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O BRASIL CAIPIRA

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"[...] Metido pelos matos, à caça de índios e índias, estas para os exercícios de suas torpezas e aqueles para os granjeios de seus interesses [...] nem sabe falar [o português] [...] nem se diferencia do rnais bárbaro tapuia mais do que em dizer que é cristão e não obstante o haver se casado de pouco lhe assistem sete índias concubinas [...]

Bispo de Olinda sobre Domingos Jorge Velho, o capitão bandeirante que liquidou o quilombo de Palmares, 1694"

Enquanto os núcleos açucareiros da costa nordestina cresciam e enriqueciam, a população paulista revolvia-se numa economia de pobreza. Não tendo grandes engenhos de açúcar, que eram a riqueza do tempo, tampouco tinham escravaria negra, e raramente um navio descia até o ancoradouro de São Vicente. Ao fim de um século e meio de implantação, os núcleos paulistas mais importantes eram arraiais de casebres de taipa ou adobe, cobertos de palha. Os homens bons que integravam a Câmara e dirigiam as bandeiras de devassamento dos sertões interiores viviam com suas famílias em sítios no interior, em condições igualmente pobres. Cada um deles servido pela indiada cativa que cultivava mandioca, feijão, milho, abóbora e tubérculos, para comer com carne de caça ou com pescado; além do tabaco para o pito, do urucu e da pimenta para condimento e algumas outras plantas indígenas.

Em família e também nas relações entre paulistas, só se falava a língua geral, que era uma variante do idioma dos índios Tupi de toda a costa. Também indígenas eram as técnicas da lavoura de coivara, bem como de caça, de pesca e de coleta de frutos silvestres de que se sustentavam. A tralha doméstica, de redes de dormir, gamelas, porongos, peneiras etc., pouco diferia da disponível numa aldeia indígena.

Seus luxos em relação à vida tribal estavam no uso de roupas simples, do sal, do toucinho de porco e numa culinária mais fina; na posse de alguns instrumentos de metal e de armas de fogo; na candeia de óleo para alumiar, nalguma guloseima, como a rapadura, e na pinga de cana que sempre se destilou; além da atitude sempre arrogante. Cada família fiava e tecia de algodão grosseiro as redes de dormir e as roupas de uso diário – amplas ceroulas cobertas de um camisolão para os homens, blusas metidas em saias largas e compridas, para as mulheres. Todos andavam descalços ou usando simples chinelas ou alpercatas. Apenas cobriam o corpo que os índios antes deixavam à mostra, sem pudor mas com a faceirice das pinturas de urucum e jenipapo.

Essa pobreza, que está na base tanto das motivações quanto dos hábitos e do caráter do paulista antigo, é que fazia deles um bando de aventureiros sempre disponível para qualquer tarefa desesperada, sempre mais predispostos ao saqueio que à produção. Cada caudilho paulista de expressão podia levantar centenas e até milhares de homens em armas; é verdade que a imensa maioria deles formada por índios flecheiros. Não necessitavam mais, porém, uma vez que os inimigos a enfrentar eram índios tribais arredios, índios missioneiros desvirilizados e negros quilombolas quase desarmados. Sua economia de subsistência de base tribal e tupi prestava-se admiravelmente a manter esses centos de índios combatentes, que só precisavam de um rancho que eles mesmos faziam, de um pedaço de terra desmatada para roçados, que eles próprios abriam, da caça e da pesca que também eles mesmos agenciavam.

As contribuições fundamentais do paulista a esses núcleos eram um disciplinamento militar superior ao tribal e as motivações mercantis também mais bem ajustadas às circunstâncias.

É provável que o índio aliciado nesses bandos, depois de suficientemente afastado de sua tribo para dissuadi-lo de retornar, neles se integrasse sem dificuldades em virtude de sua singeleza quase tribal. Não era submetido a uma disciplina rígida de trabalho, como no engenho, mas às alternâncias de esforços e de lazer a que estava habituado. Sua condição seria provavelmente muito próxima da que enfrentaria, por exemplo, o índio cativo de tribos guerreiras como os Guaikuru, para servir como servo de um cacicato. Nos dois casos, encontrava um papel social bem definido e uma possibilidade de integração num novo mundo cultural, que, embora menos desejável que o tribal, seria suportável. O inconveniente maior era a impossibilidade de ter mulher (porque estas seriam muito disputadas) e também vida de família.

Esse modo de vida, rude e pobre, era o resultado das regressões sociais do processo deculturativo. Do tronco português, o paulista perdera a vida comunitária da vila, a disciplina patriarcal das sociedades agrárias tradicionais, o arado e a dieta baseada no trigo, no azeite e no vinho. Do tronco indígena, perdera a autonomia da aldeia igualitária, toda voltada para o provimento da própria subsistência, a igualdade do trato social de sociedades não estratificadas em classes, a solidariedade da família extensa, o virtuosismo de artesãos, cujo objetivo era viver ao ritmo em que os seus antepassados sempre viveram.

Os núcleos paulistas, vinculados a uma economia mercantil externa e motivados por ambições de enriquecimento, não queriam apenas existir como os índios com os quais quase se confundiam. Integrados na estrutura estamental da colônia, aspiravam a  participar da camada dominante, dar-se luxos de consumo e poder de influenciar e de mandar. Armados de uma tecnologia rudimentar, mas muito superior à tribal, amalgamada de elementos europeus e indígenas, seu destino era lançar-se sobre as gentes e sobre as coisas da terra, apresando e saqueando o que estivesse a seu alcance, para assim afirmar-se socialmente.

Por tudo isso é que os mamelucos paulistas se tornaram - como mateiros e sertanistas ainda melhores que os próprios índios - o terror dos grupos tribais livres e dos índios catequisados pelos jesuítas, nesse processo desestimulados para a luta, e,mais tarde, dos negros fugidos e concentrados em quilombos. Durante um século e meio, os paulistas se fizeram cativadores de índios, primeiro, para serem os braços e as pernas do trabalho de suas vilas e seus sítios; depois, como mercadoria para venda aos engenhos de açúcar. Desse modo despovoaram as aldeias dos grupos indígenas lavradores em imensas áreas, indo buscá-los, por fim, a milhares de quilômetros terra adentro, onde quer que se refugiassem.

Adestrados nessas práticas, os paulistas se lançam, no começo do século XVII, contra as prósperas missões jesuíticas do Paraguai, onde dezenas de milhares de índios sedentarizados e disciplinados no trabalho agrícola, pastoril e artesanal se ofereciam como o saque mais tentador. Os catecúmenos eram, então, especialmente valiosos pela carência de negros escravos em que viviam os engenhos baianos, em virtude do domínio holandês sobre as fontes supridoras da África. Mas, além de índios a cativar, os paulistas encontravam nas missões jesuíticas preciosos adornos de igrejas, ferramentas e outras prendas de valor, ademais de muito gado.

Missões inteiras, das mais ricas e populosas, como Guaíra (oeste paranaense), Itatim (sul do Mato Grosso) e Tapes (Rio Grande do Sul), foram assim destruídas pelos bandeirantes paulistas, que saquearam seus bens e escravizaram seus índios. É de supor que paulistas tenham vendido mais de 300 mil índios, principalmente missioneiros, aos senhores de engenho do Nordeste.

Cada uma dessas empresas de assalto às missões jesuíticas do Paraguai exigia, por vezes, a mobilização de todos os paulistas prestantes com sua indiada de confiança. As maiores delas compreendiam cerca de 2 a 3 mil pessoas, uma terça parte das quais era constituída de "brancos" que seriam quase todos mamelucos. Iam homens, mulheres, velhos que ainda podiam andar e combater e crianças, divididos por famílias, como uma vasta cidade móvel, arranchando-se pelo caminho, fazendo roça, caçando e pescando para comer, mas seguindo sempre em frente para acossar aos missioneiros em seus redutos, vencê-los e apresá-los. Além do núcleo guerreiro de combatentes, com sua hierarquia militar e seu incipiente aparato legal e religioso, a bandeira transitava pelo sertão toda uma corte de serviçais que carregavam as cargas de mantimentos e utensílios, de índios que caçavam, pescavam e coletavam alimentos, de sertanistas que abriam picadas e estabeleciam rumos.

Assim, num tempo em que as nações deserdadas na divisão do mundo apelavam para a pirataria marítima dos corsários, os paulistas, que eram os deserdados do Brasil, lançavam-se, também, ao saque com igual violência e cobiça. Marginalizados do processo econômico da colônia, em que quase todos estavam voltados para as lucrativas tarefas pacíficas dos engenhos e dos currais de gado, os paulistas acabaram por se especializar como homens de guerra. Cada vez que na abertura de uma nova zona os índios apresentavam resistência maior, requeria-se a mão sujigadora dos paulistas. Igualmente, quando estalava uma rebelião escrava ou quando um grupo negro se alçava implantando solidamente um quilombo resistente às forças locais, para os paulistas é que se apelava.

