A lavoura de café do início do século passado não enfrentou nenhuma crise mais séria de escassez de mão-de-obra. O mercado de trabalho para a produção funcionava adequadamente, pois a questão da mão-de-obra fora resolvida a partir da década de 1870, com a abundante imigração européia. Além disso, a terra não constituía obstáculo à expansão da produção do café, já que vastas regiões do Estado de São Paulo encontravam-se desocupadas, podendo vir a ser cultivadas no futuro, ainda mais na presença de uma rede ferroviária que se expandia na medida da necessidade de ocupação das terras novas.
Assim sendo, a lavoura do café e, portanto, a produção possuíam amplas condições de crescimento no estado, sem enfrentar obstáculos de monta. Em conseqüência, métodos produtivos rudimentares eram perfeitamente adequados, sem reclamar nenhuma mudança que exigisse absorção de recursos de capital para o prosseguimento dessa empresa, cuja aplicação mais lucrativa encontrava-se na esfera comercial. Visto que a formação da lavoura e a produção de café necessitavam de financiamento, coube ao comerciante ocupar o espaço deixado pela inexistência de vínculos diretos entre o fazendeiro e os bancos.
O COMERCIANTE DE CAFÉ E O CRÉDITO AGRÍCOLA
Durante o longo período do século XIX em que a economia cafeeira se assentou sobre o regime de trabalho escravo (e mesmo nas duas décadas seguintes, ao final da escravidão), o mecanismo de financiamento da produção nas lavouras de café vinculava-se profundamente à comercialização do produto. Nesse sistema, adquiriam um papel central os comerciantes (ou comissários) de café das praças de Santos e do Rio de Janeiro, dos quais dependiam, em grande medida, os fazendeiros de café, para:
a) realizar seus lucros, com a venda do produto; e
b) obter os recursos financeiros necessários à produção.
O que diferenciava um comerciante de café de um comerciante comum, portanto, era o fato de exercer a atividade de financiador da lavoura.
Como em qualquer atividade produtiva no sistema capitalista, seria razoável supor que a principal fonte de financiamento de capital residisse nos lucros gerados na própria produção, ou, em outras palavras, no autofinanciamento. Contudo, isso não se deu na lavoura cafeeira até pelo menos a crise de superproducão do final do século XIX e princípio do século XX, em razão das características de exigência de recursos para a formação e operação da lavoura.
Os recursos financeiros na lavoura de café são importantes por duas razões. Primeiro, por se tratar de uma cultura permanente que exige um período relativamente longo para sua formação. As variedades de café correntes no começo do século passado produziam seus primeiros frutos somente no quarto ano após o plantio, e mesmo essa colheita inicial era modesta. A lavoura era considerada formada e em plena produção apenas no quinto ou sexto ano de vida. Em conseqüência, os gastos com a formação exigiam uma inversão de recursos cujos primeiros retornos tardariam longo tempo para aparecer. A segunda razão refere-se às elevadas exigências do trato do cafezal. São necessárias diversas carpas durante o ano para conservar a lavoura limpa a fim de preservar a produtividade da planta. É assim evidente que, se o regime de trabalho envolvia remuneração monetária da força de trabalho, a lavoura exigia muito capital de giro para sua operação. Tais observações merecem atenção quando se busca explicar a dependência do fazendeiro de café diante do comerciante, na época.
Havia, ainda, outra explicação para essa dependência. A função de comercialização do café era extremamente especializada, pois envolvia o preparo de mistura de diversos tipos de café, uma atenção especial com a bebida e outras características que refletiam as exigências das demandas externas, de diversas procedências. O comércio concentrava-se, inclusive por essas razões, nos portos de Santos e do Rio de Janeiro. Assim sendo, ao fazendeiro não restava senão a entrega de todas essas responsabilidades ao comerciante de sua confiança, criando-se laços comerciais que acabavam por atingir o campo do financiamento da produção.
“As relações entre o comerciante e o produtor assentavam principalmente na necessidade de fornecer o primeiro a massa de recursos indispensáveis para o desenvolvimento das operações de cultura a cargo do segundo durante o período da formação dos cafezais e posteriormente na rotação anual das colheitas, com a obrigação taxativa da consignação do produto para a amortização dos adiantamentos e dos ônus que lhes são correlatos.”
Um conjunto de circunstâncias a cercar o mecanismo de comercialização e financiamento da lavoura de café, no início do século XX, transparece da leitura do trecho anteriormente citado, escrito em 1923. Em particular, deve ser destacada a ênfase no relacionamento entre o comerciante e o fazendeiro: não se tratava simplesmente de uma intermediação comercial, e sim de uma relação complexa na qual a função financiadora do primeiro adquiria relevo essencial. Cabia ao comerciante a função de prover ao fazendeiro os recursos necessários para a formação da lavoura e para o trato do cafezal e a colheita do café. Em outras palavras, cabia ao comerciante fornecer os recursos para a formação do capital fixo e de giro da produção. Era o comerciante, pois, o “banqueiro” da lavoura. Na ausência de um sistema bancário, público ou privado, ligado diretamente à produção, o comerciante de café assumia o papel fundamental de suprir o crédito necessário. Em contrapartida, exigia reciprocidade do fazendeiro, pois a produção era entregue aos seus cuidados, que consistiam no preparo e na venda do café, com uma comissão que na época era fixada em 3% do valor da venda. O comerciante fornecia o crédito ao fazendeiro; em troca, adquiria um cliente cativo. Não era, contudo, um “cativeiro” tão difícil de suportar.
O relacionamento comercial entre a casa comissária e a fazenda principiava pelo fornecimento de crédito ao fazendeiro, tanto para a formação da lavoura quanto para o custeio da fazenda. Os juros cobrados pelo comércio comissário sobre tais adiantamentos variavam entre 9% e 12% ao ano. Ao que tudo indica, ao fazer o repasse do crédito bancário ao fazendeiro, o comissário não auferia lucro. Isto é, a taxa cobrada ao fazendeiro era a mesma cobrada pelo banco à casa comissária. Assim, como o dinheiro fornecido ao fazendeiro tomava a forma de adiantamento para cobrir as despesas ao longo do ano agrícola, também o empréstimo bancário era pouco formalizado: os bancos emprestavam sob crédito pessoal do comissário (firma social ou individual) “a descoberto”, mediante simples comprovação de existência de conta corrente. Mais tarde, exigiam-se letras da terra, depois letras com endosso; raramente eram necessárias outras garantias. Assim sendo, a estrutura do sistema de crédito era informal dos dois lados, tanto do banco ao comissário como deste ao fazendeiro.
Durante todo o século XIX, ainda sob o regime de escravidão nas fazendas de café, esse papel de comerciante-banqueiro era o exigido do comissário. O sistema geral de venda de café no Estado de São Paulo, desde os mais remotos tempos a que nos chega a tradição, era, depois de transportado o produto ao porto, consigná-lo a um comerciante; este, por uma comissão sobre o valor da venda, transferia-o a um exportador, o qual, por sua vez, colocava o café no mercado consumidor. O comissário continuou a exercer suas funções até pelo menos os primeiros anos do século XX. Mesmo depois, até a crise de 1929, conservou ainda parte da sua importância na ausência de um sistema bancário ligado à produção:
“Era, embora em estado rudimentar, o mesmo comerciante que hoje designamos por comissário, e que, com pequenas variações naturais da evolução dos tempos, perdura até nossos dias, como principal agente de negócios de café, no que toca ao produtor, em nosso porto de exportação”.
Ao citar um trabalho de Paulo Porto Alegre, de 1878, Taunay afirmava que “pelos anos em que ele escreveu, não havia ainda casas exportadoras e só comissárias. Eram os comissários, os banqueiros dos lavradores. Concentravam, em seus armazéns, as colheitas que as tropas faziam descer do planalto ao litoral”. E, em seguida, observava que “não havendo crédito agrícola no Brasil, via-se o comissário forçado a servir como banqueiro da lavoura”. O comissário ocupa, pois, um espaço deixado pela inexistência do crédito agrícola no país. Como era possível ao comissário financiar a formação e o custeio das lavouras?
Continua Taunay: “Os bancos emprestavam sob o crédito do comissário, de sua firma ou pessoal, sob letras endossadas por outros comerciantes, pois recusavam-se, sistematicamente, a aceitar endossos de lavradores, de modo que se criavam interdependências comerciais perigosas e por vezes ruinosas”. Dessa forma, a função de intermediário financeiro, exercida pelo comissário, equivalia a um tipo de especialização do sistema bancário, já que este último, nas condições vigentes na época, não possuía vínculo financeiro com a produção de café.
