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O EMPREENDIMENTO CAFEEIRO E O FAZENDEIRO CAPITALISTA.

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Escravos Negros na Lavoura de Café   (Tarsila do Amaral.)
A segunda metade dos anos 1830 e a década de 1840 assistiram a um verdadeiro boom da produção cafeeira no Brasil. Nas palavras de Orlando Valverde, “os anos da década de 30 foram decisivos: nesse período o Brasil tornou-se o primeiro produtor mundial de café; no ano de 1832, o café ocupou o primeiro lugar na pauta das nossas exportações, e já no ano de 1837-38 esse valor relativo do café alcançava 53,2%, isto é, mais do que a soma dos valores de todos os demais produtos exportados”.1 O café se tornava assim a base econômica de um Estado nacional em construção.

Do ponto de vista político, não foi fácil para o jovem Império, após a Independência em 1822, alcançar estabilidade.

Vários grupos sociais e mesmo algumas províncias se opuseram ao governo de D. Pedro I, como o comprova o movimento libertário da Confederação do Equador em 1824. Em 1831, considerando a situação insustentável, D. Pedro I renunciou em favor de seu filho Pedro, de apenas cinco anos de idade. A abdicação não bastou, contudo, para apaziguar o quadro político conturbado, e o risco de fragmentação do território nacional esteve presente nos nove anos de regência (1831-1840), quando novas rebeliões ocorreram nas províncias. Em 1840, a maioridade de D. Pedro II foi antecipada, e em 1847, numa tentativa de pacificar o jogo político entre conservadores e liberais, instituiu-se o parlamentarismo. O Conselho de Ministros era chefiado pelo primeiro-ministro, indicado pelo partido que obtivesse o maior número de representantes na Câmara. O Imperador, por sua vez, podia dissolver a Câmara e convocar novas eleições, exercendo assim o Poder Moderador e desempenhando papel fundamental no equilíbrio de forças. Pouco a pouco a ex-colônia portuguesa foi conquistando uma situação política mais estável. Uma elite composta majoritariamente de bacharéis, o que lhe fornecia uma identidade ideológica comum, contribuiria para o estabelecimento de uma ordem imperial caracterizada pela centralização administrativa.2

A expansão cafeeira, base de sustentação do Império, deveu-se, internamente, às excelentes condições geográficas do vale do Paraíba, onde a cultura foi introduzida, à abundância de terras virgens e de mão-de-obra, e à facilidade de escoamento da produção pelo porto do Rio de Janeiro. Externamente, a ampliação dos mercados consumidores, incluindo os Estados Unidos, o declínio dos produtores concorrentes e a elevação dos preços no segundo quartel do século XIX foram incentivos importantes. Apesar de algumas variações ao longo do século XIX, a análise dos preços do café entre 1840 e 1890 mostra uma tendência claramente ascendente.3

Na montagem de uma fazenda de café, unidade produtiva dessa economia, a preocupação inicial era erguer uma casa rústica e garantir a provisão de água potável e de gêneros alimentícios básicos, como milho e feijão. Se não é verdade que as fazendas eram unidades totalmente auto-suficientes, não se pode negar que, principalmente nas primeiras décadas do século XIX, no momento de sua instalação, havia uma preocupação de resguardar ao máximo sua independência em relação a produtos externos. Isso se explica seja pela dificuldade de transporte, seja pelo alto preço desses produtos, que inviabilizavam o consumo de supérfluos, já que os capitais deveriam ser investidos em terras e escravos que iriam garantir o rendimento da fazenda. Assim é que o Barão de Pati do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, ao escrever sua “Memória sobre a fundação e custeio de uma fazenda na Província do Rio de Janeiro”, em 1847, recomendava que a fazenda tivesse uma produção de gêneros alimentícios suficiente para a sua manutenção: “Um fazendeiro cuidadoso tem sempre um esplêndido jantar, que lhe custa em dinheiro apenas vinho e sal [pois] seu estabelecimento fornece o resto em grande profusão”.4

As fazendas de café em geral possuíam uma organização semelhante, uma vez que tinham um mesmo objetivo e se encontravam nas mesmas condições geográficas. Um modelo bastante comum de organização da fazenda de café do século XIX eram os “quadrados ou retângulos funcionais” em torno dos quais se erigiam as construções fundamentais. A sede da fazenda, ou seja, a “casa de vivenda”, como se chamava, era providencialmente construída no sopé de um morro ou nas proximidades de uma fonte de água. Ao seu redor ficavam as senzalas, os armazéns (tulhas ou paióis), um monjolo (com pilões para milho ou para descascar os grãos de café), as estrebarias e o chiqueiro. No centro desse quadrado ou retângulo funcional era em geral construído o terreiro para a secagem do café.5

De início, as construções eram rústicas, e mesmo a casa de vivenda possuía poucos elementos decorativos. Com o passar do tempo, e o enriquecimento dos fazendeiros, as sedes das fazendas foram sendo modificadas e passaram a dar lugar a construções imponentes, em geral monumentos de estilo neoclássico. Mas é importante notar que nem todos os fazendeiros obtiveram o mesmo êxito, e que a conjuntura de meados do século só fez intensificar as diferenças entre eles.

