um papel que era exercido em benefício da comunidade. Não é à toa que os europeus acreditavam ter se escondido a flor da juventude, aquela que Deus teria plantado no paraíso terrestre, nas montanhas andinas: exatamente entre o Peru e o Equador.
 
Amores de outono

Em nossa história, houve um famoso amor de outono. Quem o encarnou foram dois personagens: dom Pedro II e a condessa de Barral. Ela tinha nove anos a mais que ele. Dedicaram-se um ao outro durante 34 anos. Ao final da vida de ambos, o imperador, já no exílio, hospedou-se no castelo dela, em Voyron. Diariamente, depositava à porta do quarto da dona da casa um ramalhete de flores do jardim. Dom Pedro II mesmo as colhia. À noite, liam juntos e dialogavam na frente da lareira. As “conversinhas”, dizia ele com encantamento, eram intermináveis. Luisa de Barral, por sua vez, tomava as mãos dele entre as suas e, com delicadeza, as massageava. Eram tempos em que as pessoas “não davam”, mas “se davam”. E o amor era feito de outra gramática: um nó na garganta, um suspiro, um rubor. E tudo estava dito.

Uma das conquistas do último decênio foi a valorização da “melhor idade”. Com a chegada do Viagra, em 1998, casais de cabeça branca puderam prolongar, com carinho, as outras conversinhas. Foi o fim dos retratos em que os mais velhos pareciam tão sisudos. Sem vergonha das imperfeições, despiram-se na vida privada, pois a possibilidade oferecida pela medicina de prolongar os dias com qualidade não era mais vivida como um problema, mas como um desafio. E muitas aproveitaram. Sua sexualidade não era mais resumida ao ato sexual, e sim a algo mais amplo: “é o impulso de vida, é a energia que te leva para frente”, dizia a psicanalista Maria Elvira de Gotter. A maioria não quer casar, só beijar na boca, explicava a socióloga Miriam Goldenberg.

O tempo, como canta o poeta, transforma as formas do viver. Por vezes, com voz inaudível e deformada pela passagem dos anos, os amantes de outono falam desse tempo em que, com olhar distanciado, podem deixar vir a si todas as coisas, até mesmo as do coração. A partir deste limite, seu tíquete não é mais válido? Puro engano. Aceitar as perdas, substituindo-as por alegrias; tentar se libertar do passado para viver o presente ou preservar uma maneira de amar e de criar dão nova dimensão a essa fase da vida – fase, aliás, que tende a se prolongar. Os resultados da pesquisa com genoma estão aí para nos deixar mais longevos; para nos dar mais gás e incentivar a organizar um outro momento.

Diante dessas possibilidades, é preciso redesenhar essa estação da vida com novas cores. Erigir outra bandeira que não seja a da renúncia. Descobrir os valores da terceira idade: a importância das pequenas coisas, aparentemente insignificantes. Os momentos de contemplação e de companheirismo. A partilha de responsabilidades parentais ou outras. O prazer de estar junto e compartir parcerias. E, por que não, o amor. Um amor como o do casal Pedro e Luisa, feito de delicadeza. Afinal, os corações não envelhecem nunca.
 
Solidão

Mulheres e solidão têm andado de mãos juntas. As razões são múltiplas. Elas são, segundo os censos demográficos, maioria nas grandes cidades. A entrada de um enorme contingente da população feminina no mercado de trabalho afastou-as do ideal de nossas avós: casar, viver ao lado do “maridinho” e ter muitos filhos. Muitas ficaram viúvas, divorciaram-se, são mulheres sós. Outras, mesmo ao lado de alguém, sentem-se solitárias. Esmagadas pela teoria do happy end, exportada com a cultura norte-americana, buscam com insistência um final feliz para si próprias.