Por que era possível ao comissário o que era vedado ao fazendeiro? Que características permitiam ao comissário obter crédito com os bancos, enquanto aos fazendeiros o mesmo crédito era negado? Uma razão básica residia no fato de que o crédito, durante todo o século XIX e até 1930, era basicamente constituído de empréstimos pessoais. Em conseqüência, o conhecimento e as relações pessoais assumiam relevância na concessão do financiamento. O comércio comissário situava-se, dessa forma, em posição privilegiada junto aos bancos, enquanto os fazendeiros encontravam enorme dificuldade. As casas comissárias no Estado de São Paulo localizavam-se na praça de Santos, centro do comércio interno e de exportação de café. Por conseguinte, essas casas mantinham um relacionamento constante com os bancos, que, mesmo quando sediados na capital, atuavam diretamente nas atividades comerciais de Santos. Os fazendeiros, ao contrário, tinham pouca oportunidade de manter qualquer relacionamento com os bancos, pois residiam em regiões distantes de Santos e da capital. Evidentemente, isso fazia sentido apenas pelo fato de o sistema bancário ser pouco desenvolvido, contando-se nos dedos o número de agências localizadas fora de São Paulo e Santos. A abertura de agências dos bancos nacionais e do Banco do Brasil no interior de São Paulo, que aproximaria os bancos dos fazendeiros, somente tomaria vulto nos anos 1920. É o que se conclui da passagem a seguir:
“(…) em 1918, os bancos nacionais, em São Paulo, dispunham de 11 agências no interior do estado. Em 1924 esse número subiu a 53, para atingir 88 agências em 1927. O Banco do Brasil em 1918 contava 28 agências, das quais quatro ficavam no Estado de São Paulo. Em 1927 o principal estabelecimento bancário brasileiro dispõe de 70 agências, das quais 16 em nosso estado”.
Havia ainda outras razões que possibilitavam aos comissários o acesso ao crédito bancário. Entre elas, seguramente, o fato de que não era incomum existirem vínculos pessoais entre os comissários e os bancos. O conselheiro Antonio Prado, por exemplo, além de grande fazendeiro na região de Ribeirão Preto e Sertãozinho (desde o final do século XIX), era proprietário, juntamente com outros membros de sua família, de uma casa comissária em Santos — a Prado & Chaves — e, ao mesmo tempo, era o controlador de um dos mais importantes bancos da época — o Banco do Comércio e Indústria de São Paulo (Comind).
A razão principal, contudo, para o acesso dos comissários ao financiamento bancário, bem como para a inexistência de um vínculo efetivo entre os bancos e os fazendeiros no começo do século XX, residia na própria natureza da empresa do café. De um lado, os capitais da época, fossem eles nacionais ou estrangeiros, estavam aplicados basicamente no grande negócio que era o comércio do café. Sendo o produto uma das mercadorias de maior valor no comércio internacional, era na esfera da comercialização que se realizavam os grandes negócios, acumulavam-se fortunas e prosperavam as empresas. Evidentemente, a produção de café proporcionava lucros ao fazendeiro; no entanto, tais lucros eram, seguramente, menores do que aqueles auferidos na sua comercialização, não apenas no âmbito doméstico, mas também, e sobretudo, nas exportações.
ESGOTAMENTO DO SISTEMA DE FINANCIAMENTO DA ECONOMIA CAFEEIRA
Sendo informal, o sistema creditício revelava-se flexível e adequado ao fazendeiro. Se por acaso a colheita fosse pequena, ou se baixassem as cotações do café no mercado internacional e os preços no mercado interno, o pagamento do empréstimo era muitas vezes postergado. As vantagens que um sistema de crédito como esse proporcionava tanto ao comissário quanto ao fazendeiro eram evidentes. A este último, em particular, era altamente favorável: tinha acesso ao crédito de que necessitava a juros razoáveis e ainda contava com flexibilidade em períodos de aperto financeiro. Ao comissário, por sua vez, mesmo não auferindo lucros no repasse, cabia a vantagem de assegurar para si a colheita do fazendeiro, cuja comercialização lhe proporcionava os lucros da sua atividade.
O ponto fraco do sistema estava, a par de suas vantagens, precisamente no caráter pessoal do crédito: com a expansão da lavoura e o conseqüente aumento do volume de negócios, as somas emprestadas cresceram e passaram a exigir garantias mais sólidas. Entretanto, mesmo essa debilidade do sistema encontrou solução nos primeiros tempos da grande expansão da lavoura (a partir de meados da década de 1880), pois o aumento do número de casas comissárias fazia com que os riscos maiores se diluíssem. À parte possíveis exageros, as casas comissárias surgiram em grande número, acompanhando a expansão dos negócios. Taunay chega a apontar cerca de duas mil firmas comissárias no Rio de Janeiro.
Em entrevista a um jornal do Rio de Janeiro em 1927, um antigo comerciante de café assim descrevia o sistema:
“(…) havia até 15 anos passados três classes distintas no comércio de café do Rio: o comissário, o ensacador e o exportador. O comissário recebia o café do interior. Adiantava dinheiro ao fazendeiro, representando em face do produtor, o papel de banqueiro. O fazendeiro, além dos juros, que variavam entre 9 e 12%, pagava ao comissário uma comissão de 3% como, de resto, acontece ainda hoje. O ensacador comprava por conta própria o café aos comissários. Era esse intermediário quem manipulava e classificava os tipos de café. (…) O exportador não fazia, como hoje, a classificação do café para os mercados externos. Ele se limitava a comprá-lo já manipulado do ensacador para a exportação. Ensacador e comissário, via de regra, eram ou brasileiros ou portugueses. O exportador era uma classe na sua quase totalidade constituída do elemento estrangeiro, ingleses principalmente. Não tinham nenhum armazém de depósito. Possuíam apenas escritórios. (…) Atualmente não existe mais a distinção entre ensacador e exportador, há apenas duas classes de intermediários entre o produtor e o mercado exportador, e que são o comissário e o exportador. A existência outrora de uma classe intermediária entre o comissário e o exportador era vantajosa para aquele, pois que o ensacador ajudava o comissário a resistir à desvalorização do produto. O ensacador era um interessado na alta, tanto quanto o comissário. E assim toda vez que o café tendia para baixa, era ele quem, via de regra, ajudava o comissário obter crédito nos bancos, para o café não ir parar a preços não-remuneradores às mãos do exportador”.
O autor da entrevista referia-se ao comércio do café no período anterior à República, na praça do Rio de Janeiro. Contudo, adianta que tal sistema prevaleceu até “15 anos passados”, ou seja, até por volta de 1912. Descontando-se o papel do ensacador, importante principalmente no Rio de Janeiro do século XIX, em essência era esse também o sistema na praça de Santos, no início do século XX.
Muitas são as informações importantes nesse depoimento. A primeira delas é o interesse altista do comissário e o interesse do exportador na baixa do café. Aí residia um ponto de convergência de interesses do comissário e do fazendeiro. Ao comissário, assim como ao fazendeiro, só interessava a alta, pois sua comissão repousava sobre o valor da venda. Ao exportador, ao contrário, era a baixa do preço interno que interessava, pois ganhava na diferença entre esse preço e o de exportação. Nesse sentido, pode-se concluir que a casa comissária era o representante do fazendeiro nas praças de Santos e do Rio de Janeiro.
Outra informação importante diz respeito ao controle do comércio exportador. Da mesma forma que no Rio, os maiores exportadores da praça de Santos eram estrangeiros. Do total de sacas exportadas pelo porto de Santos, no período de 1895 a 1907, verifica-se que os dez maiores exportadores foram responsáveis por mais de 70% das exportações. Dentre eles figura apenas uma empresa brasileira, a Prado & Chaves. Mesmo assim, essa firma brasileira foi responsável pelo equivalente a menos de 4% do total exportado no período. O controle das casas exportadoras por firmas estrangeiras, na praça de Santos, era, pois, absoluto. Em conseqüência, uma parcela considerável da renda gerada na economia cafeeira era apropriada por capital estrangeiro e drenada para o exterior.
À medida que crescia a área de atuação das casas exportadoras, em detrimento das casas comissárias, maior era a capacidade baixista do exportador e, portanto, maior a importância da renda apropriada e transferida para o estrangeiro. O comércio funcionava de tal modo que à queda dos preços internacionais não se seguia uma correspondente baixa dos preços no varejo. Esse mecanismo funcionou entre 1894-1904, provocando o aumento da margem de comercialização dos intermediários, que passou de 13 centavos por libra-peso em 1892-1895 para 17,4 centavos por libra-peso em 1901. Em outros termos, os exportadores estrangeiros da praça de Santos exerciam um papel de oligopsônio sobre vendedores, enquanto as casas comissárias organizavam-se numa estrutura concorrencial. Decorre desse fato um confronto desigual entre fracos interesses altistas e poderosos interesses baixistas, verificados, sobretudo, em períodos de superprodução, como o que teve lugar no final do século XIX e princípios do século XX.
Se de um lado os comissários trabalhavam pela alta das cotações, e assim representavam interesses que eram seus e dos fazendeiros, por outro lado sua atividade incluía práticas que contrariavam interesses dos proprietários de terra, como manipulações com o café adquirido em consignação dos fazendeiros. Quando um tipo de café de qualidade era misturado com outros, de qualidade inferior, alcançavam-se preços mais baixos. Para o comissário, essa prática era interessante, pois assim encontrava colocação para produtos que, de outro modo, não teriam mercado. Isto é, ao comissário interessava vender pelo maior preço, mas vender todo o café de que dispunha em consignação, o que acarretava perdas para o fazendeiro que enviava um café fino a Santos.