Desse modo, troços de guerra de chefes paulistas com sua indiada de combate andaram além dos sertões indevassados, que eram seu campo habitual de trabalho, por todas as regiões prósperas do país, empreitados para desalojar índios ou destruir quilombos. Alguns desses sinistros bandeirantes de contrato traziam de volta dessas batalhas, como prova de tarefa cumprida, milhares de pares de orelhas dos negros decapitados. Nessas andanças, muitos paulistas acabaram por se fixar em regiões distintas, fazendo-se criadores de gado ou lavradores. A maioria, porém, voltava ao couto, reintegrando-se na vida penosa e rude de sua gente. Formavam uma sociedade que, por ser mais pobre, era também mais igualitária, na qual senhores e índios cativos se entendiam antes como chefes e seus soldados, do que como amos e seus escravos.

A miscigenação era livre porque quase ninguém haveria, dentre os homens bons, que não fosse mestiço. Nessas circunstâncias, o filho da índia escrava com o senhor crescia livre em meio a seus iguais, que não eram a gente da identidade tribal de sua mãe, nem muito menos os mazombos, mas os chamados mamelucos, frutos de cruzamentos anteriores de portugueses com índias, orgulhosos de sua autonomia e de seu valor de guerreiros.

A família se estrutura patricêntrica e poligínica, dominada pelo chefe como um grupo doméstico com pessoas de várias gerações; essencialmente, o pai, suas mulheres com as respectivas proles e os parentes delas. As índias atreladas ao grupo como cativas eram comborças do pai e dos filhos destes. Só aos poucos o casamento religioso se impõe como sacralização da mãe dos filhos legítimos, entre as mulheres de cada homem. Muito paulista velho consignava em seu testamento a parcela dos parcos bens que caberia aos filhos legítimos e o montante a distribuir entre os outros, esclarecendo bizarramente que tinha, por filhos seus, todos aqueles que as mães apontassem como tais.

O regime de trabalho, voltado para o sustento e não para o comércio, era quase o mesmo da aldeia tribal. Atribuía às mulheres as cansativas tarefas rotineiras de limpeza da casa, do plantio, da colheita e das roças, do preparo de alimentos, do cuidado das crianças, da lavagem das roupas e do transporte de cargas. E, aos homens, os trabalhos esporádicos que exigiam grandes dispêndios de energia, como o roçado, a caça e a guerra, mas que permitiam depois de cada façanha largos períodos de repouso e Essa posição histórico-evolutiva é que lhe impunha, por um lazer. Nas longas quadras de espera inativa entre as entradas do sertão, os homens ficavam em casa, insofridos, como guerreiros em vígilia. Nesse ambiente estouravam, com frequência, conflitos sangrentos. Esses hábitos deram aos antigos paulistas a reputação de gente birrenta e preguiçosa.

Apesar desse primitivismo, São Paulo quinhentista era também um implante da civilização européia ocidental, um entreposto mercantil mundial, um enclave colonialescravista da formação mercantil-salvacionista ibérica. Por todas essas qualidades, contrastava flagrantemente com as organizações tribais das aldeias agrícolas indiferenciadas, com as quais interagia, sem com elas confundir-se. Ao contrário, lhes impunha sua dominação e as conduzia ao extermínio físico para fazer surgir um outro povo no território até então ocupado por elas.

Enquanto civilização, era um transplante tardio de uma romanidade refeita por sucessivas transfigurações na península Ibérica, que, a certa altura, adquire forma e vigor para expandir-se como uma macroetnia conquistadora. Nesse sentido, repetiam-se em São Vicente - como de resto em todo o Brasil – as situações em que conquistadores cartagineses e romanos impuseram sua língua, religião e cultura aos povos celtiberos, transfigurando-os etnicamente em lusos.

Nos dois casos estamos diante de uma mesma modalidade de trânsito de uma etapa evolutiva a outra, aquela que se dá pela incorporação histórica de um povo numa macroetnia conquistadora com perda de sua própria autonomia cultural.

Isto significa que em São Paulo não se verificava um ascenso da tribalidade à civilização, mas sim a edificação, com gente desgarrada das tribos, de uma entidade étnica emergente que nasce umbilicalmente ligada a uma sociedade e a uma cultura exógena por ela conformada e dela dependente. São Paulo surge, por isso, com uma configuração histórico-cultural de povo novo, plasmada pelo cruzamento de gente de matrizes raciais díspares e pela integração de seus patrimônios culturais sob a regência do dominador que, a longo termo, imporia a preponderância de suas características genéticas e de sua cultura.

Enquanto entreposto mercantil, São Paulo era um módulo da trama econômica transatlântica de produção e comércio, comunicada através de naus oceânicas. Sua principal mercadoria eram índios caçados para vender como escravos aos núcleos açucareiros do Nordeste e também para outros lugares. Capistrano de Abreu, referindo-se a São Paulo, dizia que o Brasil, antes de importador, fora exportador de escravos. Mas, ainda que produzisse para o mercado interno, interagia em um circuito mercantil que lhe permitia prover-se de produtos importados, principalmente armas e ferramentas. O próprio negócio de vender índios como escravos era parte do tráfico mundial escravista e tinha seu ritmo e êxito determinados pelos azares da preia e exportação de africanos.

Enquanto formação, São Paulo não era uma reencarnação de etapas pregressas da evolução humana. Era uma formação colonial-escravista, estruturada como uma contraparte contemporânea e coetânea da formação mercantil-salvacionista ibérica. Essa posição histórico-evolutiva é que lhe impunha, por um lado, sua característica básica de sociedade estratificada em classes antagônicas e bipartida em componentes rurícolas e citadinos, esses últimos liberados das tarefas de subsistência para ocupar-se de outras funções, e, por outro lado, seu papel de agência difusora da civilização ibérica e impositora de sua dominação sobre o território brasileiro.

A grande esperança dos paulistas em suas entradas no sertão sempre foi deparar com minas de ouro, prata ou pedras preciosas. A tanto os apicaçava também a Coroa portuguesa, empenhada em que seu naco das Américas produzisse as riquezas que os espanhóis arrancavam do México e do Peru. Assim é que puderam alcançar apoio e até alguma ajuda oficial para as entradas que visavam a descoberta de metais preciosos.

O ouro acabou aparecendo nos sertões de Taubaté, primeiro em garimpos pobres, que só estimulavam as buscas; depois em aluviões prodigiosamente ricos das morrarias de Minas Gerais, cuja exploração transfiguraria toda a sociedade colonial brasileira e, levado para a Europa, alteraria o padrão monetário. Pandiá Calógeras avalia em 1400 toneladas de ouro e em 3 milhões de quilates de diamantes a riqueza carreada do Brasil no período colonial (Calógeras 1938:60-1 ).

Tais foram as zonas de mineração descobertas pelos bandeirantes paulistas nas serrarias do interior do país ao alvorecer do século XVIII, em Minas Gerais ( 1698 ), depois em Mato Grosso ( 1719) e, mais tarde, em Goiás ( 1725 ). Desde as primeiras notícias dos descobrimentos auríferos, multidões acorreram às áreas de mineração, vindas de todo o Brasil e, posteriormente, também de Portugal. Em poucos anos, aquelas regiões desertas transformaram-se na área mais densamente povoada das Américas, concentrando cerca de 300 mil habitantes por volta de 1750.

Os ricos vinham com toda sua escravaria, pleiteando grandes lavras; os remediados, com o que tinham, e os pobres, com uns poucos negros, com apenas um, ou com nenhum, mas também tentando a sorte. A transladação humana alcançou tal vulto que a Coroa viu-se na contingência de sofreá-la, baixando sucessivamente atos para evitar o êxodo dos engenhos e das vilas das zonas de antiga ocupação.

A exploração começou pelo ouro de aluvião, que se apresentava misturado às areias e ao cascalho do leito dos rios (ouro de medra) e das sua margens (ouro de tabuleiro). Aí tratava-se apenas de lavrar e batear as areias para catar as pepitas e apurar o ouro em pó. Mais tarde, passou-se a explorar o ouro de grupiara, que se encontrava nas serranias. Então, fez-se necessário um processo mais complicado, que envolvia a canalização da água de lavagem e o desmonte da piçarra, e frequentemente a trituração das pedras em que se engastava o ouro. Por fim, explorava-se também o ouro de minas, cujos filões tinham que ser seguidos terra adentro, exigindo mais trabalho e técnicas mais aprimoradas.

Inicialmente, porém, era enorme a quantidade de ouro que se encontrava à flor da terra para ser simplesmente catado com bateias. Essa facilidade de exploração conduziu ao pronto esgotamento dos aluviões, obrigando os arraiais de mineradores a deslocar-se para novas áreas. Alguns dos primeiros núcleos de exploração eram tão ricos que as rancharias assentavam sobre o próprio terreno aurífero, tendo de ser derrubadas, mais tarde, para prosseguir na lavagem do cascalho. Assim se formaram arraiais que se tornariam vilas e, depois, cidades assentadas literalmente sobre o ouro, como Vila Rica, Cuiabá, Vila Bela e Goiás, entre muitas outras. Construídas com o barro rico, ainda hoje se pode ver, nessas cidades, gente bateando as terras de um velho muro de adobe em ruínas, à procura de pepitas.

