O dia começava com uma refeição. Nas cidades, o café com pão e manteiga era obrigatório. Em casas abastadas, os tipos de pão eram variados. Para doentes, crianças e velhos, eram servidas papinhas de farinha de mandioca e pirão de leite.
As bananas podiam acompanhar a primeira refeição. Ovos quentes causavam admiração, como mostrou José de Alencar em 'Sonhos d’ouro'“Dona Joaquina fez uma surpresa a seus hóspedes. Havia quatro ovos quentes”. Já havia “aquecedores de ovos”, dona Veridiana Prado tinha um em sua sala de jantar, motivo de orgulho, afinal era considerado coisa cara e 'chic'. Mungunzá, milho cozido com leite de coco, cuscuz de milho, farinha de mandioca com açúcar e rapadura picada, jerimum, beiju e broas de milho era a refeição matutina do sertanejo e do caboclo. Leite? Quase nenhum.
Na segunda metade do século XIX, o café da manhã podia ser servido numa bandeja, no quarto, como o descreve o escritor Aluísio Azevedo no seu 'Casa de pensão''. Entre os ricos, o copinho de licor francês, a Chartreuse, substituía o copinho de cachaça que muitos tomavam no período colonial como fortificante e mata-bicho. Os muito ricos, podiam escolher entre tomar chá, café ou chocolate. A introdução deste último, no Maranhão, multiplicou o uso das chocolateiras presentes em muitíssimos inventários. 0 precioso líquido era ingerido quente e acompanhado de bolo de tapioca, sobretudo aos domingos após a missa. A louça era toda importada: xícaras, bules, manteigueiras e açucareiros vinham, na maior parte das vezes, da Inglaterra, onde já eram produzidos industrialmente. Continuava na moda a decoração à chinesa, na porcelana de fundo azul.
No sul do Império, bebia-se mate. Ora a bombilha passava de boca em boca, despertando nojo de viajantes estrangeiros, ora era oferecida individualmente, numa demonstração de nospitalidade. “A chaleira de água quente está sempre ao fogo e logo que um estranho entre na casa, se lhe oferece o mate”, registrou o francês Saint-Hilaire.
O pão vinha da rua. Assim também outros produtos, como as frutas, os biscoitos e sorvetes. Os padeiros percorriam os bairros com suas carrocinhas de três rodas sobre a qual repousava o cesto de vime recheado om a última fornada. A cobrança do pão era mensal, anotada num caderno. Concorriam pelo maior número de clientes: costumavam se apresentar às donas de casa e oferecer pessoalmente seus préstimos, como descreve Aluísio de Azevedo em 'Casa de pensão'. Também da rua, vinha a carne em pacotes, direto do açougue, que desconhecia a geladeira.
O almoço tinha lugar na parte da manhã, entre nove e dez horas. Quando havia muita gente ao redor da mesa, dependendo do número de cadeiras existentes, uns comiam de pé, outros sentados, como viu o senhoi de engenho Henry Koster, no Nordeste. Em casas burguesas, mucamas ficavam por perto à espera de ordens. Em 1839, Kidder já tinha visto senhoras presidindo a mesa, coisa rara antes dessa época, quando elas comiam no fundo da casa, nunca se achegando aos convidados. Com o aumento de objetos de luxo, as mesas já podiam ser arranjadas com candelabros e vasos de flores. Para jantares de cerimônia poliam-se castiçais e arandelas lavavam-se as vastas mangas de vidro, engomavam-se as toalhas de Flandres, retirava-se a prataria dos armários. Quando havia banquetes, batismos e casamentos, tudo mudava. A música enchia os salões burgueses. A maior autoridade da família fazia brindes em voz alta. Finda a refeição, os homens se levantavam da mesa para fumar charutos, e as mulheres se sentavam ao piano ou cantavam pequenas árias.
Nas casas de comerciantes onde trabalhavam guarda-livros, aprendizes ou caixeiros, chamados marçanos, punham-se duas mesas à hora do almoço: uma, para o dono da casa e sua família; outra, para os empregados. O ritmo do trabalho marcava os dias e o horário das refeições. “Às seis horas da manhã já estava de pé ao balcão da botica [...] às nove horas subia para almoçar e mal terminado o almoço, voltava ao trabalho”, narra Azevedo em 'Casa de pensão'.