Nos anos que antecederam a extinção do tráfico internacional de escravos, ocorrida em 1850, os boatos sobre a iminência da medida fizeram com que o preço dos cativos sofresse uma inflação muito grande. Em 1848 o preço de um escravo era de aproximadamente 630$000 (630 mil réis), mas às vésperas da extinção, em 1850, chegaria a 1:350$000 (1 conto e 350 mil réis). Para os pequenos proprietários, o aumento do custo da mão-de-obra foi uma calamidade que em muitos casos levou ao endividamento. No entanto, para os fazendeiros que no período de baixa dos preços haviam investido na compra de escravos africanos, mesmo que para isso tivessem contraído empréstimos, a nova conjuntura, que já os alcançou com os pés de café produzindo e com suas fazendas abastecidas de braços, só traria vantagens.

Embora os gastos com a mão-de-obra aumentassem depois de 1850, os lucros auferidos com a venda do café para um mercado externo em plena expansão fizeram com que a empresa cafeeira pudesse continuar a se reproduzir sem maiores problemas. Além disso, o tráfico interno de escravos de regiões menos dinâmicas, como o Nordeste, iria suprir a demanda de mão-de-obra do vale do Paraíba. De acordo com Eliana Vinhaes, “a extinção do tráfico intercontinental não criou impacto sobre o município de Cantagalo, uma vez que a reposição da força de trabalho se deu com a regularidade que a economia local exigia”.6

Desse modo, as décadas de 1850 e 1860 foram tempos de prosperidade, enquanto a de 1870 foi de verdadeiro apogeu para a economia do município, quando foi alcançada uma média de 6.172 pés de café plantados por escravo produtivo. Na mesma época, a média na região de Santos era de 3 mil pés por escravo, e em Capivari, de apenas 2 mil. A produtividade dos antigos Sertões do Macacu era tal que em 1871 o próprio presidente da província do Rio de Janeiro exaltava a importância da Estrada de Ferro de Cantagalo como via de escoamento da produção agrícola da região.7

Evidentemente, toda essa expansão implicou a aplicação de um maior montante de capital de forma a cobrir os gastos com a compra de mais escravos, com a ampliação das plantações e com o custeio das antigas lavouras. Se até então os comissários de café eram responsáveis apenas pela comercialização do produto, passaram a atuar como banqueiros de seus contratantes, colocando-os em geral sob sua dependência financeira e usufruindo a maior parte de seus lucros.8

Mas houve também fazendeiros que escaparam a esse jugo, tornando-se, eles próprios, o que João Fragoso e Ana Maria Rios chamaram de “fazendeiros-capitalistas”. De acordo com esses historiadores, o fazendeiro-capitalista era aquele que “não vivia exclusivamente de suas atividades agrícolas”.9 Isto é, era o grande fazendeiro que procurava diversificar seus investimentos, aplicando seus lucros não apenas em terras e escravos. Alguns iriam investir em imóveis urbanos, outros no comércio ou em apólices, outros ainda iriam emprestar dinheiro a juros. Seriam exemplos clássicos desse tipo de fazendeiros o Comendador Manuel de Aguiar Valim e o Barão de Nova Friburgo.

Os fazendeiros-capitalistas formavam uma elite empresarial que respondeu de forma diferente de seus pares à crise do regime escravista, cada vez mais intensa à medida que o século avançava. Depois do fim do tráfico, com a promulgação da Lei do Ventre Livre em 1871 e o crescimento do movimento abolicionista, um dos pilares da empresa cafeeira, representado pelo trabalho escravo, foi sendo pouco a pouco demolido. Em lugar de investir na reprodução do sistema, ou seja, na compra de mais escravos e terras, ainda que daí adviesse boa parte de sua riqueza e que a margem de lucro dos outros investimentos fosse menor, esses fazendeiros “modernos” preferiram abrir novos caminhos.

De acordo com João Fragoso e Ana Maria Rios, o que estava em jogo nessa economia não era a reprodução pura e simples do lucro, e sim a reprodução de uma sociedade extremamente hierarquizada, cuja lógica se baseava num valor extra-econômico: o ideal aristocrático. Ou seja, em última instância, o objetivo não era expandir um empreendimento produtivo, mas sobretudo perpetuar as diferenças entre senhores e escravos ou libertos, e mesmo entre os próprios senhores, de modo a garantir a existência de uma pequena e fechada elite agrária.10

Não foi possível saber o que produziu a antiga sesmaria de Santa Maria do Rio Grande entre 1793 e 1820, nos tempos de João Baptista Rodrigues Franco e de Isabel Maria da Silva. Mas sabe-se que, quando sua filha Basília e o marido Antônio Rodrigues de Moraes lá iniciaram a vida de casados, a vila vizinha de Cantagalo, ainda pequena, já estava em expansão. A população livre na década de 1820 era de aproximadamente 1.800 pessoas, enquanto o número de escravos chegava a 2.700. Havia na vila três lojas de fazenda, mais de uma dezena de tabernas, uma estalagem e 28 engenhos para a produção de açúcar. Além disso, Cantagalo já produzia aproximadamente 100 mil arrobas de café (1 arroba = 15 quilos).11

Nos anos que se seguiram a seu casamento, Antônio prosperou de forma significativa. É difícil saber se já possuía algum capital acumulado no comércio ou se o casamento com Basília foi o ponto de partida de seu enriquecimento. De toda forma, seu inventário, datado de 13 de agosto de 1833, cerca de 13 anos após casamento, revela um estado de prosperidade já conquistado. Embora não se saiba como isso aconteceu, já que Basília tinha irmãos com os quais deveria dividir a herança paterna, na época Antônio já era o único proprietário da Santa Maria do Rio Grande e havia feito muitos investimentos nas atividades rurais. O inventário deixa clara a importância que o café já assumia na região. Encontra-se no documento o registro de uma sociedade constituída em 1826 entre o casal Moraes e Antônio Clemente Pinto, futuro Barão de Nova Friburgo, fornecedor de mão-de-obra escrava para as lavouras.12

A dívida de Antônio Rodrigues de Moraes com o sócio, de 5:760$061 (5 contos, 760 mil e 61 réis), era pequena em comparação com o seu monte-mor, que chegava a 65:000$000 (65 contos de réis).