Outras práticas também prejudicavam o fazendeiro. O café vendido pelo comissário ao exportador era acompanhado de uma simples conta de venda do comissário ao fazendeiro, relatando as condições da venda e o crédito que o fazendeiro possuía em sua conta na casa comissária. Nada impedia que esta emitisse a conta de venda em data posterior à data em que a transação fora de fato realizada. Tais práticas, cuja generalização é obviamente impossível de ser avaliada, eram, contudo, motivo de queixas por parte dos fazendeiros. Essa reação veio à tona, como se poderia esperar, nos momentos difíceis de superprodução e queda dos preços do café. Foi justamente nesses momentos que o mecanismo de comercialização e financiamento do café, baseado no comissário, começou a se mostrar inadequado para o empreendimento cafeeiro.
É bem verdade que algumas tentativas de formação de um sistema de crédito agrícola haviam sido realizadas desde os tempos do Império. A necessidade de um sistema financeiro alternativo já era sentida bem antes, principalmente por grandes fazendeiros, interessados em realizar investimentos volumosos. A questão da mão-de-obra, entretanto, assumia uma gravidade de tal ordem, na segunda metade do século XIX, que absorvia atenção integral do capital cafeeiro.
A introdução do trabalho livre nas fazendas paulistas desencadeou um mecanismo expansionista sem precedentes na lavoura e, como conseqüência, revelou-se mais claramente a insuficiência do sistema de financiamento baseado no comissário. Assim sendo, se, por um lado, recursos financeiros adicionais se tornaram necessários para o custeio das fazendas, de outro, a introdução do trabalho livre veio eliminar a necessidade de recursos anteriormente exigidos para a aquisição de escravos.
A QUESTÃO DA MÃO-DE-OBRA
A utilização em massa do trabalho assalariado representou a primeira fase de desenvolvimento do capitalismo no Brasil. A formação do mercado de trabalho assalariado adquiriu um ritmo mais intenso no país depois da falência definitiva do sistema escravista. Na análise desse processo, salta à vista o fato de que, na região de desenvolvimento mais intenso (Sudeste), praticamente até a década de 1930, a mão-de-obra assalariada era recrutada preferencialmente entre os imigrantes, embora já houvesse, desde as últimas décadas do século XIX, um grande contingente potencial de trabalhadores assalariados constituído por brasileiros natos. Uma investigação parcial dos recursos de mão-de-obra, efetuada em 1882, demonstrou que de cerca de cinco milhões de pessoas na idade de 13 a 45 anos que viviam nas seis maiores províncias do país — Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Ceará —, 651 mil, ou 13%, eram escravos. O número de pessoas livres que se dedicavam a qualquer trabalho era igual a 1,4 milhão, ou 29%. As demais, 2,9 milhões, ou 58% de toda a população apta ao trabalho, foram qualificadas como “indivíduos sem ocupação certa”.
A abolição da escravatura em 1888 e uma série de cataclismas sociais e econômicos no último quartel daquele século — como a seca catastrófica no Nordeste em 1877-1879 ou a decadência dos cafezais outrora prósperos na província do Rio de Janeiro e a sua transformação em pastagens — resultaram no aumento do número de pessoas que não tinham fontes de rendimentos permanentes para sua subsistência e, muitas vezes, nem sequer domicílio. Foi precisamente nessa época que surgiram, no Rio de Janeiro e em algumas outras cidades do Brasil, as favelas.
O que explicaria a necessidade de importação de imigrantes, apesar da existência de tanta mão-de-obra nativa desocupada? Durante 50 anos, de 1880 a 1930, chegaram ao país quatro milhões de imigrantes, a maior parte dos quais se estabeleceu em São Paulo, que era uma espécie de epicentro do desenvolvimento capitalista do país. No final do século XIX, os imigrantes constituíam cerca de metade da população adulta de São Paulo e mais de 10% da população adulta do país.
Isso aconteceu, em primeiro lugar, porque milhões de habitantes locais pauperizados, sem ocupação certa, representaram por muito tempo um exército de trabalho sobretudo potencial e não real. O longo domínio do sistema escravista e de outros sistemas arcaicos, a exploração impiedosa e a opressão social que as camadas dos des-possuídos, tanto os escravos como os pobres livres, sofreram durante várias gerações mutilaram-nas moral, psicológica e fisicamente. Além disso, o primitivismo dos seus hábitos de trabalho, que se combinava freqüentemente com a deficiência física, assim como tradições e costumes que lhes foram inculcados, criavam sérios obstáculos à exploração capitalista da mão-de-obra nacional.
Um tratamento ligeiramente diferente da questão imigratória é oferecido por Celso Furtado, que identifica outros problemas para a utilização da mão-de-obra nacional na grande lavoura cafeeira, somados à dificuldade de adaptação dos trabalhadores, principalmente da zona urbana, às condições de vida e trabalho nas grandes fazendas. Em primeiro lugar, o estoque de escravos existente no Brasil revelou-se insuficiente em face da contínua expansão da produção cafeeira. O tráfico interno de escravos direcionado para as plantações de café do sul, em prejuízo das regiões decadentes (como a região algodoeira do Maranhão), atingiu um ponto de esgotamento, provocando uma utilização ainda mais intensa — e, conseqüentemente, um desgaste maior — dessa mão-de-obra. Além disso, os trabalhadores pertencentes à economia de subsistência estavam extremamente dispersos, dificultando o recrutamento e exigindo uma significativa mobilização de recursos. Tal empreitada, no entanto, demandaria ampla cooperação por parte dos proprietários das terras em que se encontravam esses trabalhadores, algo pouco factível, pois o prestígio e o poder político do senhor de terras dependiam, em grande medida, “da quantidade de homens que pudesse utilizar a qualquer momento e para qualquer fim”.
Os fazendeiros de café de São Paulo e os industriais principiantes do Rio de Janeiro e de São Paulo, durante muito tempo, preferiam admitir operários-imigrantes que já haviam “cursado uma escola de trabalho assalariado”, habituados a mais disciplina e autonomia, embora seus salários fossem mais elevados. Ao mesmo tempo, o governo federal e as administrações locais dos estados do Sudeste, principalmente São Paulo, continuavam a gastar importantes somas para subsidiar a imigração, apesar da intensificação do superpovoamento agrário. As primeiras restrições à imigração, ainda tímidas, como a proibição do ingresso de pessoas doentes e idosas, foram introduzidas no país em 1921. Depois de 1930, com o agravamento do problema do emprego, devido, entre outras razões, ao crescimento da oferta de mão-de-obra no mercado nacional, restrições mais sérias foram impostas.
De modo geral, até a década de 1930, a reserva de mão-de-obra composta de brasileiros nativos era utilizada relativamente pouco e de preferência nos ramos em que prevaleciam relações de produção tradicionais. Via de regra, as condições de contratação de mão-de-obra nacional eram consideravelmente piores. Segundo Roberto Simonsen, em 1938, 50 anos depois da abolição da escravatura, o salário de um trabalhador de muitas zonas do Norte e do Nordeste do Brasil era inferior aos gastos com a manutenção de um escravo nos últimos anos do Império.
“Por condições econômicas ainda mal estudadas, o trabalhador livre, em vastas zonas do país, não ganha o suficiente para se alimentar: é um subalimentado executando miseravelmente o pouco trabalho de que é capaz, a troco do simples direito de viver”.
Tudo isso permite afirmar que a libertação dos escravos não os transformou em operários assalariados, como supõem alguns, mas apenas criou possibilidades para isso. Tornar-se-iam proletários apenas filhos e netos dos antigos escravos, cujos pais e avós tiveram de passar pela severa escola da adaptação ao novo modo capitalista de produção.
O baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas e do próprio produtor imediato, no entanto, não foram as únicas causas do desenvolvimento atrasado e lento do mercado de trabalho assalariado. A concentração das terras mais férteis e melhor situadas em latifúndios foi um importante obstáculo à transformação da maior parte das pessoas livres em proprietários de terra. Apesar disso, muitas tiveram acesso ao meio de produção básico, estabelecendo-se em terras alheias como arrendatários.
Além disso, o monopólio da grande propriedade de terra no Brasil jamais teve um caráter absoluto. Na periferia e dentro das principais zonas de produção agrícola existiam grandes maciços de terras que não pertenciam a ninguém ou tinham sido abandonados, o que abria à população indigente livre, que crescia cada vez mais, possibilidades de obter meios de subsistência. Portanto, embora a maioria das pessoas livres não possuísse os meios de produção, não estava destituída totalmente dos meios de existência, o que deu condições para transformar uma parte da população rural indigente em camponesa. Esses processos tornaram-se especialmente intensos após a derrocada do sistema escravista e resultaram na formação de dois sistemas econômicos: um de economias “semifeudais” e de pequenas economias camponesas, que concorriam na utilização do excesso de mão-de-obra com o outro sistema, verdadeiramente capitalista.