O único barulho era o da mastigação dos alimentos. Comia-se rapidamente. Era considerado de mau gosto interromper qualquer refeição pari receber visitas. Na segunda metade do século, a ceia se tornou um hábito elegante. Mais uma vez é Aluísio Azevedo quem conta sobre sua personagem em 'A condessa Vésper'. “Façamos primeiro uma ceiazita à la bohème [...] ela mesma serviu ostras frescas, pão, aspargos, morangos e champanhe Em seguida fez Gaspar assentar-se à mesa e, pondo-se de novo ao lado de pediu-lhe que abrisse a garrafa”.
Muitas vezes, em lugar de uma ceia, servia-se o chá ou lanche da noite entre vinte e vinte e duas horas. Considerado hábito de “gente de tratamento”, ou seja, de qualidade, a infusão perfumada era acompanhada de bolos, pão de ló ou torradas. Roíam-se biscoitos. Havia quem aproveitasse os restos do jantar: as sobras, desfiadas e com ovos, eram transformadas em “roupa velha”. Por vezes, antes de dormir, bebia-se ainda uma infusão de capim-santo, laranja, cidreira, erva-doce.
Em contraste com a louça fina e os alimentos importados, os modos grosseiros e repugnantes” adotados “por ambos os sexos em todas as classes sociais”. Por exemplo, comer com as mãos, “em vez de usar garfos e facas posto que não houvesse falta desses utensílios”, queixava-se Thomas Lindley, viajante inglês. Engolir o conteúdo dos copos e, por vezes, da garrafa de um gole só. Mergulhar a carne e os legumes na farinha, fazendo um bolo que era, depois, rapidamente deglutido. Ou “cansar-se logo” do garfo e da faca. Dividir a mesma faca para cortar alimentos de diferentes comensais. Colocar no prato do vizinho pedaços de carne de outro prato, ou mesmo ver o seu pedaço de carne partir, como aconteceu com Henry Koster: um pedaço saboroso não está seguro num dos nossos pratos, podendo ser arrebatado e mesmo substituído por outro em troca”. E Lindley concluía: É verdade que, a exemplo do Oriente, trazem-lhes água antes e depois das refeições; mas isso não desculpa, de modo algum, esse costume bárbaro e pouço asseado”. Sonoros arrotos, lançados “com franqueza” ao rosto dos convivas, concluíam as refeições. Ao levantar da mesa, era de praxe uma oração de graças ou o sinal da cruz.
Longe dos sobrados ricos, comia-se como dantes: com os dedos, o dono da casa em mesa baixa, a mulher com o prato entre os joelhos, sentada à asiática, ou seja, de pernas cruzadas no chão. E as crianças, deitadas ou de cócoras se “lambuzavam à vontade com a pasta de comida nas mãos”.
A falta de mobiliário, a família se reunia sentada numa esteira. No centro tigelas, cabaças e travessas de comida. “Classes pobres” desconheciam garfos e facas, comentou Koster. O dr. Antônio José de Souza que, em 1851, estudou o regime alimentar das classes pobres e dos escravos no Rio de Aro, informava: “A carne-seca, o feijão, a farinha de mandioca, o arroz, pão, o angu, alguns peixes e alguns crustáceos, eis a alimentação quase, exclusiva” dessa população.
No extremo oposto, em visita a Salvador, na Bahia, o imperador serviu-se em baixela de prata e talheres de ouro emprestados por famílias ilustres da cidade. Já no interior da província, passou aperto: “Espero um caldo de galinha com biscoitos, pois não há arroz nem pão”. Sem problemas, pois, d. Pedro não estava acostumado à mesa farta. Os jantares no palácio eram reconhecidamente frugais, à base de canja diária. Diferente de seu avô, d. João VI, que trouxe de Lisboa Vicente Paulino, “mestre de cozinhas”, depois substituído por Patrício Alvarenga, “que assava franguinhos no ponto que Sua Majestade gostava”, d. Pedro II não tinha exigências.