O afluxo de gente para as áreas de mineração e a sofreguidão com que todos se dedicavam à cata de ouro geraram graves problemas sociais, fome e conflitos. Toda uma copiosa documentação histórica mostra como se podia morrer de fome ou apenas sobreviver comendo raízes silvestres e os bichos mais imundos, com as mãos cheias de ouro. Registra, também, as contendas entre mineradores, travadas principalmente entre os paulistas e adventícios. Aqueles, considerando-se com maiores direitos, enquanto descobridores de toda a nova riqueza, lutavam contra a invasão dos baianos, pernambucanos e demais brasileiros, bem como contra os reinóis atraídos para as minas. A chamada Guerra dos Emboabas ( 1710 ) foi o mais grave dos enfrentamentos desse tipo.

Somente uma década depois da descoberta, as autoridades coloniais fixaram-se com um poder efetivo sobre as novas regiões, tornando-se capazes de compelir o cultivo de gêneros para garantir a subsistência, de estancar os conflitos, de dirimir as lutas pelo domínio das águas de lavagem e pela posse das matas mais ricas.

Começa, então, uma luta feroz entre os empresários da terra e o patriciado lusitano, esforçando-se os primeiros por reter e aumentar seus bens contra a sanha taxadora da Coroa. O escamoteio de ouro e dos diamantes e a sonegação dos impostos prevalecem, desde então, como o sentimento mais profundo dos corações mineiros e como sua forma particular de rebeldia. A Coroa reage com as derramas, as exações punitivas, os confiscos e a repressão, mas jamais consegue pôr cobro à posse ilícita e mobilização de milhares de soldados para sufocá-los. O principal deles, eclodido em 1720, termina com o esquartejamento de Felipe dos Santos e a queima das casas dos revoltosos. Ainda na primeira metade do século XVIII, a descoberta de uma riquíssima região diamantífera promove nova transladação humana.

Era, porém, aos olhos da Coroa, uma riqueza demasiado grande para ficar em mãos de brasileiros. Sobre ela foi decretado o monopólio real. Assim é que os diamantes seriam explorados, primeiro, por contratantes reais; depois, diretamente por agentes da metrópole. O estanco (monopólio real), apesar de decretado e imposto através do maior aparelho de repressão montado no período colonial, não impediu a exploração clandestina de diamantes. Esta continuou sendo feita, acabando por plasmar um tipo social característico, o garimpeiro, que ainda hoje conserva traços de independência, reserva e rebeldia, explicáveis por essa origem clandestina.

Os primeiros povoadores levantavam e abandonavam continuamente rancharias, à medida que as lavras eram descobertas e se esgotavam. Mas prontamente se nuclearam, em princípio nos pousos mais próximos, onde se instalava uma venda que depois se tornava estalagem e armazém. Ali todos compravam ferramentas e utensílios, sal, pólvora, panos, mantimentos e pinga, pagando tudo em onças de ouro em pó, que era a moeda da terra. Essa riqueza atraiu negociantes importadores; comboieiros que tangiam escravos desde a costa, acorrentados uns aos outros; tropeiros que transportavam a lombo de burro, através de centenas de léguas, toda a sorte de mercadoria. Alguns daqueles pousos se estabilizaram, tornando-se arraiais e vilas capazes de prover, além das mercadorias, também as necessidades da religião e da justiça da população. Assim se constitui, com extraordinária rapidez, a base do que viria a ser uma vasta e próspera rede urbana.

Os escravos das lavras viviam acumulados em choças levantadas nas vizinhanças, trabalhando sob estrita vigilância de fiscais e feitores atentos contra o extravio e até a deglutição das pepitas maiores e, sobretudo, dos diamantes. Gozavam, porém, ao contrabando, que era a defesa dos brasileiros contra a espoliação. A população revida com motins, por vezes prontamente aplastados, mas exigindo outras vezes a de certas regalias em relação ao eito açucareiro, tendo condições de cultivar seus roçados e, por vezes, de comprar a própria liberdade se alcançassem uma produção inusitada. Nesse mundo que requeria as aptidões técnicas mais variadas, muito negro habilidoso se fez artífice. A eles se devem as primeiras fundições de ferro, indispensáveis nas minas para o fabrico do instrumental de trabalho, para ferrar as mulas das tropas e as rodas dos carros.

Nas zonas de mineração, a sociedade brasileira adquire feições peculiares como um desdobramento do tronco paulista, por influência dos brasileiros vindos de outras áreas e de novos contingentes europeus nele incorporados, e da presença de uma grande massa de escravos, tanto africanos quanto nativos, trazidos das antigas zonas açucareiras. O principal conformador dessa variante cultural foi a atividade econômica inicial de mineração e a riqueza local que ela gerou, criando condições para uma vida urbana mais complexa e ostentosa que em qualquer outra região do país.

A abertura das regiões mineradoras teve algumas conseqüências externas de importância capital, além das transladações de população. Ensejou a transferência da capital colonial da Bahia para o porto do Rio de Janeiro - que era um arraial paupérrimo, como o velho São Vicente -, criando as bases para a implantação de grande centro administrativo e comercial na costa sul, em cujas imediações se desenvolveria um novo núcleo de economia agrária. Estimulou a expansão do pastoreio nordestino pelos campos são-franciscanos e do Centro-Oeste, assegurando-lhe um novo mercado consumidor, no momento em que decaía o nordestino.

Finalmente, possibilitou a ocupação da região sulina, conquistada pelos paulistas com a destruição das missões jesuíticas -, para o pastoreio de gado vacum, que se dispersara pelos campos, e, sobretudo, para a criação dos muares que abasteceriam os tropeiros, os quais faziam todo o transporte terrestre do Brasil colonial.

Desse modo, a mineração, ademais de representar uma nova atividade de maior rentabilidade econômica que as anteriores, ensejou a integração na sociedade colonial, assegurando, assim, o requisito fundamental da unidade nacional brasileira sobre a vastidão do território já devassado.

Meio século depois da sua descoberta, a região das Minas já era a mais populosa e a mais rica da colônia, contando com uma ampla rede urbana. Nas décadas seguintes, se ativaria com uma vida social brilhante, servida por majestosos edifícios públicos, igrejas amplas de primorosa arquitetura barroca, casas senhoriais assobradadas e ruas pedradas engalanadas com pontes e chafarizes de pedra esculpida.

Desenvolveu-se simultaneamente uma classe senhorial de autoridades reais e eclesiásticas, de ricos comerciantes e mineradores, tanto brasileiros como reinóis, acolitada por um amplo círculo de militares de ofício, burocratas, ouvidores, contadores, fiscais e escrivães. Dentro desse círculo, todos se davam um trato cordial de "urbanidade sem afetação", segundo um testemunho europeu. Os homens levavam jaquetas e calças de flanela preta de Manchester. As mulheres davam-se ao luxo de seguir modas francesas. Faziam arquitetura e pintura da mais alta qualidade, criando uma variante brasileira do barroco; literatura lírica e até política libertária; liam pensadores revolucionários e compunham música erudita, primorosamente orquestrada.

A atividade mineradora, que mantinha esse fausto urbano, propiciou também a criação de uma ampla camada intermediária entre cidadãos ricos e os pobres trabalhadores das lavras. Eram artífices e músicos, muitos deles mulatos e mesmo pretos, que conseguiam alcançar um padrão de vida razoável e desligar-se das tarefas de subsistência para só se dedicarem a suas especialidades. Para atender a esse grupo, fundam-se suas próprias corporações de ofício, de molde português, que se tornam poderosos núcleos de defesa dos interesses profissionais, associando separadamente os ourives, os pedreiros, os carpinteiros, os entalhadores, os ferreiros, os artistas, escultores, pintores e outros artífices.

A atividade religiosa regia o calendário da vida social, comandando toda a interação entre os diversos estratos sociais. Isso se fazia através de diversas irmandades organizadas por castas, que reuniam os pretos forros, os mulatos, os brancos, separando-os em distintas agrupações mas também integrando a todos na vida social da colônia. Cada uma delas tinha igreja própria, que era seu orgulho, cemitério privativo e direito a pompas funerárias com a participação de seus clérigos e de seus músicos profissionalizados. Os pretos também, inclusive os escravos, criaram suas próprias corporações, devotadas, como as outras, a algum santo. É o caso do suntuoso Santuário do Rosário dos Pretos, de Ouro Preto.

O sustento dessa população urbana criou condições para o surgimento de uma agricultura comercial diversificada, provedora de mantimentos, de carne, de rapadura, de queijos, de toucinho e muitos outros produtos. Pequena parcela da escravaria foi destinada a esses misteres, dado o seu engajamento maciço na mineração. Deles ocupavam-se, principalmente, os negros e mulatos forros e os brancos mais pobres, incapazes de entrar no negócio das lavras, que já não era de simples bateação, mas de mineração e desmonte de grupiaras, exigindo, por isso, grandes capitais.