CONSOLIDAÇÃO DAS CONDIÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL
O processo de transição para o modo de produção capitalista nos países atrasados mostra-se especialmente prolongado e doloroso, atravessando uma fase de desenvolvimento e de existência, mais ou menos longa, de diversas formas econômicas mistas, as quais combinam elementos de relações de produção arcaicas e modernas. Nos países em vias de desenvolvimento, certos traços do tradicionalismo são característicos também do setor capitalista, que surge, na maioria das vezes, com a participação direta do capital estrangeiro ou como resultado do efeito demonstrativo da indústria e da agricultura dos centros capitalistas, incorporando inicialmente apenas uma parte limitada da população.
No Brasil, a economia capitalista e as “outras economias” que se desenvolviam paralelamente absorviam apenas uma parte da mão-deobra, lançada para o mercado devido ao superpovoamento agrícola e à deterioração das formas econômicas anteriores. Foi precisamente isso que criou condições para a reprodução da pior espécie das formas pré-capitalistas de exploração, adiando por muito tempo sua deterioração e decomposição definitiva, como atesta o exemplo da utilização de trabalho forçado em massa na Amazônia durante o ciclo da borracha, a partir do fim do século XIX. Centenas de milhares de pessoas recrutadas entre a população desempregada dos estados nordestinos foram praticamente reduzidas à condição de escravos, para se verem novamente desempregadas às vésperas da Primeira Guerra Mundial em razão da crise no mercado internacional. Resultaram, portanto, muito instáveis e passageiras também essas formas “novas” de organização da produção que surgiram depois do desmoronamento do sistema escravista.
No final do século XIX, no entanto, observou-se não só o surgimento de um mercado de mão-de-obra assalariada (como apontado no capítulo anterior), mas também a intensificação da concentração de riquezas e o desenvolvimento de relações monetário-mercantis.
As estradas de ferro, que começaram a ser construídas em 1852, desempenharam papel fundamental, uma vez que incorporaram vastas zonas em que dominavam anteriormente economias naturais ou seminaturais. A imigração em massa aumentava a disponibilidade de mão-de-obra, assim como a demanda agregada. Por fim, verificou-se elevação da oferta monetária. Enquanto em 1851 a massa de moeda em circulação era igual a 7 mil-réis (0,85 da libra esterlina por habitante), em 1889 esse índice subiu para 15 mil-réis (1,65 libras esterlinas por habitante), o que sugere que no período a circulação mercantil provavelmente tenha-se intensificado.
De modo geral, a envergadura do mercado interno e a da economia financeira eram ainda bastante limitadas, pois asseguravam condições mínimas para o início da produção capitalista, mas insuficientes para abrir caminho ao seu desenvolvimento livre. No momento da queda do Império, por exemplo, o total de papel-moeda em circulação era igual a apenas 211 milhões de mil-réis (cerca de 23 milhões de libras esterlinas), valor 2,4 vezes inferior ao da circulação mercantil externa. O restrito meio circulante de uma economia escravista não era suficiente para permitir o funcionamento adequado de uma economia baseada no regime de trabalho assalariado. O governo republicano que chegou ao poder intensificou a emissão de papel-moeda e concedeu maior autonomia e responsabilidades aos bancos privados. Durante um prazo curto, o total de recursos financeiros em circulação mais que duplicou. Teve início um processo inflacionário acompanhado de especulação nas bolsas de valores, criadas no fim século XIX, em São Paulo e outras grandes cidades. Durante um ou dois anos, foram fundadas no Brasil centenas de sociedades acionárias que possuíam, via de regra, apenas um capital fictício.
Os investimentos estrangeiros, cujo afluxo aumentou consideravelmente a partir de meados do século XIX, também foram encaminhados, sobretudo, para a infra-estrutura. No período de 1860 a 1889, por exemplo, foram concedidas licenças para a abertura de 137 companhias estrangeiras, 111 das quais eram inglesas. A maioria esmagadora das empresas foi criada na esfera financeira (bancos, companhias de seguros) e de serviços (estradas de ferro, navegação, transportes urbanos, abastecimento de gás), e, mais raramente, na indústria mineira.
FORMAÇÃO DA INDÚSTRIA
A formação dos primeiros focos de produção industrial começou no Brasil só no último quartel do século XIX, especialmente a partir de 1885. Contribuiu para isso, em primeiro lugar, o surgimento do mercado de mão-de-obra assalariada originado pela imigração em massa, a abolição da escravatura e a intensificação da deterioração das estruturas pré-capitalistas. Para Fernando Henrique Cardoso, o surgimento do mercado de trabalho serviu para definir as duas classes sociais fundamentais para o início da produção industrial e capitalista, os empresários donos do capital e os trabalhadores destituídos dos meios de produção. A generalização da economia mercantil e a ampliação da divisão social do trabalho constituíram, para Cardoso, as condições sociais da industrialização brasileira.
Certas mudanças tiveram lugar também na ideologia da classe dominante. Enquanto anteriormente boa parte de seus representantes considerava que o Brasil deveria continuar a ser um país exclusivamente agrário, agora não faltavam partidários da criação da indústria nacional. Essas tendências deviam-se em grande parte ao crescimento das dificuldades na esfera da economia tradicional. A crise econômica mundial de 1875 e a crise de superprodução de café de 1880-1886, que acarretaram a ruína de muitos fazendeiros, comerciantes e bancários, tornaram evidente a vulnerabilidade da economia cafeeira.
As primeiras tentativas, em geral infelizes, de organização da indústria capitalista haviam sido empreendidas no Brasil em meados do século XIX. Em 1844, o governo brasileiro aproveitara a expiração do desigual tratado de comércio com a Inglaterra, que limitava os impostos alfandegários ao nível máximo de 15%, estabelecendo uma nova tarifa alfandegária, bem mais alta. Embora essa medida tenha sido tomada sobretudo para alcançar alguns objetivos fiscais, teve também certo efeito protecionista. Além disso, em 1846, o governo baixou vários decretos concedendo subsídios à produção local de artigos têxteis.
Essas medidas, assim como o efeito demonstrativo da indústria capitalista da Inglaterra, estimularam alguns brasileiros ricos a criar empresas industriais. No entanto, essas indústrias — ainda em pequena quantidade — não eram capitalistas, pois utilizavam, em geral, trabalho escravo e equipamentos primitivos. Segundo informações de Morse, em todo o Brasil havia apenas 50 manufaturas qualificadas como empresas industriais, com capital total de 7 milhões de mil-réis, equivalente a cerca de 840 mil libras esterlinas. Ferreira Lima aponta por sua vez que, em 1850, eram 74 as empresas, produtoras de chapéus, círios, sabão, cerveja, cigarros, tecidos de algodão etc., 50 das quais se encontravam na capital e na província do Rio de Janeiro:
“Eram fábricas pequenas, usando poucas máquinas, que ainda eram muito caras, mas que apresentavam produtos de notável acabamento, embora fossem de âmbito apenas local, não se realizando quase intercâmbio de manufaturas entre as províncias”.
Entre essas empresas primitivas, havia também certas exceções, como o estaleiro na cidade de Niterói, inaugurado em 1850. Construído de acordo com modelos ingleses e sob a direção de engenheiros também ingleses, nele trabalhavam mais de mil pessoas. Entre 1850 e 1861, essa empresa, do Visconde de Mauá, construiu 72 navios, além de ter produzido tubos, peças para a construção de pontes etc. Contudo, a maior parte das empresas criadas depois da reforma de tarifas de 1844 não conseguiu sobreviver, devido à falta de mão-de-obra qualificada, à concorrência por parte de esferas mais lucrativas de aplicação do capital e, especialmente, ao enfraquecimento do protecionismo alfandegário a partir de 1857. Em particular, em 1858 foram fechadas muitas fábricas têxteis da capital, mesmo as que recebiam ajuda do governo. Depois da diminuição dos impostos sobre a importação de navios a vapor, de alguns tipos de veleiros e de máquinas a vapor, o estaleiro de Mauá viu-se forçado a se dedicar ao conserto de navios pequenos para, finalmente, ser fechado em 1861.
A campanha em prol da política protecionista intensificou-se após a criação, em 1880, da Associação Industrial, cuja direção foi assumida por A. Felício dos Santos. Em 1881, ele publicou, em nome da Associação, um manifesto contra os partidários da orientação exclusivamente agrária do país. A sua argumentação a favor do desenvolvimento da indústria era a seguinte:
“O Império, graças a ela [indústria] não só obteria a independência econômica, mas resolveria alguns de seus problemas, pois atrairia braços e capitais estrangeiros, ocuparia uma população urbana desocupada que poderia suscitar uma questão social, livraria a nação de sua vulnerabilidade de uma economia monocultora e, abastecendo o mercado interno, diminuiria a importação, aliviando a balança comercial”.
É interessante assinalar que o ideólogo da burguesia industrial em vias de surgimento interpretava a dependência econômica exclusivamente como dependência comercial, e considerava o capital estrangeiro um elemento indispensável e útil ao desenvolvimento. Além disso, A. Felício dos Santos era adversário da abolição da escravatura. Edgard Carone chamou a atenção para mais uma particularidade da campanha em defesa da indústria: “O singular é ter nascido no Brasil uma associação profissional favorável à industrialização, antes de existir uma indústria propriamente dita”.