O que o inventário de Antônio permite ver é que em 1833 ele e Basília possuíam não apenas as terras da antiga sesmaria dos Rodrigues Franco, mas uma fazenda produtiva, avaliada em quase 61:000$000 (61 contos de réis). Essa avaliação cobria, além da terra, os bens nela existentes: uma casa de vivenda de madeira roliça e telha; uma casa que serve de senzala; uma casa de guardar café e telha; um moinho; três monjolos; 5.568 alqueires (1 alqueire = 13,5 litros) de café seco; 1.800 alqueires de milho; 70 alqueires de feijão; 80 alqueires de arroz; um cafezal com 90 mil pés produtivos; um cafezal com 8 mil pés de um ano; terreiros cercados de braúna, horta, pasto e laranjeiras; pasto para engordar porcos; roça com 80 palmos (1 palmo = 0,22 metros); uma casa para porcos de madeira roliça; animais; muitos instrumentos agrícolas, como machados e foices, novas e velhas, canoa, serras etc.; 50 escravos; utensílios domésticos. Os itens mais valiosos, correspondentes a cerca de 21:000$000 (21 contos de réis) cada um, eram o cafezal “com pés já dando” e os 50 escravos. Além da fazenda Santa Maria do Rio Grande, o inventário incluía a fazenda Macabu e seus bens, avaliados em pouco mais de 4:000$000 (4 contos de réis).

Tais valores incluíam o casal entre os altos estratos do mundo rural.13 No entanto, no que se refere aos objetos pessoais, móveis e utensílios domésticos, o espólio de Antônio era bastante reduzido. Percebe-se que, apesar da expansão econômica, seu estilo de vida ainda era bastante rústico. Possuía ele um armário; uma mesa grande e ordinária; dois bancos muito ordinários; um selim usado; dois baús pequenos; quatro panelas de ferro fundido; três caldeirões de ferro batido; três bandejas usadas; 18 talheres de ferro; um forno de cobre; uma espingarda de dois canos; um jogo de pistolas velho; um boné militar; uma sobrecasaca de pano azul fino em bom uso; uma sobrecasaca de sarja preta; um par de calças de pano azul; um lenço de seda; cinco lenços de algibeira; cinco pares de calças de brim; um colete preto de sarja; duas jaquetas de riscado; um par de esporas de prata; 12 lençóis de Bretanha; 13 guardanapos; um estojo de seis navalhas.

A minúcia com que são detalhados os bens de uso pessoal e os utensílios domésticos demonstra sua raridade nas regiões recém-ocupadas pelos fazendeiros de café, já apontada pelo historiador Stanley Stein.14 É nesse contexto que o inventário de Antônio deve ser entendido, mas também é possível constatar que, mesmo entre os fazendeiros da região, seu padrão de consumo era um tanto restrito. Para melhor avaliá-lo, é interessante a comparação com o de outro fazendeiro de café de Cantagalo, Domingos José das Neves, e de sua mulher Maria Isabel da Silva, irmã de Basília.15 O casal legou a seus herdeiros um monte-mor de aproximadamente 15:000$000 (15 contos de réis), dos quais mais de 7:000$000 (7 contos de réis) estavam comprometidos com dívidas, o que mostra que a situação da família não era de prosperidade. No entanto, entre os objetos listados no inventário nota-se maior quantidade de peças de vestuário e de roupas de cama, o que denota um padrão de vida mais refinado. Pertenciam a Domingos José 12 lençóis de alcobaça; 12 lençóis de seda; 11 lençóis americanos; seis pares de meias de algodão; 11 coletes de fustão; oito jaquetas; 11 pares de calças; seis pares de ceroulas; dois lenços de seda de gravata. Pertenciam a Maria Isabel um chapéu-do-chile; um véu verde; uma mantilha roxa; uma dita preta velha; uma dita branca; um xale de seda roxo; uma mantilha de seda sarjada roxa velha; três vestidos de chita de casa roxos; dois ditos de chita; um vestido de pano verde de montar; cinco pares de meias; quatro lenços brancos; uma medalha de ouro de mãozinha com duas estrelas; uma dita de ouro cobrado e duas pedras amarelas; um par de brincos de ouro; um cordão de ouro; um cordão de nove palmos de ouro; uma faquinha de costura de prata; uma garrafa de cristal para água.