Lavrando principalmente terra alheia, por força do monopólio que sobre ela exercia a gente fidalga, esses chacareiros trabalhavam, certamente, sob algum regime de parceria, como os roceiros da região açucareira dedicados ao provimento alimentar das vilas e cidades nordestinas. Abaixo desses estratos intermediários, estava a camada dos mulatos e negros forros mais humildes, representados nas irmandades mais pobres mas, ao menos, aí integrados. Eram os serviçais domésticos ou trabalhadores braçais, sobre cujos ombros recaíam as tarefas pesadas. Na base da estratificação, como a camada mais explorada, sem qualquer representação ou direito, ficava a grande massa escrava de trabalhadores das minas, das lavouras e dos transportes. Todo um aparato ostensivo de repressão vigiava, em cada vila, a esses miseráveis, para prevenir as fugas de escravos, a vadiagem dos forros que pudesse resultar em assaltos e, sobretudo, as rebeliões.

A sedição surge, porém, na própria classe alta, de que se destaca uma elite letrada que se propõe formular e pôr em execução um projeto alternativo ao colonial de reordenação de sua sociedade. Trata-se do mais ousado dos projetos libertários da história colonial brasileira, uma vez que previa estruturar uma república de molde norte-americano que aboliria a escravidão, decretaria a liberdade de comércio e promoveria a industrialização. A eclosão insurrecional deveria ter lugar em 1789, aproveitando a revolta dos "mineiros" contra a espoliação colonial, aumentada por novas taxações já anunciadas sobre uma riqueza minguante. Foi a mal-chamada Inconfidência Mineira, que, apesar de fracassada por uma delação, nos revela o vigor do sentimento nativista nascente e também o amadurecimento de uma ideologia republicana capacitada para reordenar a sociedade em novas bases.

Tiradentes, a figura principal da conspiração, um militar de ofício, tinha sempre em mãos um exemplar da constituição norte-americana para mostrar como se devia e se podia reorganizar a vida social e econômica depois da emancipação do jugo português. Presos por denúncia, todos os inconfidentes foram desterrados para a África, onde morreram. Exceto o próprio Tiradentes, enforcado após três anos de cárcere e, depois, esquartejado e exposto nos lugares onde antes conspirara, para escarmento da população.

Depois de algumas décadas de exploração intensiva e desordenada, começam a esgotar-se os aluviões de Minas Gerais e, mais tarde, os de Goiás e de Mato Grosso. Os mineradores voltam às velhas paragens, relavando cascalho já trabalhado ou tentando lavras abandonadas, por sáfaras. Tudo em vão; o ouro minguava e com ele a sociedade fundada na dissipação da riqueza fácil. Os mineradores insistiam, porém, labutando com os escravos envelhecidos que não podiam renovar e endividando-se, mas persistindo sempre pela incapacidade de se voltarem para outra atividade. Seu problema era determinar que mercadoria se podia produzir naqueles ermos montanhosos, como transportá-la até a costa distante e a quem vendê-la, se o único mercado rico fora o das minas, agora empobrecidas.

Ao fim do século XVIII, a vida urbana ainda parecia ter viço pelo brilho artístico que alcançara, pelo requinte que adquirira, pelos hábitos mundanos que cultivava. Mas já eram expressões da decadência, que pouco depois desapareceriam também, mergulhando a todos na pobreza envergonhada em que ainda vegetam os mineiros das antigas cidades do ouro e do diamante.

Nem Portugal conseguira reter a riqueza portentosa que carreara, criando com ela novas fontes de produção. Um pacto de complementaridade econômica com a Inglaterra – Tratado de Methuen -, que assegurava taxas mínimas ao vinho do Porto e ao azeite português em troca do livre comércio das manufaturas inglesas, transferia quase todo o ouro para os banqueiros londrinos. O âmbito dessa transferência pode ser avaliado em documentação da época, que indica terem alcançado até 50 mil libras semanais os pagamentos portugueses em ouro pelas importações que o reino e o Brasil faziam aos industriais ingleses. Esse ouro contribuiria para custear as guerras contra Napoleão e, sobretudo, para financiar a expansão da infra-estrutura industrial da Inglaterra.

Com a decadência da mineração, toda a área submerge numa economia de pobreza, com a regressão cultural resultante. Os mineradores se fazem sitiantes, escondendo na fazenda a sua penúria.

O artesanato local de roupas rústicas e de utensílios volta a ganhar terreno, e com ele uma economia autárquica para subsistência. Todavia, a presença de contingentes europeus e africanos integrados na sociedade mineira permite explorar algumas técnicas, como a fundição de ferro, a edificação, a carpintaria fina, a indústria de panos, bem como certo grau de erudição livresca que impediriam a sociedade mineira decadente de regredir à rusticidade do tronco paulista.

Sua vocação histórica seria a industrialização, para a qual estava quiçá tão habilitada como a colônia norte-americana. Com efeito, somente a industrialização poderia abrir novos horizontes de ocupação produtiva aos capitais acumulados e, sobretudo, à massa antes engajada na mineração, que estiolava agora nas cidades decadentes e nos campos paupérrimos. É certo que a industrialização que se processava, então, nos centros reitores da economia mundial envolvia conhecimentos técnicos que nem Portugal dominara, além de exigir contatos internacionais e recursos financeiros que talvez excedessem as possibilidades de uma província colonial encravada no coração do continente. O obstáculo fundamental à realização desse desígnio residia, porém, numa proibição expressa. Efetivamente, as tentativas mineiras de instalar fábricas toscas pareceram à Coroa tão atentatórias aos seus interesses que todas elas foram destruídas pelas tropas coloniais e se dispôs em 1785 que jamais se tornassem a levantar.

Entrou, assim, em desagregação progressiva a economia e a sociedade que edificara nas regiões mineiras seus arraiais e cidades, formando o maior conglomerado demográfico e a maior rede urbana da colônia. Antigos mineradores e negociantes se transformam em fazendeiros; artesãos e empregados se fazem posseiros de glebas devolutas. Citadinos ruralizados espalham-se pelos matos, selecionando as terras já não pela riqueza aurífera, mas por suas qualidades para moradia e cultivo. Fazem-se roceiros de lavouras de subsistência, criadores de gado, de cavalos, de burros e de porcos, espraiando-se pelas vastidões dos vales que descem e se abrem das serranias onde se explorava o ouro.

Buscando manter sua procedência social, muitas parentelas antes ricas, mas de bens minguantes, emigraram com sua escravaria para sesmarias conseguidas em territórios ermos. Aí reconstituem núcleos de vida autárquica, novamente orgulhosos de só depender do comércio para o provimento do sal, mal escondendo, atrás dessa vaidade, a sua penúria. O núcleo fidalgo destas parentelas continuava cultuando certa erudição. Os pais ensinavam a ler e a escrever aos seus filhos varões, iniciando-os às vezes em rudimentos de latim e de literatura clássica. Mesmo as camadas populares mantêm, por algumas décadas, nesses núcleos de citadinos ruralizados, certos traços culturais de extração urbana européia, como a música erudita. Ainda no século XIX, músicos afeiçoados a quartetos de corda surpreendem o sábio alemão Karl von Martius, que atravessava a região, com convites para tertúlias de puro gosto fidalgo, em pleno sertão mineiro.

A vida citadina se deteriora, conformando cidades mortas, cujas casas são vendidas por preços muito inferiores ao que custaria edificá-las; cujo comércio, instalado em lojas enormes, tem as prateleiras vazias; cuja gente cada vez mais sovina vive de créditos e calotes, só luzindo o antigo brilho nas procissões religiosas, organizadas ao gosto antigo, em que todos trajam a única surrada roupa domingueira. Esta é a Minas Gerais da decadência: conservadora, reservada, desconfiada, taciturna e amarga. A atividade mais rendosa, porque a única paga em dinheiro, virá a ser a burocracia sobrevivente de uns poucos cargos públicos, disputados pela melhor gente.

Esgotado o impulso criador dos bandeirantes que se fizeram mineiros, toda a economia da vasta população do CentroSul entra em estagnação.

Mergulha numa cultura de pobreza, reencarnando formas de vida arcaica dos velhos paulistas que se mantinham em latência, prontas a ressurgir com uma crise do sistema produtivo. A população se dispersa e se sedentariza, esforçando-se por atingir níveis mínimos de satisfação de suas necessidades.

O equilíbrio é alcançado numa variante da cultura brasileira rústica, que se cristaliza como área cultural caipira. É um novo modo de vida que se difunde paulatinamente a partir das antigas áreas de mineração e dos núcleos ancilares de produção artesanal e de mantimentos que a supriam de manufaturas, de animais de serviço e outros bens.

Acaba por esparramar-se, falando afinal a língua portuguesa, por toda a área florestal e campos naturais do Centro-Sul do país, desde São Paulo, Espírito Santo e estado do Rio de Janeiro, na costa, até Minas Gerais e Mato Grosso, estendendo-se ainda sobre áreas vizinhas do Paraná. Desse modo, a antiga área de correrias dos paulistas velhos na preia de índios e na busca de ouro se transforma numa vasta região de cultura caipira, ocupada por uma população extremamente dispersa e desarticulada. Em essência, exaurido o surto minerador e rompida a trama mercantil que ele dinamizava, a paulistânia se "feudaliza", abandonada ao desleixo da existência caipira.