A atividade da Associação Industrial contribuiu para o crescimento de tendências pró-industrializantes, mas a sua influência direta sobre a política do governo era insignificante. A nova tarifa alfandegária posta em vigor em 1887 estabeleceu elevados impostos, sobretudo para os produtos agrícolas, que podiam concorrer no mercado interno com os produtos locais, e impostos moderados para produtos em cuja importação estava interessado o setor agrário. Foram aumentadas ainda as taxas alfandegárias sobre o fiado de lã e de algodão importado por fabricantes locais de tecidos. Em outras palavras, o protecionismo alfandegário tinha como objetivo atender basicamente os interesses da classe dominante tradicional.
Medidas mais enérgicas em defesa da indústria foram tomadas pelo primeiro governo republicano, especialmente na época da gestão do Marechal Floriano Peixoto (1891-1894). O Ministro da Fazenda Ruy Barbosa estabeleceu impostos protecionistas para os produtos manufaturados nacionais, tendo diminuído consideravelmente as taxas cobradas sobre a importação de equipamento e de matérias-primas. Nessa mesma época, foi promulgada a lei da proteção à indústria, que estabeleceu privilégios adicionais. Essas decisões foram anuladas depois da tomada do poder pelo governo de Prudente de Morais (1894-1898), o primeiro presidente a representar, na época da República Velha (1889-1930), os interesses da oligarquia do café de São Paulo. A política do Estado foi especialmente pró-oligárquica e antiindustrial na época dos presidentes Campos Salles (1898-1902) e Rodrigues Alves (1902-1906). Em particular, a tarifa alfandegária de 1900, que continuou em vigor até 1934, levava em consideração, sobretudo, os interesses dos ramos da agricultura que se orientavam para a exportação e dos grupos sociais ligados a esses ramos.
No recenseamento de 1920, encontramos dados relativos ao capital total das empresas industriais então existentes, assim como nos períodos em que foram feitos os respectivos investimentos, o que permite fazer uma idéia sobre a época de formação da indústria brasileira.
Essa formação intensificou-se no período da derrocada definitiva do sistema escravista e nos primeiros anos da República. Restabelecido o poder da oligarquia tradicional, depois de 1894, esse processo tornou-se mais lento, para voltar a acelerar na década anterior à Primeira Guerra Mundial e durante a própria guerra. Mais de 55% da capacidade instalada da indústria, registrada pelo recenseamento de 1920, foi criada em 1905-1919; aproximadamente um quarto dela, em 1884-1894; e apenas 9,6%, até 1884. Em 1884, havia no Brasil apenas 200 empresas industriais.
Em 1889, o número aumentou para 600 (60% das quais eram têxteis). Mais de 450 empresas industriais foram fundadas em 1890-1895. Em 1907, o número de empresas registradas como industriais chegou a 3,2 mil, e em 1920, a 13,3 mil. Aumentava paralelamente o número de operários ocupados na indústria. Em 1890, havia no país entre 50 e 60 mil; cerca de 152 mil em 1907 e 297 mil em 1920. Cumpre assinalar que esses dados, retirados dos recenseamentos oficiais, indicam números um tanto exagerados de operários industriais. Baer indica que, no recenseamento de 1920, foram registrados como operários industriais até os artesãos que não haviam renunciado totalmente à produção agrícola. Mas, de um modo geral, o número de pessoas ocupadas na indústria ou ligadas a ela tinha efetivamente aumentado.
A partir de meados da primeira década do século XX, o crescimento rápido da indústria foi propiciado em grande parte por uma nova crise de superprodução de café, ainda mais profunda do que a de 1880-1886, que diminuiu a rentabilidade dos investimentos na sua produção e criou novos estímulos para investimentos na indústria. Além disso, em 1907, os industriais conseguiram aumentar um pouco o nível de proteção alfandegária. Condições favoráveis para o desenvolvimento da indústria formaram-se também durante a Primeira Guerra Mundial, pois o mercado interno ressentia-se da falta de mercadorias de origem estrangeira. Ritmos relativamente altos de crescimento da indústria verificaram-se também em alguns anos do período do pós-guerra, mas, a partir de 1923, e até 1929, houve praticamente uma estagnação. O crescimento do produto nacional bruto, cuja média anual atingiu 4,5% na década de 1920, deveu-se, sobretudo, ao incremento da produção agrícola.
A CLASSE INDUSTRIAL
Em 1872, o Barão de Piracicaba construiu, na cidade de São Paulo, a primeira fábrica têxtil de tipo moderno, que utilizava cerca de 30 teares adquiridos da firma inglesa John Pratt & Sons e o trabalho de apenas 60 operários. Em 1877, o filho do Barão de Piracicaba, que tinha sido educado na Inglaterra, construiu outra fábrica têxtil, ainda maior, munida de 350 máquinas da mesma firma inglesa. No Estado de São Paulo, em particular na zona algodoeira de Itu, foram abertas mais dez pequenas empresas de fiação de algodão. No Brasil, como em muitos outros países, o setor têxtil foi durante muito tempo o principal ramo industrial. Em 1881, nele estavam ocupados 3 mil operários; em 1907, 53 mil; e em 1921, 109 mil.
No período de 1875 a 1885, começaram a surgir empresas de diversos ramos em outras regiões, como no Nordeste, onde foram construídas, sobretudo com a ajuda de créditos ingleses, 50 refinarias de açúcar, que substituíram em parte os engenhos de tipo colonial. Em 1881, uma empresa têxtil bastante grande foi aberta em Madalena-PE. Em 1890, eclodiria ali uma das primeiras greves de operários industriais no Brasil. Uma algodoaria ainda maior foi aberta em 1891 na Bahia, por um certo L. Tarquínio, conhecido como autor do projeto de libertação dos escravos publicado em 1885.
Iniciava-se também a construção de modernas refinarias de açúcar nas províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo. Algumas delas foram construídas pela companhia francesa Société de Sucreries Brésilienne; outras, por proprietários de novas plantações de café altamente produtivas, criadas na parte ocidental do Estado de São Paulo no final da década de 1860, depois da construção das estradas de ferro. Os enormes lucros de alguns dos fazendeiros dessa zona, cujas terras férteis permitiam obter colheitas sem precedentes, foram investidos, em parte, na criação de outras empresas capitalistas.
Ganhavam fama especial, então, Antonio da Silva Prado e outros representantes da elite do café de São Paulo, que se tornariam empresários capitalistas. Muitos deles participavam, ao mesmo tempo, da vida política do país, o que lhes permitia obter diversos privilégios dos governos federal e estadual. A partir de 1880, e especialmente durante a década de 1890, começaram a investir recursos na construção de empresas industriais. Lacerda Franco, por exemplo, proprietário de várias plantações, grande comerciante de café e senador federal, fundou, em 1890, o Banco União e construiu mais tarde, em Sorocaba-SP, a fábrica têxtil Votorantim, uma das maiores do Brasil. Era também proprietário de uma pequena fábrica têxtil em Jundiaí-SP e de uma companhia telefônica, além de ser acionista e diretor de uma companhia ferroviária. R. Miranda, proprietário de grandes plantações de café e de uma firma de importação, deputado federal e ministro da agricultura, construiu uma fábrica têxtil em Piracicaba-SP. O proprietário de plantações de café A. Rodovalho fundou, em 1890, uma fábrica de papel que existe ainda hoje com o nome de Companhia Melhoramentos de São Paulo. Em 1897, construiu na sua fazenda a primeira fábrica de cimento do Brasil. Em 1891, um grupo de latifundiários de São Paulo, juntamente com alguns comerciantes-importadores locais de origem alemã, ligados ao banco alemão Brasilianische Bankfür Deutschland, fundou a companhia Antarctica, atualmente uma das maiores fábricas de cerveja do país. Em 1902, de maneira semelhante, foi criada outra grande companhia de cerveja, a Brahma.
A fim de abastecer com garrafas a indústria de cerveja em vias de nascimento, foi fundada a Companhia Vidraria Santa Marina, uma das maiores ainda hoje. Seu fundador e principal acionista foi Antonio da Silva Prado, a quem já nos referimos; ações dessa companhia foram adquiridas ainda pelo conde A. do Nascimento (presidente da fábrica de cerveja Antarctica), por G. Marchke (o então dono da Brahma), por C. Campos (antigo presidente da província de São Paulo) e por alguns estrangeiros ricos, representantes da elite local.
Antonio da Silva Prado, que pertencia à elite latifundiária tradicional de São Paulo, chegou a representar durante certo período a sua província na capital, ocupando o posto de ministro em um dos governos do Império. No período de 1866 a 1889, criou numerosas plantações na região oeste do Estado de São Paulo e participou ativamente da construção de estradas de ferro. Foi presidente e diretor da Companhia Paulista de Estradas de Ferro e construiu, entre 1870 e 1872, o trecho ferroviário entre Jundiaí e Campinas e, posteriormente, algumas outras ramificações ferroviárias na parte ocidental do estado. A oficina de reparação, criada junto com a companhia, tornou-se mais tarde uma importante empresa industrial onde trabalhavam mais de 700 operários. Essa empresa dedicava-se não só à reparação, mas também à produção de vagões ferroviários, caldeiras, bombas d’água etc. A partir de 1911, essa oficina começou a efetuar a montagem de locomotivas que vinham do exterior. Entre outras companhias industriais fundadas por Antonio Prado pode-se mencionar ainda uma fábrica de couros e um matadouro.