No início de sua vida com Basília, para saldar a dívida que Antônio Rodrigues de Moraes tinha com Antônio Clemente Pinto, João Antônio tomou uma atitude no mínimo ousada. Ele e Basília cederam ao credor metade do que a família possuía, ou seja, das fazendas Santa Maria do Rio Grande e Macabu e seus bens, e iniciaram uma nova sociedade. Nela, de acordo com escritura datada de 1836,16 Antônio Clemente Pinto e sua mulher entraram com a metade do capital, representado por “31 escravos, 9$000 (9 mil réis) de café, metade da fazenda do Rio Grande (de todos os prédios, gado vacum, cavalar e porcadas) e metade dos porcos, gado vacum e cavalar que existem em Macabu”, o que correspondia a um valor monetário de 32:340$915 (32 contos, 340 mil e 915 réis), enquanto João Antônio e Basília entraram com 27 escravos (15 dos quais pertenciam aos filhos de Basília), 49$000 (49 mil réis) de café, a metade da fazenda do Rio Grande (com prédios, gado etc.) e a metade dos bens de Macabu, perfazendo igualmente 32:340$915 (32 contos, 340 mil e 915 réis).

Ainda segundo a escritura, foi estabelecido que João Antônio seria o responsável pela administração dos negócios, não podendo trabalhar em nenhum outro, e ficaria obrigado a residir na fazenda Santa Maria do Rio Grande. Pelo serviço de administração, receberia 600$000 (600 mil réis) por ano, além de sua família ser “sustentada na fazenda à custa da sociedade”. De acordo com os termos do contrato, “depois de ter remetido todo o café daquele ano, os sócios farão as contas e cada um poderá dispor das partes que lhes pertencem; os lucros e prejuízos serão divididos em partes iguais”.

Desde cedo, portanto, João Antônio parece ter adotado uma estratégia diferente da do irmão. Em vez de requisitar novos empréstimos a Antônio Clemente Pinto, preferiu envolvê-lo numa sociedade. Com isso, livrou-se das dívidas e conquistou autonomia frente a seu financiador. Com o passar dos anos, não só recuperaria a posse integral das fazendas Santa Maria do Rio Grande e Macabu, como adquiriria muitas outras.

De 1835, quando assumiu a direção dos negócios da família, até 1872, quando, juntamente com Basília, fez em vida a partilha de 2/3 dos bens do casal, João Antônio acumulou grande capital. Dois documentos mostram sua impressionante ascensão. Um deles é a Partilha e inventário do Barão e da Baronesa das Duas Barras, datado de Santa Maria Madalena, 1872,17 e o outro é o opúsculo já citado, Biografia do Barão das Duas Barras por um seu amigo Dr. M. C. e testamento do Barão e Baronesa das Duas Barras, que descreve os testamentos de ambos, relativos ao terço restante de seus bens, lavrados um ano após a partilha, em 1873. Comparando-se o monte-mor do inventário de Antônio Rodrigues de Moraes em 1833 com o total de bens de João Antônio e Basília em 1872, verifica-se que em pouco menos de 40 anos a fortuna do casal tornou-se 70 vezes maior – ou seja, os cerca de 65:000$000 (65 contos de réis) de 1833 transformaram-se na enorme fortuna de mais de 4.000:000$000 (4.000 contos de réis), em números exatos, 4.359:769$164 (4.359 contos, 769 mil e 164 réis). Para os padrões da época, essa era uma quantia de fato espetacular, quase o dobro do valor do inventário datado de 1878 do rico Comendador Valim de São Paulo (2.847 contos, 169 mil, 362 réis), mencionado pelo historiador João Fragoso.18

A documentação relativa aos bens dos Barões das Duas Barras em 1872/1973 contém várias informações interessantes. Indica, por exemplo, que apenas cerca de 1/3 de sua fortuna, ou seja, 1.563:729$130 (1.563 contos, 729 mil e 130 réis), correspondia a terras, escravos e pés de café. No tocante a terras, o inventário de Antônio, em 1833, mencionava as fazendas Santa Maria do Rio Grande e Macabu. João Antônio as manteve, mas ao longo do tempo desbravou ou adquiriu outras 20, constituindo o que seu descendente Roberto Grey chamou de “galáxia de fazendas”: Barra, Bonança, Boa Esperança, Canteiro, Coqueiro, Córrego Alto, Engenho da Serra, Engenho Velho, Freijão, Glória, Grama, Monte Café, Neves, Olaria, Paraíso, Ribeirão Dourado, Rio São João (esta em Minas Gerais), Sant’Alda, São Lourenço e Sobrado.

No tocante a escravos, o inventário de Antônio mencionava a posse de 50; o testamento de João Antônio, em 1873, deixava pouco mais que isso, ou seja, 56 escravos, alforriados. Não é possível saber, pela leitura do inventário do Barão, o número exato de escravos que possuiu, já que antes da partilha dos bens, ao serem dissolvidas as sociedades de que participava, parte de seus escravos foi distribuída entre seus sócios, mas num cálculo aproximativo é possível supor que cerca de mil escravos trabalhassem nas suas 22 fazendas.

Outro dado significativo é o número de pés de café que João Antônio deixou a seus escravos. Os 50 mil pés a eles legados em testamento equivaliam a mais da metade do total registrado em 1833, de 98 mil pés. Mas aqueles 50 mil cafezeiros deviam ser um número ínfimo se comparados ao total, tanto que puderam ser doados a “seus escravos libertos [...] que desfrutarão enquanto viverem, e por morte dos mesmos tudo ficará pertencendo a seus legítimos herdeiros”.19

É certo que a fortuna de João Antônio foi fruto de seus cafezais. Porém, tendo em vista suas práticas econômicas, sobretudo na segunda metade do século XIX, é possível identificar em seu perfil traços dos fazendeiros-capitalistas definidos por João Fragoso e Ana Maria Rios. Embora não se tenha envolvido no processo de comercialização do café, como muitos outros cafeicultores da época, mantendo-se ligado às firmas de Clemente Pinto e de Feliciano Henriques para a venda de sua produção, João Antônio, após libertar-se da dívida contraída pelo irmão, iria tornar-se ele próprio credor de outros fazendeiros. Assim é que, segundo o inventário de 1872, os outros 2/3 de sua fortuna estavam distribuídos da seguinte forma: 1.384:617$487 (1.384 contos, 617 mil e 487 réis) representavam dívidas ativas, ou seja, empréstimos a outros fazendeiros ou parentes, e 1.563:729$130 (1.563 contos, 729 mil e 130 réis) eram dinheiro em caixa, depositado em bancos ou nas casas comissárias com as quais costumava negociar.