Importavam-se produtos e adotavam-se expressões: la bonne chère a carne de boa qualidade virou “a boa-xira”, como se lê em 'Quincas Borba', de Machado de Assis. Aliás, com ela passou-se a consumir o bife cru e o sanduíche, “uma corrupção dos tempos”, criticava o mesmo escritor. Segundo Machado, um banquete tal como o que descreveu em 'Notas semanais', teria que ter “línguas de rouxinol”, “coxinhas de rola”, “peito de perdiz à milanesa”, “faisão assado”, “pastelinhos”, “compota de marmelo'". Ou, na evocação de Brás Cubas, “mesas atulhadas de doces e frutas, aqu: ananás em fatias, o melão em talhadas, as compoteiras de cristal deixando ver o doce de coco, finamente ralado, amarelo como uma gema - ou então o melado escuro e grosso, não longe do queijo e do cará”.
Havia mesmo quem recomendasse cardápios diferentes para homens e mulheres, como o fez José Ignácio Roquette em seu livro 'Código do bom-tom' de 1845: para eles “iguarias fortes e suculentas” a base de veação, lombo de vaca e assados. “Nada de massas leves e ainda menos, pratos meio doces”. Para elas, acepipes frios e “delicados, verduras novas, cremes, natas e muitos docinhos que os franceses chamam bombons”.
Graças à pena realista de Aluísio Azevedo, em 'O cortiço', ficamos sabendo que, ao nascer do dia, chegavam às cozinhas os tabuleiros de carne fresca, de tripas e postas de boi, as cestas de peixe e as enfiadas de sardinhas. O vaivém dos mercadores e seus pregões animavam os fogões. Os operários desciam para o almoço às nove horas. Na cozinha, a negra Bertoleza ia de panela em panela, enchendo os pratos. Do lado de fora, o caixeiro João Romão recitava a lista de comidas: “Um cheiro forte de azeite frito predominava. O parati circulava por todas as mesas, e cada caneca de café, de louça espessa, erguia um vulcão de fumo tresandando a molho queimado. E sempre a sair, e sempre a entrar gente, e os que saíam, depois daquela comezaina grossa, iam radiantes de contentamento, com a barriga bem cheia a arrotar.” Punham o estômago em dia - como se dizia então.
Tal como na corte, no interior ou nas capitais menores, a comida chegava “em domicílio”. Muitas vezes vinham na garupa de cavalos ou mulas transportadas em garajaus e outros cestos, perus para dias de festa e galinhas para a canja do doente ou de resguardo de parto; as frutas frescas - a laranja, o abacaxi, a manga, a jaca; as geleias e os bolos de tabuleiro, vendidos pela doceira limpa e conhecida.
Em tempo de celebrações ruidosas, festejava-se com fiambre, mortadela, ostras, camarões recheados, pimentões, rosbifes com farofa. Restaurantes com chefes estrangeiros pululavam. Os intelectuais cariocas, por exemplo, eram habitués do Mangini, do Café Londres, da Maison Moderne. Em suas mesas se via Artur Azevedo, Coelho Neto, Raimundo Correia, Paula Ney, José do Patrocínio, Duque-Estrada. Quem podia, mandava seus cozinheiros aprenderem cardápios europeus em hotéis estrangeiros, como fez dona Angélica de Barros, filha do barão de Souza Queiroz, matrona rica paulistana. 0 seu teve aprendizado com Guilherme Lébeis, dono do Hotel de França. Mas em sua mesa não faltava a paçoca com banana, brasileiríssima!
A abstinência de carne na Sexta-Feira Santa continuava obrigatória. O cônsul Burton, no vilarejo de Bom Sucesso, próximo a Diamantina, em Minas Gerais, viu senhores e escravos compartilhando peixes e ovos. Ao final da refeição, todos se puseram de pé, de mãos postas rezaram e persignaram-se. Em Recife, as ceias de Semana Santa tinham enorme importância. À beira dos grandes viveiros de Afogados e Jiquiá se retiravam barricas de camorins, carapebas, curimãs; perto dos mangues, se compravam guaiamus e caranguejos. E em Olinda, as famílias se abasteciam do pescado de alto-mar, trazido pelos jangadeiros, como conta Félix Cavalcanti, em suas 'Memórias'.