A partir de meados da década de 1880, Antonio Prado tentou organizar a produção de uma máquina para purificação e secagem de café inventada pelo imigrante alemão E. Engelberg, mas a tentativa fracassou, pois os fazendeiros locais não acreditavam que algo de valor pudesse ser inventado e produzido no Brasil e recusavam-se a adquirir a máquina. Em 1888, a patente de Engelberg foi vendida nos EUA e a máquina produzida a partir desse protótipo passou a gozar de boa procura no mercado internacional, inclusive no Brasil.
Dean, exagerando, escreveu:
“Quase todos os empresários brasileiros saíram da elite latifundiária. Até 1930, não se podia descobrir um só empresário que pertencesse por origem à classe local média ou inferior. Aliás, mesmo depois desta data, semelhantes exemplos eram muito raros”.
Na verdade, o grupo social do qual saiu grande parte dos empresários locais era o dos comerciantes importadores e exportadores de origem estrangeira e empresários-imigrantes pertencentes à nova corrente migratória, que chegaram ao país no final do século XIX com a esperança de enriquecer rapidamente. Estes últimos eram especialmente agressivos. Em geral, começavam a sua carreira de negócios no Brasil na esfera do comércio de importação. Depois, tendo aumentado ou criado o capital inicial, davam início à organização das suas próprias empresas ou estabeleciam controle sobre empresas instituídas anteriormente por pessoas oriundas da elite latifundiária.
Frequentemente, os novos empresários-imigrantes atuavam durante certo tempo como representantes diretos das companhias e bancos da Europa Ocidental e dos Estados Unidos interessados em reforçar suas posições no mercado brasileiro. Rodolfo Crespi, por exemplo, que se tornaria mais tarde proprietário da maior fábrica têxtil de São Paulo, chegou ao Brasil em 1893 como representante da firma italiana de indústria e comércio E. Dell’Acqua. Algum tempo depois, casou-se com a filha do proprietário de uma pequena fábrica têxtil e começou a trabalhar na empresa do sogro, sendo, ao mesmo tempo, dono de um restaurante, o que aumentava os seus lucros. Em 1906, adquiriu a fábrica do sogro e começou a ampliá-la, utilizando para isso os créditos da E. Dell’Acqua e da filial local da Banca Commerciale Italiana. Em 1909, já trabalhavam na sua empresa 1.300 pessoas. Adquiriu também fábricas de chapéus, de cimento e de seda e, em 1913, uma fábrica de fiação de lã. Em 1917, o número de trabalhadores ocupados na empresa básica do grupo Cotonifício Rodolfo Crespi chegou a 2.000. Foi precisamente nesse estabelecimento que começou a greve geral de operários paulistas em 1917. Mais tarde, Crespi obteve também acesso ao negócio de café, mediante o casamento de sua filha com o filho de Antonio da Silva Prado. Quando Mussolini tomou o poder na Itália, Crespi tornou-se adepto fervoroso do fascismo e transferiu grandes somas para a Itália. Mussolini condecorou-o por isso com uma comenda e o rei Vítor Emanuel III concedeu-lhe a patente de conde. Na década de 1930, Crespi ingressou na filial local do partido fascista italiano.
O imigrante italiano G. Puglisi Carbone, por seu turno, começou sua atividade empresarial no Brasil como importador de farinha e de outros produtos alimentares. Em 1900, fundou, juntamente com Francisco Matarazzo, um pequeno banco em São Paulo, que se dedicava, sobretudo, à transferência de salários dos operários italianos para seu país de origem. Em 1906, esse banco transformou-se em filial da Banca Commerciale di Milano, aumentando consideravelmente os fundos de Carbone, que os utilizou para criar suas próprias empresas. Em apenas três anos adquiriu um moinho, uma fábrica de fiação de seda e uma refinaria de açúcar.
Muitos outros empresários-imigrantes percorreram o mesmo caminho no fim do século XIX e princípios do século XX, para passar da categoria de comerciantes-importadores para a de industriais. Os quatro irmãos Jafet chegaram a São Paulo, vindos do Líbano, no período de 1887 a 1893, e criaram uma firma que vendia tecidos importados e confecções. Em 1906, fundaram sua própria fábrica têxtil. O sueco H. Lundgren fundou uma série de empresas têxteis no Nordeste do Brasil. Sotto Maior, grande comerciante importador de origem portuguesa, que se havia estabelecido no Rio de Janeiro ainda em 1865, possuía, no fim do século XIX, meia dúzia de empresas industriais. Os irmãos Klabin, que durante certo tempo comerciaram papel, organizaram uma fábrica própria. Porém, quem fez a carreira mais brilhante foi o imigrante italiano Francisco Matarazzo.
As indústrias Matarazzo
Francisco Matarazzo chegou ao Brasil em 1881. Tinha instrução superior, alguma experiência comercial e o desejo de enriquecer. Estabeleceu-se inicialmente em Sorocaba-SP, onde se empenhou no comércio de porcos e de toucinho. Cerca de nove anos depois já havia conseguido acumular um capital de cerca de 4,5 mil libras esterlinas e mudou-se para a capital do estado, onde fundou uma firma comercial especializada na importação de farinha de trigo e de toucinho. Nos dez anos seguintes, isto é, até 1900, aumentou ainda mais as suas propriedades e estabeleceu relações de amizade que o ajudaram, em particular, a obter crédito do British Bank of South America, com a ajuda do qual construiu o primeiro moinho a vapor em São Paulo. Em 1904, Matarazzo fundou uma fábrica têxtil, com o objetivo de satisfazer suas próprias necessidades de tecidos para sacos. Mais tarde construiu uma fábrica de tecidos finos.
A fim de adquirir matérias-primas sem intermediários, Matarazzo criou nas regiões algodoeiras uma rede de empresas de beneficiamento de algodão, o que lhe permitiu, posteriormente, construir um lagar de azeite. Os produtos deste último foram utilizados em mais uma empresa por ele fundada para o fabrico de sabão e de glicerina. A seguir, fundou fábricas de fósforos, de massas, de círios, de conservas, serrarias, uma empresa de caixas de madeira, uma tipografia, assim como fábricas de seda artificial, de ácido sulfúrico, de cerâmica, de porcelana etc. Adquiriu, além disso, vários navios e construiu uma doca própria, assim como uma fábrica de fundição e uma oficina mecânica para consertar os equipamentos das suas numerosas empresas.
Para economizar dinheiro com o seguro de mercadorias, Matarazzo criou seu próprio fundo especial e realizava operações financeiras por intermédio da filial local da Banca di Napoli, da qual era diretor. Mais tarde, Matarazzo adquiriu plantações de cana-de-açúcar, fazendas de café e granjas pecuárias, além de muitos imóveis na cidade de São Paulo. No final da década de 1930, seu nome já era no Brasil símbolo da riqueza e do êxito empresarial. Em 1934, o giro comercial das empresas que lhe pertenciam chegou a 350 milhões de mil-réis, enquanto o rendimento de todo o Estado de São Paulo era igual a 400 milhões de mil-réis. “É fora de dúvida (…) que o conde Matarazzo, financeira e economicamente, é o segundo ‘Estado’ de São Paulo”, lia-se em um jornal brasileiro da época.
O grupo Votorantim
Os fundamentos de outro império industrial, o grupo Votorantim, foram lançados pelo imigrante português António Pereira Ignácio, que começara a carreira de negócios, em 1892, como retalheiro. Depois, tendo assegurado o apoio de dois grandes comerciantes-importadores do Rio de Janeiro, fundou uma pequena empresa de beneficiamento de algodão em São Paulo. Em 1899, Ignácio deslocou-se aos EUA, a fim de estudar o beneficiamento de algodão e, ao voltar, em 1902, ampliou ainda mais sua rede de empresas. Os lucros obtidos permitiram-lhe adquirir a fábrica de cimento construída por Rodovalho em 1897, uma companhia telefônica e uma pequena central elétrica.
Durante a Primeira Guerra Mundial, a indústria paulista de algodão deparou com uma falta aguda de matérias-primas. Pereira Ignácio aproveitou-se disso para agravá-la artificialmente, sendo auxiliado nessa artimanha por dois outros corretores de algodão — um dos quais era o imigrante italiano Nicolau Scarpa —, e depois adquiriu quatro algodoarias que se encontravam em apuros financeiros. Duas dessas empresas pertenciam aos herdeiros do barão de Piracicaba e de Barros, que as haviam construído ainda na década de 1870.