Uma série de escrituras de confissão de dívida também comprova a atividade usurária de João Antônio, ao menos desde a década de 1860. Em 1866, por exemplo, emprestou 8:000$000 (8 contos de réis) a José Joaquim de Oliveira Dias e sua mulher, Luísa de Souza Oliveira Dias, fazendeiros de Cantagalo.20 Cinco anos depois, o montante da dívida havia quase dobrado, e o casal hipotecou uma fazenda denominada Socorro, em Cantagalo, com quase 100 mil pés de café de várias idades, benfeitorias e escravos, e um sítio, chamado do Moinho, na vila de Nova Friburgo. Na escritura de confissão de dívida feita em 18 de dezembro de 1871 por José Joaquim e sua mulher, e entregue ao Barão das Duas Barras na fazenda Santa Maria do Rio Grande, pode-se ler o seguinte: “Foi dito que se constituíam devedores da quantia de 8:000$000 por escritura pública, de 8 de janeiro de 1866, competentemente registrada, vencendo o prêmio de um por cento ao mês acumulado, anualmente, e que concertando suas contas com o mesmo seu credor o Exmo. Barão das Duas Barras as quais acham conforme e exatas, por elas verificaram dever a quantia de 15:686$576 (15 contos, 686 mil e 576 réis) de principal e prêmios vencidos até esta data”.

Em várias outras ocasiões foram detectadas práticas semelhantes. D. Catarina Rosa de Macedo, fazendeira viúva, também se endividou na década de 1860. Em 1867, recorreu a João Antônio para obter a quantia de 21:716$072 (21 contos, 716 mil e 72 réis). Em 1870, seu saldo devedor chegava a pouco mais de 30:000$000 (30 contos de réis).21 Esses exemplos demonstram não só a atuação do Barão como emprestador de dinheiro a juros, mas a própria lucratividade dessa atividade.

Outro exemplo da atuação de João Antônio como fazendeiro-capitalista encontra-se na documentação da firma Moraes & Sobrinho. Trata-se de uma sociedade formada em 1849 por João Antônio, Basília, José Antônio – filho do primeiro casamento de Basília – e a mulher deste, Leopoldina. A firma, cuja sede seria a fazenda das Neves, comprada quatro anos antes por João Antônio e José Antônio, possuía um capital total de 24:000$000 (24 contos de réis), constituído em partes iguais pelos dois casais.22 Quando da dissolução amigável da sociedade, por conta da partilha de bens de João
Antônio e Basília em 1872, constata-se que apenas em dívidas ativas a Moraes & Sobrinho possuía mais de 133:000$000 (133 contos de réis), ou seja, quase seis vezes o capital inicial.

Um exemplo de sua atuação como emprestadora foi o empréstimo de 100:000$000 (100 contos de réis) concedido em 1869 ao Conselheiro João de Almeida Pereira Castro e sua mulher, tendo como garantia a hipoteca de uma fazenda em Campos. O saldo líquido dividido entre os sócios, no momento da dissolução, chegava à espantosa quantia de 1.093:874$720 (1.093 contos, 874 mil réis e 720 réis). Passados 24 anos, a sociedade estava longe de ser um pequeno negócio entre parentes. Era, para a época, uma grande empresa agrícola e financeira.

A escritura de dissolução da Moraes & Sobrinho, datada de 16 de janeiro de 1873, contém informações precisas sobre o patrimônio da sociedade. Na época a empresa possuía: 105:000$000 (105 contos de réis) em bens de raiz e benfeitorias; 33:000$000 (33 contos de réis) em café em coco; 1:368$200 (1 conto, 368 mil e 200 réis) em bens móveis e utensílios; 7:800$000 (7 contos e 800 mil réis) em animais (gado e tropas); 178:200$000 (178 contos e 200 mil réis) correspondentes a 163 escravos; 133:280$000 (133 contos e 280 mil réis) em dívidas ativas; 176:321$202 (176 contos, 321 mil e 202 réis) em dinheiro na Casa Friburgo & Filhos; 300:105$230 (300 contos, 105 mil e 230 réis) na casa J. Henriques & Macedo Sobrinho; 165:353$316 (165 contos, 353 mil e 316 réis) em dinheiro em caixa. Ao ser dividido esse patrimônio, José Antônio de Moraes e Leopoldina ficaram com os bens de raiz, escravos, utensílios, animais e dinheiro em caixa completando o valor da meação, enquanto o Barão e a Baronesa das Duas Barras receberam suas partes em dinheiro depositado nas casas financeiras mencionadas.