Passar o tempo, enganar a tristeza ou o tédio são subterfúgios corriqueiros para evitar a todo preço a experiência banal e violenta que tantas temem. A solidão, contudo, sempre foi um grande tema literário. Está nos romances, nas novelas, na letra da música popular. “Ah... Mas eu preciso aprender a ser só”, choraminga a voz da bossa nova. Incrível é que as mulheres raramente se dão conta de que a solidão é sinônimo de liberdade, aquela a que tanto aspiramos, mas que nos torna responsáveis frente ao tempo de que dispomos para estar sós. Mas o que fazer dessa perigosa liberdade para que a tristeza aí também não se instale?

Se consideramos a solidão como o maior dos males, expressão de um vazio interior que é preciso preencher, é possível, como sugerem os filósofos, fazer de um inimigo um aliado, e refletir sobre um sentimento familiar, mas sem glória; acordar-lhe um lugar menos negativo. Tratar, enfim, da solidão sem destilá-la.

Não se fala aqui da solidão na qual não se sabe o que fazer de si própria; na qual se erra, sem destino, e sim de um desses momentos saboreados, que podem ser exultantes mesmo sendo dolorosos, nos quais, depois de ter se concentrado por longo tempo, o espírito se abandona e vagabundeia, pulando de ideia em ideia, percorrendo preguiçosamente várias opções sem saber qual a melhor para escolher. Ganhar ou perder tempo, nessas horas, dá no mesmo. Muitas mulheres, depois de décadas de dedicação ao marido, aos filhos e à família, descobrem-se sós. E felizes. Podem se dedicar aos projetos pessoais. Passam então a investir no próprio prazer. Vão estudar, viajar, caminhar. Tornam-se mais seguras, confiantes, autênticas. Perdem o medo de ser livres.

Nas grandes capitais do mundo, mais e mais pessoas vivem sós. Em Nova York já são 50% da população. Alemanha, Reino Unido, Japão e França têm proporções ainda maiores de lares habitados por um só morador. Estar só não significa estar celibatário.

A jornalista Ana Cristina Reis é praticante de casas separadas: “Minha geração é a do seriado Friends; casa-se porque se apaixonou ou se casa porque não sabe ficar sozinho ou não se casa at all. Amigo costuma ser mais divertido que marido – a gente não precisa ficar sete dias colado no amigo”, explica. Na outra ponta, segundo o IBGE, em 2011 já são mais de 3 milhões de maiores de sessenta anos morando sós por escolha ou condição.

É importante lembrar que a solidão pode ser extremamente fecunda. Einsten gostava de se isolar num veleiro, Heisenberg, e caminhava sozinho pelas montanhas. Sem cair no exagero, vale dizer que a solidão pode ser extremamente criativa. Para aquelas que evitam tomar a medida da própria fragilidade, o vazio, num momento de solidão, pode aparecer como algo detestável. Pode mesmo ser confundido com doença, depressão, e ser mascarado por remédios. Inversamente, para quem costuma desconfiar das próprias certezas, das verdades estabelecidas e mesmo das próprias dúvidas, o monstro torna-se familiar, costumeiro e como que aprisionado. E aí, por que não dizer, sem medo: “Bom dia, solidão”!
 
Ontem, a melancolia...

“Estou desde há algum tempo numa melancolia realmente negra”. E na confissão a uma amiga: “Eis que não se passa um só momento sem que eu não lamente vivamente ter-me privado de vossa companhia, verdadeiro consolo nas horas de melancolia, à qual infelizmente tenho demasiados motivos para estar sujeita”. As palavras são de nossa primeira imperatriz, Maria Leopoldina da Áustria, a primeira mulher de dom Pedro I. Mãe de sete filhos, dos quais apenas três sobreviveram, foi esposa infeliz, traída pelo marido em tempo integral.

Leopoldina sofria de melancolia – indisposição da alma à qual inúmeros homens e mulheres foram e são confrontados. Seu pai sofria do mesmo mal. Artistas e escritores dela deixaram descrição. Reis, rainhas ou súditos não estavam imunes ao sentimento associado à presença da bile negra no corpo. Acreditava-se que ela se originava de ilusões e paixões tristes.