Em 1917, Pereira Ignácio e Scarpa aproveitaram-se da falência do Banco União para adquirir em leilão a empresa têxtil Votorantim, segunda maior empresa do ramo em São Paulo, pagando apenas a oitava parte de seu valor real. É interessante assinalar que, até 1917, os novos ricos imigrantes conseguiram estabelecer controle sobre oito das 15 algodoarias construídas no Estado de São Paulo por pessoas oriundas da elite latifundiária tradicional. Entre elas, encontravam-se sete das nove empresas que haviam sido fundadas antes de 1900. Os próprios imigrantes, assim como proprietários de firmas comerciais especializadas na importação, construíram em São Paulo, até 1917, 19 algodoarias, 15 delas no período de 1900 a 191710. Ainda em 1917, Pereira Ignácio adquiriu de Scarpa a sua quota-parte na Companhia Votorantim. Como resultado de todos esses negócios, obteve o controle sobre 17% das algodoarias do Estado de São Paulo. Em 1925, o genro de Pereira Ignácio, J. Ermírio de Moraes, tornou-se diretor-gerente da Companhia Votorantim e, depois, o seu único proprietário. Mais tarde, consolidou o mais poderoso grupo empresarial nacional do Brasil e talvez de toda a América Latina.
Outros grandes grupos industriais
No limiar do século XX, os avós de alguns dos maiores capitalistas atuais do extremo sul do Brasil fundaram suas primeiras empresas. Renner, por exemplo, construiu no Rio Grande do Sul o primeiro matadouro no país, em 1894; Eberle abriu uma oficina mecânica em 1896 e Gerdau criou uma pequena oficina de fundição em 1901. Todos eles eram descendentes de colonos alemães.
Foi fundado, no Rio de Janeiro, em 1887, o Moinho Fluminense, a primeira filial da companhia argentino-alemã Bunge y Born. Mais tarde, a Bunge y Born fundou uma empresa moageira em Santos e muitas outras companhias comerciais, industriais, de crédito e de finanças em São Paulo, Rio de Janeiro e no Nordeste do país. Eram, via de regra, estrangeiras também as primeiras grandes empresas brasileiras de calçados, como a fábrica São Paulo Alpargatas, fundada em 1907 por capital anglo-argentino.
Foi aproximadamente nessa altura que teve início a ampliação dos investimentos estrangeiros diretos na indústria brasileira. Nomeadamente, a companhia americano-canadense de energia elétrica Brazilian Traction, Light and Power, fundada em Toronto (Canadá), abriu em 1899 a sua filial em São Paulo e, em 1905, outra, no Rio de Janeiro. Pouco tempo depois, a Brazilian Traction estabeleceu o controle total sobre a indústria energética desses centros econômicos.
APROFUNDAMENTO DA CRISE DA ECONOMIA TRADICIONAL
De modo geral, até a década de 1930, o desenvolvimento capitalista do país tivera um caráter esporádico, dadas as condições de domínio do latifúndio semifeudal e as formas capitalistas inferiores. O sistema de relações econômicas externas conservava o aspecto colonial. O afluxo de empréstimos e investimentos no início do século XIX contribuíra, sobretudo, para a consolidação da economia tradicional, isto é, pré-capitalista ou capitalista primitiva, e dos grupos sociais ligados àquele sistema.
Tudo isso criou obstáculos ao desenvolvimento das formas superiores do capital industrial. Em particular, o crescimento da indústria capitalista dependia em grande medida dos ramos da economia orientados para a exportação. A razão dessa dependência estava no fato de que, até a década de 1930, a formação da indústria realizava-se, sobretudo, por meio da criação de empresas de transformação primária de matérias-primas destinadas à exportação (refinarias de açúcar, empresas de beneficiamento de algodão, etc.) ou de empresas que produziam mercadorias para a população com baixo nível de rendimentos (empresas têxteis, de calçados, fábricas de cerveja etc.). Já camadas mais abastadas da população satisfaziam suas necessidades, assim como antes, à custa de importações. A procura de mercadorias e de serviços proporcionados pela indústria local era determinada pelo desempenho dos ramos da agricultura que produziam artigos para exportação. Nos anos de aumento da exportação, o total de salários pagos também aumentava, o que automaticamente conduzia à ampliação do mercado para a colocação de produtos industriais. Por outro lado, nas épocas de conjuntura desfavorável nos mercados externos, a procura de mercadorias e de serviços da indústria local diminuía e o ritmo de seu crescimento baixava.
A ausência de apoio por parte do Estado exerceu uma influência muito negativa sobre o desenvolvimento da indústria. A oligarquia latifundiária e o grande capital comercial empenhado na esfera de operações de exportação e importação exerciam o domínio político na Primeira República (1889-1930). Utilizavam os recursos financeiros do Estado e outros meios de intervenção estatal na economia exclusivamente para interesses próprios. Apenas algumas medidas dos governos oligárquicos tiveram certo efeito protecionista para a indústria, embora tivessem sido tomadas visando outros objetivos. Pode-se indicar, como exemplo, a política de desvalorização da moeda nacional no estrangeiro, medida aplicada, por vezes, nos períodos de queda dos preços das mercadorias exportadas. A cotação elevada da moeda estrangeira permitiu manter os rendimentos dos exportadores locais, auferidos em moeda nacional, em nível bastante alto. Isto por sua vez encarecia as mercadorias importadas, elevando, portanto, a capacidade de concorrência dos produtos locais.
A primeira etapa de formação do sistema capitalista no Brasil foi concluída, basicamente, logo no fim da Primeira Guerra Mundial, em particular no Rio de Janeiro e em São Paulo. Já em 1903, no Rio de Janeiro, ocorreram duas greves gerais de operários da indústria têxtil, das quais participaram 25 mil pessoas. Em 1908, foi criada a Confederação Operária Brasileira, cuja fundação deve-se, sobretudo, a elementos anarco-sindicalistas. No período de 1917 a 1920, o jovem proletariado brasileiro realizou uma série de batalhas de classe encarniçadas, incluindo uma série de greves políticas e uma insurreição armada, em novembro de 1918, no Rio de Janeiro. Em 1922 foi fundado o Partido Comunista Brasileiro. Em 1904, os fabricantes têxteis do Rio de Janeiro criaram a primeira associação de empresários industriais do ramo, o chamado Centro Industrial do Brasil, a fim de coordenar suas atividades. Em São Paulo, duas associações análogas de proprietários de fábricas de fiação de lã e de algodão foram criadas em 1919. No entanto, a primeira federação de industriais surgiu no Brasil só em 1928, devido à cisão da federação de comércio de São Paulo (nos anos anteriores, os industriais ingressavam normalmente nas federações comerciais dos estados). Em 1931, uma federação própria de industriais foi criada também no Rio de Janeiro. Pode-se dizer que a burguesia industrial brasileira passou a conscientizar-se como classe só no final da década de 1920 e princípio da década de 1930.
A partir do último quartel do século XIX, houve um importante crescimento das camadas médias da população das cidades, em razão da aceleração da urbanização, da ampliação do aparelho de Estado, da formação do exército profissional moderno, da criação do sistema de educação, dentre outras razões. Alguns representantes dessas camadas, em particular os oficiais do exército, haviam desempenhado um importante papel nos movimentos que conduziram à abolição da escravatura e ao estabelecimento do regime republicano. Na década de 1920, os elementos democráticos pequeno-burgueses, sobretudo os jovens oficiais, organizaram uma série de insurreições armadas contra o governo, o qual exprimia os interesses da oligarquia.
O aprofundamento das crises da economia tradicional e das estruturas políticas herdadas do passado aceleraram o advento da nova etapa de desenvolvimento capitalista do Brasil, inaugurada pela revolução de 1930. Os danos da Grande Depressão, tal como para o resto da economia mundial, assinalaram o fim de uma era para o Oeste paulista. Os preços do café caíram, a expansão das lavouras desacelerou-se e o sistema de colonato mudou, na medida em que os fazendeiros se ajustavam às novas condições econômicas. A imigração já vinha declinando quando a Depressão cortou abruptamente o influxo de trabalhadores do exterior, tornando, assim, mais importante a mão-de-obra nacional. Os cafezais plantados na fronteira, durante o surto de 1885-1896, estavam terminando sua vida produtiva na década de 1920, de modo que a crise externa foi pouco mais do que um golpe final.
No meio século anterior à Grande Depressão, o Oeste paulista tornara-se um lugar diferente. Havia-se formado, na periferia de São Paulo, na década de 1880, uma relação especial e de certa forma singular entre o Brasil e a economia mundial. A sociedade agrária e as estruturas institucionais que a acompanhavam haviam se expandido com o auxílio de recursos virgens do planalto ocidental, durante as décadas posteriores a 1880, alimentadas pela demanda de café na Europa e América do Norte e pelo excesso de trabalhadores na Europa e, mais tarde, no Japão, até o colapso geral da década de 1930.
Os fazendeiros, herdeiros de uma longa tradição, permaneceram dominantes por todo esse período. Suas decisões econômicas, seu governo e sua política ainda afetavam os outros grupos sociais. A fazenda propriamente dita, como instituição econômica e social, era uma continuação de padrões anteriores, conjugando fatores de produção em unidades bastante grandes para tornar os sucessivos deslocamentos na fronteira ocidental atraentes para os capitalistas do café e seus aliados no exterior. Apenas a receita potencial da empresa agrícola em larga escala pôde atrair o investimento inicial e a infra-estrutura de transporte, sem o que a capacidade produtiva da hinterlândia de São Paulo teria permanecido apenas uma promessa. A fazenda, portanto, abriu seu caminho fronteira adentro, ocupou a melhor terra e permaneceu. Persistiu porque serviu aos interesses de fazendeiros individuais, gerando lucros. Sua permanente viabilidade contribuiu para o senso de hegemonia que a elite paulista conservou.