Se a diversificação de empreendimentos e o investimento no mercado financeiro caracterizaram muitos outros fazendeiros-capitalistas, que a partir da década de 1860 perceberam o fim próximo da escravidão e se preparam para enfrentar o baque que a falta de mão-de-obra traria para suas lavouras, João Antônio parece ter pertencido a um grupo especial. O fato de ter deixado escravos libertos e de lhes ter legado pés de café e terras – “a quarta parte de uma sesmaria” – em sua fazenda Santa Maria do Rio Grande parece indicar que, ao contrário de outros fazendeiros, acreditava na possibilidade de manter os ex-escravos em suas fazendas após a Abolição, como trabalhadores rurais. Certamente veio dessa crença, transmitida aos filhos, a transição pacífica do trabalho escravo para o trabalho livre nas antigas terras do Barão, e também um certo “orgulho” presente na memória familiar quando hoje se diz que, nas fazendas dos Moraes, os escravos não foram embora quando veio a libertação.

A partilha de bens de João Antônio e Basília teve ainda outros aspectos curiosos. Como já foi dito, João Antônio decidiu dividir em vida 2/3 de seu patrimônio e de sua mulher entre seus filhos e enteados, ficando o terço restante, correspondente a 1.453:256$368 (1.453 contos, 256 mil e 368 réis), reservado para a manutenção do casal enquanto vivesse. O montante a ser partilhado, 2.906:512$776 (2.906 contos, 512 mil e 776 réis), foi por sua vez dividido em duas partes iguais entre o Barão e a Baronesa, e cada uma das partes foi redividida pelo total de filhos de cada um. Assim, a parte de João Antônio, equivalente a 1.453:256$368 (1.453 contos, 256 mil e 368 réis), foi dividida entre seus quatro filhos, Felizarda, Joaquim, Elias e Amélia, recebendo cada um 363:314$092 (363 contos, 314 mil e 92 réis), enquanto a parte de Basília foi dividida por nove, ou seja, por esses quatro e mais os cinco filhos do primeiro casamento, José Antônio, Antônia Rosa, Basília (II) e Antônio, e mais os herdeiros de Francisco, já falecido, recebendo cada parte 161:472$932 (161 contos, 472 mil e 932 réis). Dessa forma, mesmo de acordo com a lei, a divisão beneficiou os filhos de João Antônio, já que a soma das doações do pai e da mãe a cada um totalizava a fortuna de 524:787$024 (524 contos, 787 mil e 24 réis). Outro detalhe é que a herança recebida por cada uma das partes tinha composição idêntica à do patrimônio do Barão: uma parcela em terras, escravos e café, outra em dívidas ativas e outra em dinheiro. O cuidado em repassar aos herdeiros a mesma distribuição de recursos que adotara deixa claro que, em 1872, João Antônio estava realmente consciente das mudanças na estrutura produtiva do país que se aproximavam, e por isso direcionou o principal de sua fortuna, e da de seus herdeiros, para novas atividades.

Para a parte de seus bens não dividida em vida, em 1873 João Antônio e Basília fizeram cada um seu testamento, determinando de comum acordo o que deveria ser feito após a morte do último cônjuge. Retiradas as doações para escravos, ex-escravos libertos, empregados, parentes pobres e agregados, os bens deveriam ser vendidos, e o montante apurado deveria ser reaplicado em títulos da dívida pública a serem partilhados entre os herdeiros. Os títulos que o Império começou a emitir em 1865 para financiar os gastos com a Guerra do Paraguai, “embora menos lucrativos, eram nas condições do mercado financeiro de longe os mais seguros”.23 João Antônio ainda viveu dez anos após ter feito seu testamento, vindo a morrer em 1883. Em 1884 Basília refez o dela, sempre mantendo a orientação do marido. Faleceu naquele mesmo ano, mas seu inventário só seria concluído em 1894. O total apurado com a venda de seus bens chegou a 1.152:000$000 (1.152 contos de réis), que foram divididos entre seus nove filhos. No caso dos filhos já falecidos, Francisco, Antônia e Joaquim, a herança foi subdividida entre os genros, noras e netos.

O testamento de João Antônio, corroborado por Basília, é especialmente interessante por permitir perceber sua noção de família e sua preocupação em construir uma memória familiar. Além de determinar que os bens fossem vendidos e transformados em títulos, evidenciando mais uma vez a consciência do esgotamento do sistema em que fizera fortuna, João Antônio fez questão de introduzir uma cláusula que tornava as apólices inalienáveis por 50 anos. Isso mostra sua preocupação com a preservação do patrimônio familiar e com a sobrevivência de seus descendentes, uma vez que a imobilização lhes garantiria uma renda certa, proveniente de juros, até a terceira geração.

Mas são as determinações de João Antônio relativas à fazenda Santa Maria do Rio Grande as que mais chamam a atenção, por seu aspecto não apenas econômico, mas também simbólico. Origem da acumulação de riqueza da família, residência do casal desde seu casamento, cemitério familiar, espaço onde casamentos, batizados e demais festas familiares sempre se realizaram, a antiga sesmaria de Santa Maria do Rio Grande, requerida em 1793 ao Vice-Rei pelo pai de Basília, João Baptista Rodrigues Franco, deveria constituir um local de abrigo para todos – ex-escravos, empregados, parentes e agregados – que necessitassem de acolhida. Embora a propriedade tenha ficado restrita aos quatro filhos de João Antônio, sendo excluídos os seus enteados, o uso do lugar deveria ser coletivo. Mesmo possuindo muitos herdeiros, a propriedade seria inalienável e indivisível, e assim deveria permanecer, de acordo com o testamento do Barão, e à revelia da legislação vigente, para todo o sempre.