O remédio? Divertimentos, jogos e ingestão de pós extraídos da pedra bezoar, um raro produto achado no estômago das baleias. Sintomas? Corpo lânguido, sentimento de solidão, tristeza, angústia. Na época em que as queixas de dona Leopoldina se acumulavam, o romantismo fazia sua aparição. Nele, uma linha de pensadores associava a paisagem e a natureza aos estados d´alma. Rousseau ou Edmund Burke, cada qual à sua maneira, faziam referências aos sentimentos que, comparados a marés, avalanches e tempestades, a alma deveria superar. A contemplação de cascatas, florestas e rios era incentivada. Tais formas da natureza eram consideradas exemplos sublimes, capazes de criar um sentimento melancólico muito poderoso. Por exemplo, a beleza triste de uma noite de luar, anunciando o repouso e a morte, deveria ser também momento de meditação e isolamento. Quem diria que tais momentos de melancolia doce ou furiosa – existiam os dois tipos – não atacavam a imperatriz quando ela se via, ao entardecer, ouvindo piar a coruja, nos solitários arredores do palácio de São Cristóvão?

Segundo os médicos, a jovem imperatriz revelava um temperamento flutuante, doloroso, sonhador e nostálgico. O rosto trazia as marcas do cansaço do mundo, do tédio da vida. Na família, ninguém viu que Leopoldina se entregava. Dez anos depois de casada, aos 29 anos, não queria mais viver. A cada esperança renovada, encontrava uma decepção.

A dona de olhos azuis, obesa e cor de creme que chegou ao Brasil em 1817 fechou os olhos em 1826. Mas, antes de morrer, em carta à irmã, acusou: “Há quase quatro anos, minha adorada mana, como vos tenho escrito, por amor de um monstro sedutor me vejo reduzida ao estado da maior escravidão e totalmente esquecida do meu adorado Pedro”. Pela última vez, confessou sua solidão e abandono. Aos quais foi relegada pelo marido, mas também pela própria família. O lamento de Leopoldina registrou, pela última vez, sua luta – luta por um amor unilateral, em que tudo virou armadilha.

Nas últimas correspondências, dizia-se arrependida de ter se casado. Passadas as “semanas de manteiga”, sobravam “desgostos, aborrecimentos e o sacrifício da própria individualidade”. Depois de tanto cansaço, pôde, enfim, dormir um sono de criança. A história é triste, mas atual, pois a melancolia é o nome que se dá hoje à depressão. E casos como os da imperatriz ainda são comuns: quantas mulheres comem o pão que Asmodeu amassou, e não veem a luz ao final?
 
Hoje, a descida ao inferno ou a depressão

Algumas não querem mais se levantar pela manhã. Sob os lençóis, faça sol ou chuva, sentem-se afogar. Asfixiam. Sofrem por nada. Nada é causa específica de suas dores, quando desfilam imagens na sonolência das primeiras horas. Mas são tomadas por um sofrimento lancinante, não físico; sofrimento sem natureza ou causa conhecida. São as mulheres que sofrem de depressão, essa estrada noturna e sem fim; sem ponto de chegada e solitária. Descida aos infernos, dizem elas.

A sociedade moderna vem agravando a solidão individual, mais isolando do que agregando os indivíduos. Embora Deus tenha criado Eva para não deixar Adão abandonado à própria sorte, desde os anos 1970, pesquisas na área de psiquiatria revelam que a depressão é a doença mental mais difundida no mundo. Enquanto isso, os consultórios psicanalíticos veem aumentar a clientela de deprimidas.

Segundo especialistas, a manifestação mais severa de perturbação depressiva é a melancolia. Ela rói o espírito e alquebra o corpo. Descoberta por Hipócrates, a melancolia atravessou incólume os séculos, sendo muitas vezes mencionada na poesia e na literatura, até a medicina conferir-lhe o estatuto de patologia. A palavra depressão apareceu recentemente e, tudo indica, foi utilizada pela primeira vez em 1854, pelo alienista J. P. Fairet. Uma forma atenuada de melancolia foi descrita ao longo do século XIX com os nomes de neurastenia, taedium vitae e spleen, sendo cantada em prosa e verso por Baudelaire.