O único recurso com que conta essa economia decadente são as enormes disponibilidades de mão-de-obra desocupada e de terras virgens despovoadas e desprovidas de qualquer valor, que os mais abonados obtêm por concessão em enormes sesmarias e os mais pobres e imprevidentes apenas ocupam como posseiros. Com essa base se instala uma economia natural de subsistência, dado que sua produção não podia ser comercializada senão em limites mínimos. Difunde-se, desse modo, uma agricultura itinerante, a derrubar e queimar novas glebas de mata para cada roçado anual, combinada com uma exploração complementar das terras, das aguadas, das matas, através da caça, da pesca e da coleta de frutos e tubérculos. Sem nada vender, nada podiam comprar, voltando à vida autárquica de economia artesanal doméstica que satisfazia, nos níveis possíveis, às necessidades comprimidas a limites extremos.

Essas novas formas de vida importaram numa dispersão do povoamento por grandes áreas, com o distanciamento dos núcleos familiais. Não impuseram, porém, uma segregação, porque novas formas de convívio intermitente foram estruturando as vizinhas em unidades solidárias. Assim se formaram os bairros rurais, definidos por um informante de Melo e Souza ( 1964 ) como naçãozinhas ou grupos de convívio unificados pela base territorial em que se assentarti, pelo sentimento de localidade que os identifica e os opõe a outros bairros, e pela participação em formas coletivas de trabalho e de lazer.

Para essas populações rarefeitas, que, via de regra, só contavam para o convívio diário com os membros da família, assumem importância crucial certas instituições solidárias que permitem dar e obter a colaboração de outros núcleos nos empreendimentos que exigem maior concentração de esforços. A principal delas é o mutirão, que institucionaliza o auxílio mútuo e a ação conjugada pela reunião dos moradores de toda uma vizinhança para a execução das tarefas mais pesadas, que excediam das possibilidades dos grupos familiares.

Assim, os moradores de um bairro sucessivamente se juntam para ajudar a cada um deles na derrubada da mata para o roçado, para o plantio e a limpeza dos cultivos, bem como para a bateação das safras de arroz e de feijão e, eventualmente, para construir ou consertar uma casa, refazer uma ponte ou manter uma estrada. Sempre que a tarefa interessava imediatamente a um dos moradores, cumpria a este prover alimentação e, ao fim dos trabalhos, oferecer uma festa com música e pinga. Assim, o mutirão se faz não só uma forma de associação para o trabalho, mas também uma oportunidade de lazer festivo, ensejando uma convivência amena.

As vizinhanças mais solidárias organizam-se, ainda, em formas superiores de convívio, como o culto a um santo poderoso, cuja capela pode ser orgulho local pela freqüência com que promove missas, festas, leilões, sempre seguidos de bailes. Cada núcleo, além da produção de subsistência, que absorve quase todo o trabalho, produz uns poucos artigos para o mercado incipiente, como queijos, requeijões e rapaduras, farinha de mandioca, toucinho, lingüiça, cereais, galinha e porcos. A eles se acrescentam os panos de algodão grosseiro, de fabrico doméstico, que chegam a servir como unidade de troca nessa economia não monetária.

A população caipira, integrada em bairros, preenche desse modo suas condições mínimas de sobrevivência. Os que se desgarram desse convívio, penetrando sós nos sertões mais ermos, estão sempre ameaçados de cair em anomia, sendo olhados por todos como gente rara, suspeita de incesto e de todas as formas de alienação cultural.

A vida rural caipira, assim ordenada, equilibra satisfatoriamente quadras de trabalho continuado e de lazer, permitindo atender às carências frugais e até manter os enfermos, débeis, insanos e dependentes improdutivos. Condiciona, também, o caipira a um horizonte culturalmente limitado de aspirações, que o faz parecer desambicioso e imprevidente, ocioso e vadio. Na verdade, exprime sua integração numa economia mais autárquica do que mercantil que, além de garantir sua independência, atende à sua mentalidade, que valoriza mais as alternâncias de trabalho intenso e de lazer, na forma tradicional, do que um padrão de vida mais alto através do engajamento em sistemas de trabalho rigidamente disciplinado.

Só nessas condições de recessão econômica é que a população branca e mestiça pobre e os mulatos livres têm acesso à terra.

Não por uma renovação institucional que garanta a propriedade dos posseiros, mas simplesmente porque, quebrados os vínculos mercantis pela inexistência de um mercado comprador, deixaria temporariamente de ter sentido o monopólio da terra como mecanismo adicional de conscrição da força de trabalho para as lavouras comerciais.

A liberdade incidental dessa existência autárquica duraria pouco, porque logo surgiria outra forma de viabilização da economia de exportação através da grande lavoura e, com ela, a proscrição legal ( 1850 ) do acesso à propriedade da terra pela simples ocupação e cultivo, através da obrigatoriedade da compra ou de formas de legitimação cartorial da posse, que eram inacessíveis ao caipira.

Com efeito, passadas as décadas de maior recesso ( 1790 a 1840 ), surgem e se expandem novas formas de produção agroexportadora, dando início a um lento processo de reaglutinação das populações caipiras em bases econômicas mercantis. Tal se dá com o surgimento de novos cultivos comerciais de exportação, como o algodão e o tabaco e mais tarde o café, que reativariam as regiões caipiras. As estradas melhoram e se refazem os sistemas de transporte por tropas.

Simultaneamente, uma reordenação institucional se vai implantando no nível civil e no eclesiástico: as vizinhanças se transformam em distritos, os arraiais em cidades, providas já de certo aparato administrativo que entra a examinar a legalidade das ocupações de terras. A religiosidade espontânea se institucionaliza com a ereção de freguesias e, depois, de paróquias com vigários permanentes. Por fim, um poder estatal se instala, com serviços de polícia, que se capacitam a acabar com o banditismo espontâneo e a soldo, que se generalizara, aliciando aventureiros e vadios.

Essa penetração do poder público não se faz, porém, como uma extensão da justiça ou como uma garantia de bem comum.

O Estado penetra o mundo caipira como agente da camada proprietária e representa para ele, essencialmente, uma nova sujeição. Desde então, torna-se imperativo para cada pessoa colocar-se sob o amparo de um senhorio que tenha voz frente ao novo poder para escapar às arbitrariedades de que, doravante, está ameaçada. Para isso se fará compadre, ou foreiro, ou sequaz, ou eleitor - geralmente tudo isto -, de quem lhe possa assegurar a proteção indispensável.

Assim, o domínio oligárquico que remonopolizava a terra e promovia o desenraizamento do posseiro caipira, com a ajuda do aparelho legal administrativo e político do governo, ganha força e congruência, passando a exigir também as lealdades do caipira. Tal como ocorre ao sertanejo, seu pavor maior será doravante ver-se desgarrado, sem um senhor poderoso que se interponha, se necessário, entre ele e essa ordem impessoal, antipopular, todo-poderosa, que avança sobre o seu mundo.

O fator básico dessa reordenação social e econômica era o restabelecimento do sistema mercantil e com ele a valorização das propriedades. Desencadeia-se a disputa pelas terras de melhor qualidade, próximas das redes de transporte, utilizáveis para as lavouras comerciais, cada vez mais amplas, de algodão e de tabaco e para as novas lavouras de café, que começam a difundir-se. Nesse processo os cartórios se ativam , verdadeiros ou falsificados, promovendo o desalojamento de antigos posseiros.

Todo um aparato jurídico citadino se coloca a serviço dessa concentração de propriedade. Propriedades pulverizadas por efeito de heranças sucessivas de famílias extensas se reconstituem por compra das parcelas de exploração inviável. Entram em ação os demarcadores de glebas a se fazerem pagar em terras pelos que não têm dinheiro. Multiplicam-se os grileiros, subornando juízes e recrutando as forças policiais das vilas para desalojar famílias caipiras, declaradas invasoras de terras em que sempre viveram. Postas fora da lei e submetidas à perseguição policial, elas são, finalmente, escorraçadas das terras à medida que sua exploração comercial se torna viável.

Com o crescimento prodigiosamente rápido das culturas de café, se acelera esse processo de reordenação social. O caipira é compelido a engajar-se no colonato, como assalariado rural, ou a refugiar-se na condição de parceiro, transferindo-se para as áreas mais remotas ou para as terras cujos proprietários não têm recursos para explorar os novos cultivos. O caipira apega-se a essa saída com todas as suas forças, procurando tornar-se parceiro, como meeiro, financiado pelo proprietário a quem entrega metade da produção; ou como terceiro, trabalhando por conta própria, mas pagando pelo direito ao uso da terra um terço das colheitas.

Essa condição lhe permite preservar a autonomia na marcação do ritmo de trabalho e lhe dá condições de manter suas formas globais de adaptação e de vida. Assegura-lhe, ainda, um status de quase proprietário, assim tratado pelos vendeiros, mediante a garantia de crédito, de colheita a colheita, que não é dado ao trabalhador assalariado. A implantação do novo sistema produtivo se processa gradativamente, admitindo, por algum tempo, a coexistência das lavouras comerciais com a parceria tradicional. Isto porque o caráter mercantil da produção só afetava inicialmente a atividade produtiva central do proprietário, que não absorvia todas as terras, e até se conciliava bem com a presença de uma reserva de mão-de-obra na própria fazenda, aliciável para as tarefas que exigiam maior número de trabalhadores.