Após a morte de João Antônio e Basília em 1883 e 1884, a fazenda Santa Maria do Rio Grande, como fora determinado, tornou-se propriedade de Felizarda, Elias, Joaquim, Amélia e seus descendentes. Durante 50 anos, ou seja, até 1933, quando morreu Amélia, filha caçula e última descendente direta dos Barões das Duas Barras, permaneceu indivisa e ocupada por todos. Tinha então 17 proprietários, e só nesse momento se pensou em discutir as ordens do Barão.

Como seria, na vida de todo dia, esse homem que, beneficiado sem dúvida por condições familiares e de mercado favoráveis, foi capaz de aproveitá-las com tanto sucesso? A memória familiar, passadas cinco gerações, ressalta seu senso de iniciativa, sua determinação e persistência, sempre canalizadas para a expansão de suas lavouras através da incorporação de novas terras e da compra de novos escravos. Mas como teria sido sua prática de trabalho desde que se casou com Basília e passou a plantar café na fazenda Santa Maria do Rio Grande?

É sabido que, a partir de meados do século XIX, as florestas virgens da província do Rio de Janeiro foram sendo devastadas com uma extraordinária velocidade pelos cafeicultores para dar lugar a plantações que atenderiam a uma demanda internacional em expansão e os transformariam em “barões do café”. O processo de preparação de um novo cafezal começava com a retirada da floresta das madeiras de lei, que em geral eram utilizadas na própria fazenda. Em seguida, lançava-se fogo à mata. Há relatos de viajantes estrangeiros que contam do “barulho ensurdecedor” das queimadas nas florestas.24 Na terra ainda quente e enegrecida, os escravos iniciavam então o trabalho para o plantio dos pés de café. Certamente não foi muito diferente a rotina nas fazendas que João Antônio ia desbravando. Segundo Judith Veiga, seu biografado chegou a receber o apelido de “João Maluco”,
tal era a proporção dos incêndios que provocava para incorporar novas terras às suas plantações.25

E quanto ao interior da sede da Santa Maria do Rio Grande no tempo do Barão e da Baronesa, como seria guarnecido? O inventário de João Antônio e Basília, em 1872, arrola os pertences da casa: 17 cadeiras de jacarandá, duas cadeiras de braço de jacarandá, duas cadeiras de balanço, um sofá, um divã “marroquino”, dois consoles de jacarandá, dois lavatórios de vinhático, dois cabides envernizados, duas camas francesas, uma rede, um espelho grande, uma mesa grande de jacarandá, um tapete e quatro escarradeiras, um lavatório grande com mesa marrom, um lavatório pequeno velho, uma mobília de sala de espera, uma secretária de jacarandá, um armário de vinhático, uma mesa de jacarandá, um lavatório com bacia, jarro e espelho, uma mesa elástica para jantar, 12 cadeiras de jacarandá, um relógio de parede com caixa de vinhático, dois guarda-louças de vinhático, um guarda-louça de vinhático com gavetas, uma talha de barro, uma marquesa de jacarandá, 52 libras de prata em obras, um faqueiro, um aparelho de porcelana, um fogão econômico, um fogão de ferro, além de utensílios de cozinha (tachos, panelas etc.). Quase 20 anos depois, em 1891, o inventário de seu genro Francisco Lopes Martins, marido de Felizarda de Moraes, na parte que se refere à fazenda Santa Maria, mencionaria ainda outras peças: um piano e diversos objetos de decoração como quadros, bustos, veados de louça e castiçais.26 O cenário sem dúvida mudara bastante desde a morte de Antônio Rodrigues de Moraes em 1833, quando, entre os móveis e utensílios arrolados, figuravam bancos “muito ordinários” e talheres de ferro. Os móveis e objetos listados nos inventários do Barão e de Francisco Lopes Martins indicam a existência de maior conforto e sofisticação na vida doméstica.

O enriquecimento não teria trazido, porém, uma mudança substancial nos hábitos de João Antônio e de sua família. Informa o Dr. M.C., ao biografar o amigo Barão, que o início de sua vida teria sido penoso: “perdeu os pais aos três anos de idade e contratou-se com seu irmão Manoel para aprender a ler, pagando-lhe com seus serviços pessoais”. Moço ainda, “paupérrimo”, viera para Cantagalo e aí, “graças à sua força de vontade, ao seu gênio laborioso e ao seu espírito metódico e econômico”, conseguira juntar enorme fortuna. Mas, no íntimo, não mudara:

“Tinha costumes patriarcais mineiros. A sua mesa era mineira, frugal e abundante. Nela apareciam regularmente a canjica, as pipocas, a couve mineira, o caldo de unto, a rapadura. Preferia a tudo o bem estar da família. Visitava de tempos em tempos com sua esposa, ela de liteira e ele a cavalo, as numerosas fazendas dos parentes, que todas tinham já sido igualmente suas. [...] Foi sempre brando para os escravos, que o estimavam e respeitavam. Era curioso ver o Barão das Duas Barras, da sua rede, ouvir e decidir perdendo muito tempo questões mínimas entre seus velhos libertos ou escravos, que ficavam por isso muito lisonjeados e se acomodavam sem mais apelação. Hoje, como sempre, preferia a calça e a camisa de brim mineiro aos finos estofos do estrangeiro. Não gostava do troly, cômodo veículo, hoje muito em uso e que muitos Moraes possuem. Viajava sempre nas suas pacíficas bestas de sela.”27

É claro que uma casa mais confortável foi construída, móveis de jacarandá foram fabricados por carpinteiros portugueses, e alguns objetos de melhor qualidade, como louças, roupas de cama e mesa, foram importados, mas nada muito luxuoso. João Antônio mantevese sempre um homem rural que não se urbanizou, não construiu mansões nas vilas e nas cidades e não ocupou cargos públicos. O Barão nunca mandou fazer um brasão e não chegou a ter louças e cristais com seu monograma. No máximo, teve um aparelho de chá de prata gravado com suas iniciais e fez-se retratar, assim como à Baronesa.