Cobertas de manchas azuis que lhes marcam os braços – as chamadas manchas de melancolia –, as depressivas estão cansadas de ser elas mesmas. São alvo de uma desvalorização narcísica feita, não de culpa, como queria o escritor Marcel Proust, mas de frustrações: “minha vida é um horror, não estou à altura...”. Ontem, o escritor francês queixava-se deste “não sei o quê que ninguém ousa nomear ou definir”. Hoje, como ele, muitas bebem a vida sem sede.

As depressivas recorrem a inúmeros remédios. Qualquer médico pode recomendar antidepressivos, pois, desde os anos 1980, eles se multiplicaram e estão em toda a parte. A tristeza mais passageira, sem maiores danos físicos, incentiva o diagnóstico de depressão. Lutos, dores de amor, fracassos profissionais ou as provas da existência são, hoje, apenas medicalizados. Nessa ótica, muitas mulheres passam de tristes a doentes. Se o inconsciente não tem história, o sofrimento, da melancolia à tristeza, e desta à depressão, já tem a sua.

A carreira solo

– Solteira?

– Sim, e com muito prazer.

O olhar de piedade que se lança sobre solteiras está completamente ultrapassado. A urbanização, a emancipação das mulheres, as novas tecnologias, o culto ao individualismo e o alongamento da esperança de vida conduziram ao desabrochar das carreiras solo – são elas o inevitável resultado de valores progressistas.

Além dos fatos que hoje incentivam mulheres a serem sós, há aqueles históricos: elas sempre o foram. No passado, como visto, elas eram maioria em muitas cidades e vilarejos. O solteirismo se explicava por dificuldades econômicas, pelo alto custo dos casamentos, pela falta de pretendentes e pela morosidade dos papéis. No período colonial, eram conhecidas como “solteiras do mundo”. Assim aparecem na documentação, cheirando ao ranço preconceituoso da Igreja, que dividia o mundo em casadas e castas. As “solteiras do mundo” não eram nem uma coisa nem outra, sendo livres e, portanto, vistas como “prostitutas”.

No século XIX, mudanças. Com a consolidação da vida burguesa e a valorização do casamento entre as elites, consideravam-se as jovens que não se casavam até 22 anos como “solteironas”. O grupo foi engrossado por milhares de mulheres saídas das classes médias empobrecidas, que tinham de ganhar a vida. Sobreviver era mais vital do que casar. A figura da “solteirona”, da “titia”, daquela “que ficou no Caritó” nasceu nesse momento. A literatura ajudou a consagrar a imagem. Entre elas, havia as “beatas” ou moças velhas:

haviam levado uma vida bem-comportada e eram, por isso, merecedoras de respeito. “Cair no barricão” era a expressão pejorativa para designar as com mais de trinta anos, sem atrativos nem vida social. Só adquiriam utilidade quando ajudavam à família. E, na Europa, as duas Grandes Guerras multiplicaram solteiras, uma vez que os homens tombaram nos campos de batalha.

Gilberto Freyre lembra que entre nós elas foram vítimas do patriarcalismo em declínio e das casadas, que abusavam de sua subserviência. Segundo ele: “eram pouco mais do que escravas na economia dos sobrados”. Dependentes economicamente, restringiam-se a atividades domésticas que pudessem ajudar no dia a dia. Sempre nas sombras. A quebra da cafeicultura com a Abolição e, depois, nos anos 1930, levou muitos fazendeiros à falência, impedindo as filhas de “casar-se como se deve”.

Em O amanuense Belmiro, Ciro dos Anjos pinta duas solteironas, irmãs do protagonista: “Pobres manas. Emília é apenas uma esquisita. Mas Francisquinha, perturbada de nascença, vai de mal a pior [...] Tiveram de viver sempre na fazenda como bicho do mato, entre o pessoal de serviços”.