Aos poucos, porém, o novo sistema ganha força e congruência, indo buscar e desalojar o caipira em qualquer ermo em que se embrenhe, pela expansão contínua das áreas ocupadas pela economia de fazenda, obrigando-o a renovar sua opção entre o engajamento como assalariado rural ou novos deslocamentos, à procura de áreas mais atrasadas, ainda compatíveis com a parceria. A própria parceria se vai tornando menos satisfatória, confinada às terras mais pobres e mais distanciadas do mercado e onerada com novas exigências. Dentre elas o cambão, forma de corvéia que obriga o caipira e sua família a dar dias de trabalho gratuito ao proprietário e dias suplementares por cada animal de montaria que possua.

Apesar de todos esses óbices, o caipira espoliado de suas propriedades e sucessivamente expulsado de suas posses continua resistindo a submeter-se ao regime de fazenda. Toda a sua experiência o faz identificar o trabalho de ritmo dirigido como uma derrogação de sua liberdade pessoal, que o confundiria com o escravo. Mesmo depois de abolida a escravidão ( 1888), permanece esse critério valorativo, que considera humilhante o trabalho com horário marcado por toque de sino e dirigido por um capataz autoritário.

O caipira se marginaliza, apegando-se a uma condição e independência inviável sem a posse da terra. Assim é que, apesar da existência de milhões de caipiras subocupados, o sistema de fazendas teve de promover, primeiro, uma intensificação do tráfico de negros escravos e de apelar, depois, para a imigração européia maciça, que coloca milhões de trabalhadores à disposição da grande lavoura comercial.

Confinado nas terras mais sáfaras, enterrado na sua pobreza, o caipira vê, impassível, chegarem e se instalarem, como colonos das fazendas, multidões de italianos, de espanhóis, alemães ou poloneses para substituírem o negro no eito, aceitando uma condição que ele rejeita. Essa nova massa vinha, porém, de velhas sociedades, rigidamente estratificadas, que a disciplinara para o trabalho assalariado, e via na condição de colono um caminho de ascensão que faria dela talvez, um dia, pequenos proprietários. O caipira, despreparado para o trabalho dirigido, culturalmente predisposto contra ele, desenganado, desde há muito, de tornar-se proprietário, resiste no seu reduto de parceiro, que é para ele a condição mais próxima do ideal inatingível de granjeiro em terra própria.

As páginas de Monteiro Lobato que revelaram às camadas cultas do país a figura do Jeca Tatu, apesar de sua riqueza de observações, divulgam uma imagem verdadeira do caipira dentro de uma interpretação falsa. Nos primeiros retratos, Lobato o vê como um piolho da terra, espécie de praga incendiária que atiçava fogo à mata, destruindo enormes riquezas florestais para plantar seus pobres roçados. A caricatura só ressalta a preguiça, a verminose e o desalento que o faziam responder com um "não paga a pena" a qualquer proposta de trabalho. Descreve-o em sua postura característica, acocorado desajeitadamente sobre os calcanhares, a puxar fumaça do pito, atirando cusparadas para os lados. Quem assim descrevia o caipira era o intelectual-fazendeiro da Buquira, que amargava sua própria experiência fracassada de encaixar os caipiras em seus planos mirabolantes.

O que Lobato não viu, então, foi o traumatismo cultural em que vivia o caipira, marginalizado pelo despojo de suas terras, resistente ao engajamento no colonato e ao abandono compulsório de seu modo tradicional de vida. É certo que, mais tarde, Lobato compreendeu que o caipira era o produto residual natural e necessário do latifúndio agroexportador. Já então propugnando, ele também, uma reforma agrária.

O sistema de fazendas, que se foi implantando e expandindo inexoravelmente para a produção de artigos de exportação, cria um novo mundo no qual não há mais lugar para as formas de vida não mercantis do caipira, nem para a manutenção de suas crenças tradicionais, de seus hábitos arcaicos e de sua economia familiar. Com a difusão desse sistema novo, o caipira vê desaparecerem, por inviáveis, as formas de solidariedade vicinal e de compadrio, substituídas por relações comerciais. Vê definhar as artes artesanais, pela substituição dos panos caseiros por tecidos fabris, e, com elas, o sabão, a pólvora, os utensílios de metal, que já ninguém produz em casa e devem ser comprados.

A ocupação agrícola das terras, o cercamento dos latifúndios com aramados, a expansão dos pastos e a presença do gado, mudando as condições ecológicas, tornam impraticáveis a caça e a pesca. Assim, perde o caipira um complemento alimentar básico que permitia melhorar sua dieta frugal e carente. Ao fim do processo de implantação do sistema de fazendas, mesmo nos ermos onde se acoitara, fugindo ao engajamento compulsório, o caipira tenta manter uma condição tornada obsoleta e inviável.

O golpe derradeiro na vida do caipira tradicional, que acaba por marginalizá-lo definitivamente, se dá com a ampliação do mercado urbano de carne, que torna viável a exploração das áreas mais remotas e de terras pobres ou ricas para a criação do gado. A partir de então, a cada roça de caipira ainda consentida para derrubar a mata ou para desbastar capoeiras se segue o plantio de capim e a desincorporação automática da área do sistema antes prevalecente, para devotá-la ao pastoreio. As antigas propriedades latifundiárias, que se faziam autárquicas com o concurso de aglomerados de caipiras estruturados em bairros, vão sendo despovoadas de gente para encher-se de gado.

Nessas fazendas de criação, uma parcela ínfima de trabalhadores substitui, como vaqueiros, a antiga população residente que se vê, assim, expulsa. O novo procedimento, estando ao alcance até mesmo dos latifundiários menos providos de recursos, porque utiliza o próprio caipira e até a parceria para liquidar com ele, importa numa limitação progressiva das terras disponíveis para o trabalho agrícola.

Massas de caipiras são, assim, obrigadas a novas opções. Agora já não se oferece nem mesmo a oportunidade de engajar-se no colonato. Trata-se de escolher entre permanecer na própria parceria, tornada precaríssima, em que ainda subsiste; mergulhar no mundo dos posseiros invasores de terras alheias; concentrar se nos terrenos baldios como reserva de mão-de-obra para servir às fazendas despovoadas, nas quadras de trabalho intenso; ou, finalmente, incorporar-se às massas marginais urbanas como aspirante à proletarização.

As instituições básicas da cultura caipira desintegraram-se ao impacto da onda renovadora representada pelas novas formas de produção agrícola e pastoril de caráter mercantil. Foram destruídas, porém, sem que se ensejasse aos agregados rurais formas compensatórias de acomodação que lhes garantissem um lugar e um papel na nova estrutura. Esse papel teria sido sua integração na categoria de pequenos proprietários que, talvez, lhes permitisse incorporar as inovações tecnológicas, alargando as suas aspirações à medida que se integrassem na economia nacional. O monopólio da terra, fundado no domínio do centro do poder político pela oligarquia agrícola, obliterou esse caminho.

Uma comunidade caipira que conserva as formas tradicionais de sociabilidade é, hoje, uma sobrevivência rara, confinada às áreas mais remotas e menos integradas no sistema produtivo. Todavia, o número de trabalhadores autônomos rurais, em sua enorme maioria parceiros e pequenos arrendatários, supera 5 milhões. Já não são aqueles caipiras de modos de existência arcaica e pobre mas satisfatória, a seu próprio juízo. Constituem uma vasta camada marginal à estrutura e que suporta as mais penosas condições de vida, ainda inferiores aos mínimos quase incomprimíveis da economia caipira. E muito piores, porque subsistem face a face com condições superiores de vida, de que têm notícia ou que podem apreciar e que atuam como ideais conformadores de suas aspirações. É-lhes impossível, todavia, integrar-se nesses novos estilos de consumo, pela estreiteza da própria estrutura social em que estão inseridos, fundada na propriedade latifundiária, incapaz de melhorar as condições de vida da massa de parceiros e, também, de incorporá-los no trabalho assalariado.

Caem, assim, na condição de trabalhadores eventuais, os bóias-frias. A rapidez com que, em diversas regiões, nos últimos anos, os parceiros se interessaram pelo movimento de sindicalização rural, antecipando-se aos núcleos de assalariados agrícolas, indica, de um lado, sua independência maior e sua capacidade de conduta autônoma e, de outro, o grau de conscientização de sua própria miséria e de revolta contra a ordem social que a sustenta. Essa mole de milhões de caipiras, que são os verdadeiros camponeses do Brasil, porque reivindicantes seculares da posse das terras que trabalham, está como que à espera do surgimento das formas de luta que, exprimindo sua inconformidade, desencadeiem a rebelião rural.