As fazendas pequenas e médias, as “fazendolas”, também eram viáveis, produzindo café para o mercado externo, bem como cereais e gado para os mercados locais e para a subsistência. Em vez de diminuir de importância, à medida que as fazendas se expandiam, as fazendolas cresceram em número e na taxa proporcional dentro da lavoura cafeeira. A emergência final de um estrato importante de fazendas pertencentes a imigrantes foi uma agregação, uma atividade complementar, quenão representou desafio direto às grandes fazendas. Na verdade, os fazendeiros, nas áreas mais antigas, encorajaram a transição para unidades menores como uma maneira de transformar bens fixos, porém em declínio, em capital líquido, que podiam reinvestir na fronteira ou em outros setores econômicos. Esses outros setores — comércio, construção, processamento de alimentos e indústrias leves — cresceram em função da expansão cafeeira, assim como cresceram os centros urbanos, a demanda interna e os mercados locais. Eles foram os antecedentes históricos da estrutura econômica diversificada da São Paulo moderna.
Com a rápida expansão para o oeste e a crescente complexidade da estrutura agrária, foi possível para a velha elite afrouxar o controle, em termos relativos, embora ainda ganhando de modo absoluto. Uma indicação de que o poder político dos fazendeiros não era mais total foi a decisão unilateral do governo do Estado, em 1927, de eliminar os subsídios de transporte — a chave do programa imigratório. Este e outros sinais, sobretudo a crescente influência do setor urbano-industrial da região, assinalam um relativo enfraquecimento do histórico poder dos fazendeiros paulistas, pouco antes da crise internacional.
Dos primórdios do sistema brasileiro de fazendas no século XVI até as vésperas do surto cafeeiro, a despeito de algumas experiências hesitantes, a forma dominante de organização do trabalho havia sido a escravidão. No momento em que aumentou a demanda dos países centrais e foi instalada uma rede de ferrovias que tornou possível a expansão das lavouras, não era mais possível manter a escravatura. Ocorreu um radical rompimento com o passado, quando os paulistas desenvolveram o singular sistema de colonato, seguindo uma receita virtualmente original, e criaram seu programa de imigração. Entre os fazendeiros no cume e os camponeses nativos e ex-escravos no fundo da estrutura social rural, emergiu uma nova categoria social — os trabalhadores imigrantes. Em retrospecto, fica claro que a solução dos fazendeiros de café para suas necessidades de força de trabalho, ao tempo da abolição e nas décadas seguintes, trouxe para São Paulo um imenso influxo de capital humano. Como força de trabalho agrícola e depois industrial, co-produtores para mercados locais e para exportação, como consumidores de bens e serviços, como pais de novas gerações de brasileiros, os imigrantes forneceram a base social para a ascensão de São Paulo à preeminência entre as regiões do Brasil.
A IMPORTÂNCIA DOS INVESTIMENTOS ESTRANGEIROS
Após a Primeira Guerra Mundial, intensificou-se o afluxo de investimentos estrangeiros ao Brasil. Os investimentos diretos provenientes da Inglaterra elevaram-se, em 1923, a 110 milhões de libras esterlinas (aproximadamente 500 milhões de dólares) e os dos Estados Unidos, em 1929, atingiram 193 milhões de dólares. De modo geral, no período de 1920 a 1931, o afluxo anual médio de capitais estrangeiros no Brasil variava entre 65 e 75 milhões de dólares, grande parte dos quais dirigia-se à indústria. Em 1920, a companhia americana Ford abriu no país a sua primeira filial para montagem de alguns tipos de automóveis. A companhia inglesa British-American Tobacco começou a construir, em 1923, a maior fábrica de cigarros da América Latina. Fundaram suas filiais no país as companhias americanas Armour (matadouro), Park Davis & Co. (produtos farmacêuticos), International Harvester (maquinaria agrícola), Goodrich (produção de pneus), dentre outras. Paralelamente, aumentou muito a capacidade instalada das filiais das companhias de energia elétrica Light and Power e American Foreign Power. Em 1921, com capital belga, começou a ser construída, em Sabará-MG, a primeira fábrica metalúrgica moderna do país; em 1924, a companhia holandesa Philips abriu sua primeira filial no Brasil. No período de 1925 a 1929, além de empréstimos contraídos pelo governo, ingressaram no país vultosos capitais procedentes de outras fontes.
FMI — FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL
Organização financeira internacional, criada em 1944, na Conferência Internacional de Bretton Woods (Estados Unidos), com o objetivo de construir uma estrutura de cooperação econômica que evitasse a repetição de políticas econômicas desastrosas, as quais contribuíram para a Grande Depressão dos anos 1930 (www.imf.org). Rapidamente, este objetivo que exigia políticas de apoio à demanda efetiva foi substituído pela preocupação com as pressões inflacionárias. É uma agência especializada da ONU, com sede em Washington, e faz parte do sistema financeiro internacional, ao lado do Bird (Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento), Banco Mundial e do BIS (Banco de Compensações Internacionais).
O FMI foi criado com a finalidade de promover a cooperação monetária dos países capitalistas, coordenar as paridades cambiais e levantar fundos entre os diversos países-membros para auxiliar os que encontram dificuldades nos pagamentos internacionais. Embora a associação a esse organismo seja voluntária, ela acaba se impondo à maioria dos países, pois o sistema financeiro internacional, incluindo os bancos privados, utiliza as avaliações e as recomendações do FMI para a concessão de créditos.
Desde o seu início, o FMI esteve voltado ao socorro e à assistência aos países com desequilíbrios em suas balanças comerciais. Com o passar dos anos, os desequilíbrios passaram a ter um forte peso financeiro, pressionando a conta de serviços. Nessa nova situação, as orientações técnicas desse organismo têm sido cada vez mais questionadas, na medida em que suas propostas de políticas econômicas, basicamente apoiadas na visão monetarista, provocam recessões e conflitos sociais nos países sob sua assistência.
Os questionamentos sobre o papel e os limites da atuação do FMI também aumentaram muito nos últimos anos devido à instabilidade financeira mundial provocada pela desregulamentação bancária e o intenso incremento dos fluxos financeiros internacionais. Nos anos 1990, foi bastante questionado o papel desempenhado pelo FMI durante as crises asiáticas e argentina. Neste último caso, a instituição manteve o apoio à paridade cambial e à Lei de Conversibilidade, mesmo quando já estava evidente a impossibilidade de sustentar tal situação. O caso brasileiro, com vários acordos a partir da crise cambial 1998/9, é apontado como um dos poucos exemplos de sucesso das políticas econômicas recomendadas pelo FMI. Evidentemente, a qualificação de sucesso neste caso também é bastante questionável considerando-se que as taxas de crescimento do país se mantiveram em patamares muito distantes das suas taxas históricas e mais distantes, ainda, das taxas de crescimento alcançadas pelos países não – desenvolvidos mais dinâmicos como China e Índia.
Atualmente, 184 países são associados ao Fundo, que é controlado efetivamente pelos países mais ricos — eles detêm maior número de cotas, ou seja, a maior parte do capital da instituição. Tradicionalmente, o diretor-gerente e principal executivo da instituição é um europeu, que deve receber o aval dos EUA, enquanto o vice-diretor gerente é um norte-americano. O atual diretorgerente é o espanhol Rodrigo de Rato y Figaredo e o vice-diretor-gerente é Anne O. Krueger, indicada pelo presidente George W. Bush.
Anne Krueger nos últimos anos passou a defender a proposta de um mecanismo semelhante à concordata ou falência de países. Este mecanismo aumentaria os riscos dos bancos privados fornecedores de créditos a países emergentes, tornando-os mais seletivos na concessão de créditos e diminuindo a necessidade de intervenções, quer do Federal Reserve (Banco Central norte-americano), quer do próprio FMI. Isto introduziria um risco efetivo nestas operações bancárias, diminuindo ou acabando com o chamado ‘risco moral’, o que tornaria estes créditos mais escassos e mais caros. Esta proposta está em linha com a afirmação feita em 2002 pelo Secretário do Tesouro Paul O’Neill para quem “os encanadores e carpinteiros norte-americanos não têm porque ajudar os países e bancos que fazem loucuras”. Ainda segundo O’Neill o dinheiro do FMI termina muitas vezes indo parar na Suíça. Estes posicionamentos refletem as posições políticas mais conservadoras dentro dos Estados Unidos. Preconceitos à parte, o Secretário tem razão: São os empréstimos do FMI que viabilizam ataques especulativos como ocorridos na Argentina ou no Brasil em 1998/9 (NIEMEYER NETO, 2003).
Texto de Antônio Corrêa de Lacerda, João Ildebrando Bocchi, José Márcio Rego, Maria Angélica Borges e Rosa Maria Marques em "Economia Brasileira", Editora Saraiva, São Paulo, 2010, excertos parte 2. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser portado por Leopoldo Costa.