Cornélio Pena não fez por menos e, no clássico A menina morta, apresenta outro par de manas, Sinha Rôla e Dona Inacinha:

Quando estavam já sentadas em suas camas e desfaziam pacientemente os penteados tão difíceis de serem desatados, pois as tranças vinham de trás para frente e eram presas com pequenos laços de fitas pretas que deviam também prender a rede caída sobre os ombros, Sinhá Rôla pôs-se a falar, e precipitava as sílabas umas sobre as outras como costumava fazer quando estava nervosa [...] Ao verificar que a irmã chorava, sem cuidar sequer de enxugar o rosto todo banhado de lágrimas, levantou-se e veio até ela e ao compreender a imensa mágoa que se refletia no seu rosto enrugado, ajoelhou-se aos seus pés, esquecida de suas dores e do reumatismo que a atormentava e segurou-a pela cintura. Reproduzia o mesmo gesto que tivera anos antes quando Sinhá Rôla lhe confessara seu primeiro desgosto, desgosto esse que tirara toda a sua vida de abandono;

– Que tem você mana? Diga-me o que a faz sofrer tanto... estou até com medo, meu Deus!

Na vida rural, tais mulheres tinham de engolir seu sofrimento. Eram velhos corações repletos de novas feridas. Mas o crescimento da vida urbana, durante a Belle Époque, aumentou a visibilidade das mulheres sós. Elas passaram a estudar, a sair para compras e passeios e se divertir. A industrialização no Sudeste atraiu sua mão de obra, boa e barata. Em 1872, elas perfaziam 76% das classes operárias. Novos postos de trabalho foram criados na prestação de serviços, no serviço público, na burocracia. O aumento da população feminina fez com que a sociedade a mirasse com mais rigor. Na imprensa, nas conversas, culpava-se a mulher que abandonava o lar para ganhar a vida. Até os periódicos comunistas e anarquistas acusavam-nas de frequentar não fábricas, mas “lupanares” – bordéis. A maior liberdade da mulher foi compensada com maior vigilância e preconceito. O desafio era trabalhar, mantendo a reputação impecável!

Não à toa, as revistas batiam na tecla: “O casamento é, para a mulher, como o ar para os pulmões. Uma mulher celibatária é, sempre, uma mulher mais ou menos asfixiada. Nunca se infringe impunemente um preceito de Fisiologia!”, admoestava em 1937 a Revista da Semana, num artigo intitulado “A tragédia das solteironas”.

Nas primeiras décadas da República, o celibato associava-se ao feminismo. E este, à feiura e masculinização. No entender da imprensa da época, quem não era agraciada com beleza física suficiente para se casar vingava-se aderindo aos movimentos de emancipação. Num artigo intitulado “Leilão de moças”, em que se apregoavam os leilões matrimoniais como solução para as feias, a revista Fon-Fon dava um exemplo: “Talvez fosse o único, excelente, maravilhoso meio de acabar de uma vez com as sufragistas, as literatas, as neurastênicas, as cochichadeiras, as beatas, horríveis espécies femininas da classe imensa, descontente, vingativa e audaz das vieilles filles” – moças-velhas, nome que se dava para solteironas.

O medo da mulher inteligente, preparada, da que lia ou escrevia era visível. A emancipação era percebida nos mais diversos setores políticos e sociais como ameaça à ordem estabelecida e ao domínio masculino.

E foi dessas mulheres, por meio da literatura e das bandeiras feministas, que veio a resposta. Em O Quinze, clássico sobre a grande seca no sertão do Ceará, em 1915, Raquel de Queiroz pinta Conceição, a protagonista, como alguém que “dizia alegremente que nascera solteirona”. Na contramão das dependentes, pintadas por escritores, essa é bonita, segura, inteligente e culta. E, na contramão de juristas que valorizavam a proteção oferecida às mulheres pelo casamento, feministas como Maria Lacerda de Moura mostraram que, sob a aparente proteção, havia, sim, prisão, subserviência e obediência. O celibato, defendiam Ercília Nogueira Cobra, Bertha Lutz e outras, era a melhor opção.