O sistema de fazendas alcançou, com a implantação das grandes lavouras de café, um novo auge só comparável ao êxito dos engenhos açucareiros. Seu efeito crucial foi reviabilizar o Brasil como unidade agroexportadora do mercado mundial e como um próspero mercado importador de bens industriais. Outro efeito da cafeicultura foi modelar uma nova forma de especialização produtiva e configurar um outro modo de ser da sociedade brasileira. Culturalmente, a nova feição é basicamente caipira. Mas a essa matriz se acrescentam outras dimensões pela incorporação, na primeira fase, de uma grande massa escrava e, mais tarde, da contribuição de imigrantes europeus, integrados maciçamente no colonato. A essas matrizes se somariam, ainda, elementos tomados de outras variantes culturais brasileiras pela convergência para as fazendas de gente vinda das diversas regiões do país.

O cultivo do café, que se praticava um pouco por todo o Brasil, como raridade e para consumo local, ganha significação econômica com as primeiras grandes lavouras plantadas na zona montanhosa próxima ao porto do Rio de Janeiro. O sucesso das exportações - que crescem de 3178 sacas, na década de 1820, a 51631 sacas, na década de 1880 - promove rapidamente o novo cultivo à liderança em que se manterá, daí em diante, como a atividade econômica fundamental do Brasil, passando de 18,4 por cento do valor das exportações, na primeira das citadas décadas, a 61,5 por cento, na última.

Para implantar o empreendimento cafeeiro contava-se com abundante disponibilidade de terras apropriadas e de mão-de-obra escrava subutilizada desde a decadência da mineração e, ainda, com um sistema adequado de transporte e de comercialização.

O modelo empresarial que primeiro se impõe é a fazenda escravocrata, que tem de comum com o sistema de plantação açucareira a grande extensão territorial, o alto grau de especialização e de racionalização das atividades produtivas, o caráter mercantil do produto que exporta e a necessidade de concentrar nas fazendas grandes contingentes de mão-de-obra servil, rigidamente disciplinada. Exige também enormes investimentos financeiros, sobretudo para a aquisição de terras que se valorizam rapidamente e para a compra da escravaria e sua reposição, uma vez que as singelas instalações de beneficiamento são construídas nas próprias fazendas. O cafezal, como um plantio permanente, demanda grande concentração de mão-de-obra na etapa preparatória da derrubada das matas e de cuidados especiais nos primeiros quatro anos. Daí em diante, só reclama grande quantidade de mão-de-obra por ocasião da colheita.

Nessas circunstâncias, a fazenda escravocrata conta sempre com um excedente de trabalhadores utilizado nas tarefas de subsistência e no artesanato. Estrutura-se assim, como grande unidade autárquica, em que a atividade agrícola-mercantil é cercada por uma série de atividades ancilares, cujo pessoal se mobiliza todo para a colheita.

As fazendas escravocratas de café da área montanhosa fluminense alcançaram logo o vale do Paraíba e, daí, se irradiaram, progressivamente, para as matas de Minas Gerais, do Espírito Santo e de São Paulo, principalmente. As maiores delas eram comunidades de quinhentas até 2 mil pessoas, sobretudo escravos, que produziam quase tudo que consumiam, desde a roupa da escravaria, as casas, os mantimentos, até as instalações e o mobiliário da própria fazenda. Mas também adquirem muitos bens industriais, tanto para o consumo dos fazendeiros como para o trabalho.

O recrutamento da força de trabalho servil para a cafeicultura se fez, primeiro, regionalmente, com a aquisição dos negros excedentes das zonas de mineração. O sucesso do empreendimento permitiu, a seguir, a promoção de uma verdadeira drenagem de escravos de outras áreas decadentes, como os algodoais maranhenses e os engenhos açucareiros. A tudo isso se acrescenta, depois, a importação direta de cerca de meio milhão de africanos. Apesar desses suprimentos, as fazendas de café viviam em carência permanente de mão-de-obra, em virtude de seu ritmo intenso de expansão e de desgaste da escravaria no eito, expressivo das condições miseráveis de vida e de trabalho a que eram submetidos. Nos cinco anos imediatamente anteriores à proibição do tráfico ( 1850 ), entram oficialmente nos portos brasileiros cerca de 250 mil escravos africanos, cujo preço seria aproximadamente de 15 milhões de libras esterlinas, que equivaliam a mais de 36 por cento do valor das exportações.

Nessa fase, o proprietário reside na fazenda, compondo o mesmo quadro contrastante do Nordeste açucareiro, representado pela oposição entre a vivenda senhorial e a senzala. Faz-se servir, também, de numerosa criadagem doméstica a que acrescenta, por vezes, preceptores europeus para a educação dos filhos na própria fazenda e padres residentes para os serviços religiosos.

A partir da segunda metade do século passado, quando o café já domina a economia brasileira, os cafeicultores se constituem numa oligarquia nacional cada vez mais poderosa. Faz-se mais autêntica e forte que a açucareira, porque domina todo o complexo econômico do café, desde o plantio à exportação, enquanto aquela sempre permaneceu submetida ao controle do patronato parasitário de exportadores e, sobretudo, porque se capacita, prontamente, a utilizar o poder político na defesa de seus interesses econômicos.

A proximidade da Corte imperial facilitava, também, o exercício dessa influência, que acaba se tornando hegemônica.

Nessa camada senhorial hegemônica é que o império brasileiro procurou fundar a nobreza que o sustentaria, distribuindo títulos nobiliárquicos e recrutando nela os chefes de gabinete e ministros de Estado. Os cafeicultores tornam-se, assim, os barões, viscondes, condes e marqueses do Império, contraparte fidalga do sistema escravocrata, consciente de que não sobreviveria à abolição, como efetivamente ocorreu quando esta se tornou inevitável pela pressão da opinião pública citadina.

A abolição, representando embora a simples devolução do escravo à posse de si mesmo, importava em dois efeitos econômicos cruciais e nas mais profundas conseqüências sociais. No plano econômico, expropria a parcela maior de capital da principal classe proprietária, arruinando-a, e a compele a uma mais ampla redistribuição da renda com a remuneração do trabalho através do salário. A ruína financeira dos barões do café provoca uma abrupta substituição de proprietários dos cafezais com conseqüências positivas para o sistema econômico global, dadas as características modernas do novo empresariado e a vantagem que representaria para ele não ter que investir recursos na compra de escravos. O segundo efeito teve conseqüências sociais mais profundas, pela elevação que propiciaria do nível de vida das populações, principalmente nos setores em que havia disputa de mão-de-obra, como era o caso da cafeicultura. Para o escravo, a abolição representou a oportunidade de exercer opções sobre o seu destino e de reconquistar a dignidade humana e o auto-respeito de que fora despojado. Essa liberdade seria, porém, limitada pelo monopólio da terra, que o obrigaria a engajar-se no serviço de algum proprietário e ater-se ao subconsumo a que sempre estivera submetido.

Com efeito, o negro escravo fora condicionado, por toda a sua experiência anterior, a lutar contra o seu desgaste no trabalho, do qual procurou se poupar de todos os modos, como medida elementar de autopreservação. Fora igualmente habituado a uma dieta frugalíssima e a posses mínimas, que se reduziam aos trapos que trazia sobre o corpo. E fora, ainda, reduzido a si mesmo, como indivíduo, pela impossibilidade de manter vínculos familiares, já que suas mulheres eram também coisas alheias e seus filhos igualmente propriedade do amo.

Com as motivações elementares decorrentes desse condicionamento o negro forro inicia sua integração no papel de trabalhador livre. Sua reação inevitável é reduzir as obrigações de trabalho disciplinado ao mínimo indispensável para prover suas elementaríssimas necessidades. Nessas condições, nenhum estímulo representado pela elevação do ganho o atingirá. O valor fundamental que cultua é o ócio e a recreação.

Seu nível de aspirações fora entorpecido pela inculcação de valores que limitavam ao extremo o número de coisas desejáveis e apropriadas à condição humana que ele se atribuía. A construção de uma outra auto-imagem só seria alcançada nas gerações seguintes, que, crescendo livres, se fariam progressivamente mais enérgicas e ambiciosas. Assim, o negro retoma o trabalho no eito como assalariado livre para exercê-lo com eficácia ainda menor do que a que alcançara como escravo. E quando se encontra próximo a áreas de terras desocupadas prefere caipirizar-se, integrando um núcleo de economia de subsistência, a engajar-se na condição de assalariado rural
permanente.

Alarga-se, por esse processo, com a abolição, a camada marginal absenteísta que refuga o trabalho nas fazendas. Aos caipiras originais, brancos e mulatos, por vezes ex-proprietários ou posseiros, pleiteantes eternamente insatisfeitos das terras em que trabalham, se soma essa nova camada de marginalizados. Esses, em condições ainda mais precárias porque, em lugar de reivindicar a posse da terra e uma condição de dignidade superior à do colono, o que desejam é simplesmente sobreviver, atendendo a seu horizonte limitadíssimo de aspirações. Nessas circunstâncias, ao engrossarem a massa marginal, esses contingentes negros alforriados se constituem num subproletariado que, além de mais miserável, se veria segregado da primeira, predominantemente branca e mestiça, pelo preconceito racial que dificultará a tomada de consciência de todos eles sobre a exploração de que uns e outros eram objeto.