Hoje, os retratos originais estão na fazenda do Ribeirão Dourado. Embora o retrato da Baronesa não seja assinado, presume-se que seja de autoria do mesmo pintor que assina o do Barão. Trata-se do retratista francês Viancin, ativo na Corte e no interior da província fluminense na segunda metade do século XIX. Do original de Viancin foram copiados todos os outros retratos a óleo do Barão que estão nas paredes das fazendas de seus descendentes.28

Em seu testamento, João Antônio pedia para ser sepultado no cemitério da Santa Maria do Rio Grande, e que seu corpo fosse transportado pelos escravos mais velhos. Assim foi feito, e até hoje lá repousam os restos dos Barões das Duas Barras.

Notas

1 Orlando Valverde, A fazenda de café escravocrata (Rio de Janeiro: Ministério da Indústria e Comércio, 1973), p. 6.
2 José Murilo de Carvalho, A construção da ordem: a elite política imperial (Rio de Janeiro: Campus, 1980).
3 Edmar Bacha, Política brasileira do café - uma avaliação centenária, em 150 anos de café (São Paulo: Marcellino Martins & E. Johnston Exportadores Ltda, 1992).
4 Citado por Stanley Stein, Grandeza e decadência do café no vale do Paraíba (São Paulo: Brasiliense, 1961), p. 51.
5 O trabalhoso processo de beneficiamento do café foi narrado de modo ficcional e irônico por um cronista de um jornal de Vassouras da seguinte forma: “Tio Tomaz me colheu. O supervisor olhou desgostoso quando caí para fora da cesta da colheita. Chovia. O sol, então, secou-me. Durante dois dias um rodo imbecil caía pesadamente sobre mim como se quisesse abrir a minha casca cada vez que me revolvia. Finalmente acharam que eu já estava seco e selecionaram-me numa peneira de taquara. Em seguida, para o monjolo. Fui atirado no ventilador de onde saí pronto para ser ensacado (...). Da fazenda para o intermediário, na estação, e em seguida para o Rio.” Memórias de um grão de feijão, O Vassourense, 10/12/1880, citado por Stanley Stein, op. cit. p. 64.
6 Eliana Vinhaes, op. cit., p.110.
7 Idem, ibidem, p. 89.
8 Em trabalho anterior, analiso a ação dos comissários de café ao longo do século XIX e destaco seu papel como elementos responsáveis pela transferência dos principais lucros da cafeicultura para as atividades financeiras urbanas radicadas na Corte. Ver Marieta de Moraes Ferreira, A crise dos comissários de café do Rio de Janeiro (Niterói, UFF, 1977. Dissertação de mestrado).
9 João Luís Ribeiro Fragoso e Ana Maria Lugão Rios, Um empresário brasileiro no oitocentos, em Hebe Maria Mattos Castro e Eduardo Schnoor, Resgate - uma janela para o oitocentos (Rio de Janeiro: Topbooks, 1995), p. 199.
10 “Na verdade, a lógica destes empresários de fins do oitocentos foi a lógica, presente entre as elites desde os tempos da colônia, de que as mudanças 'estruturais' devem se processar de maneira a reiterar a diferenciação excludente.” João Luís Ribeiro Fragoso e Ana Maria Lugão Rios, op. cit., p. 222.
11 Eliana Vinhaes, op. cit., p. 31.
12 O nome de Antônio Clemente Pinto encontra-se na listagem elaborada pelo historiador Manolo Florentino dos comerciantes envolvidos no tráfico negreiro entre 1811 e 1830. Ver Manolo Garcia Florentino, Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), op. cit., p. 283.
18 João Luís Fragoso e Ana Maria Rios, Comendador Aguiar Valim: um empresário brasileiro no oitocentos, em Hebe Maria Mattos Castro e Eduardo Schnoor, op. cit.
21 Escritura de confissão de dívida datada de 27 de junho de 1870. Acervo da fazenda Santo Inácio.
22 Escritura da firma Moraes & Sobrinho, datada de 15 de dezembro de 1849, lavrada na fazenda Santa Maria do Rio Grande. Acervo da fazenda Santo Inácio.
23 João Luís Ribeiro Fragoso e Ana Maria Lugão Rios, op. cit., p. 221.
26 Inventário de Francisco Lopes Martins, datado de 19 de dezembro de 1891. Arquivos do Pró-Memória da Prefeitura de Nova Friburgo.
27 Biografia do Barão das Duas Barras por um seu amigo Dr. M. C. e testamento..., op. cit.
28 Avaliação de Carlos Eduardo de Castro Leal em Marieta de Moraes Ferreira e Carlos Eduardo Leal, op. cit.

Texto de Marieta de Moraes Ferreira em "Histórias de Família: Casamentos, Alianças e Fortunas", Editora FGV, Rio de Janeiro, 2008, excertos pp. 111-129. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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