“Mulher indivíduo”, como a definia Maria Lacerda de Moura, seria aquela capaz de viver honestamente e longe dos caprichos masculinos. Numa crônica de 1946, Lúcia Miguel Pereira cravava: “Sempre houve solteironas, até por vocação; e ainda das que não o foram por vontade própria, muitas viveram satisfeitas, souberam ser úteis, desenvolveram plenamente sua personalidade”.

Hoje, menos obrigadas a se consagrar exclusivamente ao marido e aos filhos, ou à vida doméstica, as mulheres podem investir numa carreira, casar-se, fazer filhos quando querem e, se não estão felizes, divorciar-se. A revolução das comunicações que começou com o telefone, e prossegue no Facebook, contribui a diluir as fronteiras entre o isolamento e a vida social. A cultura urbana adaptou-se aos indivíduos autônomos. Serviços foram criados para o seu bem-estar: lavanderias, salas de ginástica, bares, deliveries de todo o tipo. A longevidade, também, transformou em viúvas aquelas que viveram a vida em casal.
O que faz dessa realidade demográfica um problema social é a busca da felicidade. E a pergunta: mulheres vivem sozinhas porque querem ou porque não têm escolha? Muitas não querem mais ser protegidas, assistidas ou se apoiar em alguém. A ver...
 
“Falando sério...”

O fim do século XX parece marcar uma ruptura na história da invisibilidade das mulheres. Caminhamos para um pós-feminismo no qual a ideia de cuidar, combinar, associar, de mixagem tornou-se um valor fundamental, ético e universal, pois homens e mulheres não podem viver uns sem os outros. Ora, cuidar implica aplicar atenções, tratar, ter cuidados, afeiçoar-se, dedicar-se, enfim, amar. Podemos imaginar um mundo melhor, para o século XXI, do que esse em que “nos cuidássemos uns aos outros”?

Além de cuidar dos outros, seria importante o cuidar de si. Da própria cabeça e coração. Nos últimos vinte anos, um nó de contradições marcou o papel das mulheres na sociedade brasileira. Assim como as desigualdades sociais, as disparidades entre os sexos se acumulam, multiplicando os benefícios deles, em detrimento das carências delas. Em casa, as tarefas continuam desigualmente compartilhadas: mais de 90% delas asseguram a “ordem e o progresso”, embora já surjam algumas zonas de negociação, como o fogão ou as compras. Se o casamento se desfaz, elas sofrem imediata desvalorização no mercado matrimonial. Em tempos de crise, será mais fácil ver as mulheres ameaçadas pelo desemprego ou aceitando ocupação em tempo parcial. A superioridade feminina é apenas numérica: mais mulheres chefiam famílias monoparentais, aceitam situações de subordinação e correm atrás do modelo de perfeição estética imposto pela mídia.

Por que será? Tudo indica que o problema não é na rua, mas em casa. É lá que elas escondem os sentimentos masculinizados. Muitas protegem filhos que agridem outras mulheres. Não os deixam arrumar o quarto: “Homem não nasceu para isso”! A ideia é tornar marido e filhos dependentes delas em assuntos domésticos, pois muitas são dependentes financeiras deles. Outras calam sobre comentários machistas dos companheiros, incentivam piadas e estereótipos sobre a “burrice” feminina, cultivam cuidadosamente o mito da virilidade. Gostam de se mostrar frágeis, pois acreditam que eles, assim, sentem-se mais potentes. E de ser chamadas de xuxuzinho e tudo o mais que seja convite a comer. O título de cachorra é um elogio. Acreditam que a feminilidade é um estado natural, a ser conservado, e que todas as despesas aí investidas, até cirurgias que acabem por desfigurá-las, são um bom negócio. São coniventes com a propaganda sexista e com a vulgaridade da mídia. Na TV, aceitam temas apelativos e não se incomodam que estes encham a cabeça das filhas.