Câmara Cascudo lembra que um conjunto de regras tentava doutrinar os brasileiros com normas da etiqueta vindas do outro lado do Atlântico. A noção de “boa educação” começava a se sobrepor ao “estar à vontade”. Sentar-se à mesa não era sinônimo de comer. Para comer, era preciso “ter modos”. E quem recomendava era o manual de boas maneiras de J.I. Roquette: nada de colocar o guardanapo na casa do botão do colete, mas, no olo. Não partir o pão com a faca, mas, com a mão. Não deitar o café no pires, para tomá-lo aos golinhos! Nem enxugar o molho do prato com o pão. Proibido lamber os dedos. Nada de soprar a sopa para esfriar ou engolir a comida com precipitação. O almoço entre amigos excluía as senhoras, pois sua presença impediria anedotas ou confidências pitorescas. Iam para a mesa todas as comidas, inclusive as compoteiras de doces, os licores, as garrafas de vinho e as moringas d’água.
Por perto, a caixa de charutos de Cuba e os fósforos suecos da marca Jönköping. A refeição tinha início com pratos quentes e sem ordem. Os assados eram servidos antes dos peixes. As entradas frias, de gosto alemão, só foram introduzidas depois da Guerra do Paraguai, em 1870. A palavra delikatessen, antes nos cardápios de restaurantes, referente aos embutidos, passou a frequentar as casas particulares. O almoço íntimo dispensava criados para o serviço contínuo que compareciam, contudo quando chamados por campainha ou grito. O vinho do Porto e o café encerravam a refeição.
Às mesas, chegavam copos diferenciados. Um para vinho tinto e no caso de ser servido peixe, outro, menor. A água era solicitada e vinha em copo à parte. Ao lado dos copos se encontrava a xícara de café, pois a cafeteira vinha à mesa ao lado do pesado açucareiro. Paliteiros de prata se espalhavam sobre a toalha, provocando a ironia de estrangeiros. Para os que as desconhecessem, 'Regras de servir à mesa' era obra vendida nas boas livrarias junto com o 'Código do bom-tom' que lembrava sobre o uso do palito “Nunca o deixareis ficar na boca, nem o poreis no cabelo, atrás da orelha, na casaca etc. e muitos menos faleis, tendo-o na boca".
Os patês, as conservas, as bebidas russas, as combinações mirabolantes para os punches festivos, a montanha sedutora das delikatessens alemã, as massas italianas com seus molhos espessos, as mayonnaises, potages e sutilezas da culinária francesa, derramaram-se sobre o Brasil, como explicou Câmara Cascudo. Com a libra esterlina cotada a seis mil-réis, era possível mobilizar todas as gulodices da Europa, nas confeitarias e restaurantes da capital do Império. Os salames de Lamego e Bolonha, as ostras de Mancha, as sardinhas de Nantes, os vinhos raros, os cognacs finíssimos, os champagnes dourados, tudo o quanto Alemanha, Itália e França possuíam em sabor e alegria do paladar, vendia-se no Rio de Janeiro. O uso de doces e cremes gelados, os sorvetes de frutas, os sandwiches atraíam damas e galantes e eram vendidos no Passeio Público, a vista do mar.
Sim, os produtos estavam lá. Mas sabia-se consumi-los apropriadamente? O comentário sarcástico do conde de Gobineau, em visita a Juiz de Fora na companhia do casal de imperantes em 1869, não deixa dúvida: “Vinhos do Reno, vinhos de Champagne, vinho de Bordeaux, tanto quanto quiséssemos, mas na desordem que você pode imaginar! Comi um pedaço de presunto com bolo de Savoia, um confeito de ameixa, farinha de mandioca, queijo do país, peru, três dragées de amêndoas e graças à Imperatriz que mo-la enviou e ria de tudo, um pedaço de omelete. Pão, vi de longe; mas não comi.”
Texto de Mary del Priore em "Histórias da Gente Brasileira-Volume 2 -Império", Editora Casa da Palavra (Leya), Rio de Janeiro, 2016, excertos pp. 213-221. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.