Conclusão: há uma desvalorização grosseira das conquistas das mulheres por elas mesmas. Esse comportamento ajuda, certamente, a que se continue a cavar um grande fosso entre homens e mulheres, perceptível na questão salarial. É compreensível. Afinal, o chefe teve uma mãe machista! Ora, vivemos um tempo de transformações: na família, no trabalho, nas instituições. Nele, importa eliminar as pendências entre homens e mulheres, mas, sobretudo, aquelas enraizadas dentro de nós.

Embora maioria na fotografia da população, as mulheres brasileiras estão adormecidas. Falta-lhes um projeto, uma agenda que as tire da mesmice, que as arranque da apatia, que as engaje numa causa qualquer. O problema é que a vida está cada vez mais difícil. Trabalha-se muito, ganha-se pouco, peleja-se contra os cabelos brancos e as rugas, enfrentam-se problemas com filhos, pequenos, médios e grandes, ou com netos. Esgrime-se ainda contra a solidão, a depressão, as dores físicas e espirituais que fustigam os corpos em todas as idades. A guerreira de outrora luta, hoje, um embate miúdo e cansativo: o da sobrevivência.

Mas a luta pode ter um sentido. Há palavras cuja grafia parecem misteriosamente encarnar um. Assim, “independência”, menos do que lembrar o feriado de Sete de Setembro, significa para muitas de nós autonomia, liberdade em relação a alguém ou alguma coisa, ausência de subordinação e imparcialidade diante de críticas. Lendo a lista de sinônimos, fica-se com a impressão de que ela é quase como o grito do Ipiranga: é independência ou morte! Mas, mesmo que um sentimento vital nos empurre nessa direção, ser independente é bem mais complexo do que apenas respirar. Podemos, por exemplo, nos enganar sobre o grau de independência que desejamos ter. Sabemos, também, que mesmo os imbecis querem ser independentes, ou que há milhares de maneiras de se sentir independentes. Conclusão? É mais importante defender um valor e um significado para sua independência do que simplesmente decretar “independência ou morte”.

Dessa perspectiva, ser independente significa bem mais do que ser livre para viver como se quer: significa, basicamente, viver com valores que façam a vida ser digna de ser vivida. Não basta um estado de espírito. Não basta, como diz o samba, “vestir a camisa amarela e sair por aí”. Tampouco basta sentir-se autônomo, fazendo parte do bando. É preciso algo mais. Ora, um dos valores que vêm sendo retomados pelos filósofos e que cabem como uma luva nessa questão é o da resistência. Na raiz da palavra resistere se encontra um sentido: “ficar de pé”. E ficar de pé implica manter vivas, intactas dentro de si, as forças da lucidez. Essa é uma exigência que se impõe tanto em tempos de guerra quanto em tempos de paz. Sobretudo nesses últimos, quando costumamos achar que está tudo bem, que está tudo “numa boa”; quando recebemos informações de todos os lados, sem tentar, nem ao menos, analisá-las, e terminamos por engolir qualquer coisa.

Resistir como forma de ser independente é, talvez, uma maneira de encontrar um significado no mundo. Daí que, para celebrar a independência, vale mesmo é desconstruir o mundo, desnudar suas estruturas, investigar a informação. Fazer isso sem cansaço para depois termos vontade de, novamente, desejá-lo, inventá-lo e construí-lo; de reencontrar o caminho da sensibilidade diante de uma paisagem, ao abrir um livro ou a porta de um museu. Independência, sim, para defendermos a vida, para defendermos valores para ela, para que ela tenha um sentido. Independência de pé, com lucidez e prioridades. Clareza, sim, para não continuarmos a assistir, impotentes, ao espetáculo da própria impotência.

Texto de Mary del Priore em "Histórias e Conversas de Mulher",Planeta, 2013, São Paulo, excertos. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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