A abolição, seguida do regime republicano que liquida com a escravidão e com a fidalguia, não abala, porém, o reinado do café, que se faz cada vez mais poderoso. É regido, agora, por cafeicultores que se fazem os grandes próceres republicanos e por um novo sistema de trabalho que se irá aproximando paulatinamente do assalariado. É a cafeicultura do colonato que se encaminha para a monocultura e se funda numa divisão de trabalho na qual os cuidados agrícolas na plantação são entregues principalmente a imigrantes. europeus e as outras tarefas a trabalhadores eventuais, de fora da fazenda. A derrubada da mata para o plantio de novos cafezais fica a cargo de grupos móveis especializados que trabalham, geralmente, por empreitada com mão-de-obra ex-escrava ou de antigos parceiros. A colheita, exigindo maior concentração de trabalhadores faz-se, também, com a ajuda de estranhos aliciados nas mesmas fontes, que acabam por estabelecer-se nas vizinhanças das fazendas como reservas de mão-de-obra.

As novas fazendas já se abrem na zona de matas do interior de São Paulo, sendo por vezes antecipadas pelos trilhos das estradas de ferro que lhes abrem caminho rumo a oeste. A introdução do trabalhador europeu nas fazendas de café foi um processo lento, alcançado pela pertinácia de cafeicultores empenhados na solução de seu maior problema: a falta de mão-de-obra, agravada primeiro pela proibição do tráfico e depois pela abolição. As primeiras tentativas que procuravam sujigar o imigrante a um sistema renovado da velha parceria provocaram reclamações consulares e escândalos na imprensa européia, a que os brasileiros são especialmente sensíveis. Eram prematuras, porque, apesar das condições de penúria prevalecente na Europa, o imigrante não aceitava a coexistência com o escravo. Somente após a abolição, estabeleceu-se uma onda regular e ponderável de provimento de mão-de-obra européia, que, em fins do século passado, atingia a 803 mil trabalhadores, sendo 577 mil provenientes da Itália.

Essa disponibilidade de mão-de-obra européia correspondia à marcha do capitalismo-industrial que ia desenraizando dos campos e lançando às cidades mais gente do que as fábricas podiam ocupar. Cada país europeu atingido pelo processo exportava milhões de pessoas. Primeiro emigram das Ilhas Britânicas; depois da França, mais tarde da Alemanha, e da Itália; por fim da Polônia, da Rússia e de países balcânicos. Dá-se, assim, uma oferta de trabalhadores europeus mais barata que os escravos africanos e também mais eficazes por sua adaptação aos novos regimes produtivos.

Seu ingresso no mercado de trabalho brasileiro além de representar a solução salvadora dos problemas da cafeicultura teve vários outros efeitos. Entre eles, o de fator dissuasório da luta silenciosa e incruenta que caipiras e negros forros travavam pela conquista da condição de granjeiros. O de desvalorizar o trabalhador nacional, que, em face da disponibilidade dessa força de trabalho mais qualificada, perde na competição e se vê impedido de galgar aos poucos postos mais bem remunerados que o sistema criaria. Finalmente, o de orientar para os seringais da Amazônia o translado de sertanejos nordestinos, porque sua rota natural, que seria a marcha para o sul, se vê obstruída pela saturação por imigrantes europeus da busca de braços para a grande lavoura. Outro resultado dessa incorporação maciça de trabalhadores estrangeiros foi a de retardar a proletarização e consequente politização como operários fabris dos antigos caipiras e dos ex-escravos, que só teriam oportunidade de ascender aos setores mais dinâmicos da economia modernizada depois de esgotada a disponibilidade de mão-de-obra européia.

Os colonos eram contratados na Europa mediante o fornecimento de passagens para a família, a garantia de ajuda de manutenção n,o primeiro ano e o recebimento de um trato de terras para suas lavouras de subsistência. A essas condições foi necessário acrescentar-se, mais tarde, um salário anual fixo e um ganho variável segundo a produção. Como as despesas de passagem eram cobertas pelo governo, só as outras condições pesavam diretamente sobre o fazendeiro. Essas regalias, muito superiores às oferecidas ao caipira, explicam-se pela capacidade do colono - assistido pelos corpos consulares e apoiado pela imprensa de seus países - para exigir melhores condições de trabalho.

Efetivamente, é o colonato imigrante que, por esse sistema, implanta o regime assalariado na vida rural brasileira, aceitando uma rigorosa disciplina de trabalho mas, em compensação, fazendo-se pagar efetivamente e pagar mais. Movido por um horizonte mais amplo de aspirações e contando com um melhor ajustamento ao trabalho assalariado, o imigrante produzia mais e melhor. Alguns conseguiam depois de alguns anos, mercê de sua capacidade de poupança, libertar-se da condição.

Alguns conseguiam depois de alguns anos, mercê de sua capacidade de poupança, libertar-se da condição de colono para se fazerem pequenos empresários. Seus filhos já brasileiros seriam operários dos centros nacionais industriais nascentes.

As novas fazendas estruturadas de acordo com o sistema de colonato se fazem progressivamente monocultoras e, simultaneamente, acrescentam à plantação um elemento a mais, que é o barracão. Aí, o fazendeiro se faz comerciante para prover aos colonos de tudo que necessitam, mas também para recuperar o máximo dos salários pagos. Assim, os contratos mais vantajosos e já monetários passam a deteriorar-se para o trabalhador rural, sujeitos a duas reduções. Primeiro, a inflação que diminui substancialmente o valor dos contratos de plantio de café, geralmente de quatro anos. Segundo, a exploração nos fornecimentos feitos pelo barracão. Nessas circunstâncias, o colono só conseguiria poupar à custa de uma compressão violenta de seus gastos, permanecendo a maioria deles jungida ao sistema por dívidas insaldáveis e vendo esvair-se sempre a suspirada oportunidade de se fazerem granjeiros.

No sistema de colonato, o fazendeiro já é um absenteísta. Reside na cidade e dirige sua propriedade através de administradores. Mantém, contudo, no regime republicano, a posição hegemônica conquistada no Império, perpetuando-se no poder um patriciado oligárquico, que coloca a serviço do patronato cafeicultor toda a máquina governamental. A própria autonomia dos estados, de que a primeira República se fez tão zelosa, explica-se por esse esforço continuado do cafeicultor de tudo submeter aos seus interesses. Entre eles, a transferência ao Estado dos controles e da faculdade de dispor das terras devolutas, que assumiram enorme importância nas áreas da cafeicultura.

Além do controle e do comando político que faziam sair de suas hostes, quase todos os presidentes civis e a maioria dos ministros, os fazendeiros de café não só mantiveram mas aprimoraram seus velhos mecanismos de defesa como classe.

O principal deles era, talvez, o controle da taxa de câmbio - que variava cada vez que caíam os preços internacionais do café -, para continuar a pagar-lhes a mesma importância em moeda local. A essa degradação da moeda, seguem-se empréstimos externos, destinados a defendê-la, o que aumentava continuamente a dívida externa do país, mas permitia transferir os prejuízos do setor exportador para a vasta camada importadora, constituída por toda a população, num país sem indústria, que dependia do comércio internacional para quase tudo.

Mais tarde, esses procedimentos seriam levados a extremos com a política de "valorização", que consistia na compra das safras para estocar com recursos obtidos pelos governos estaduais, mediante empréstimos no exterior. Quando sobreveio a crise de 1929, novas medidas se impuseram em face da impossibilidade de obter empréstimos internacionais.

O governo federal foi induzido, então, a assumir o papel de comprador. Quando os estoques alcançavam quantidades fabulosas, notoriamente invendáveis, era levado a comprar o café para queimá-lo a fim de manter os preços internacionais. Os principais efeitos dessa política - além da socialização dos prejuízos pela transferência para a coletividade das perdas decorrentes do subsídio à cafeicultura - foram a expansão constante das plantações e, com elas, da oferta, agravando-se cada vez mais o problema. Outra conseqüência foi seu efeito de subvenção indireta à implantação da cafeicultura em outros países pela manutenção de preços atrativos, com o que o Brasil acabou por perder sua posição quase monopolística.

Esses mecanismos, conduzindo à retração das rendas públicas e às emissões para custear a compra das safras e para dar cobertura aos déficits orçamentários decorrentes, provocaram enorme pressão inflacionária, mantendo o país em permanente crise financeira, de que só os exportadores conseguiam safar-se.

Nenhuma força pôde, entretanto, opor-se a esses interesses hegemônicos, cujo desatendimento conduziria a crises ainda mais graves pela recessão, que resultaria do abandono das plantações, principal fonte de trabalho remunerado e quase único setor de aplicação de capitais.

A oligarquia cafeeira, como detentora dos maiores poderes políticos no período imperial e no republicano, é responsável por algumas das deformações mais profundas da sociedade brasileira. A principal delas decorre de sua permanente disputa com o Estado pela apropriação da renda nacional, da sua arraigada discriminação contra os negros escravos ou forros e contra os núcleos caipiras que lhe resistiam, bem como contra as massas pobres que cresciam nas cidades. Nessa disputa e nessa discriminação senhorial é que devem ser procuradas as razões pelas quais o Brasil se atrasou tão gritantemente em relação aos demais países latino-americanos e a qualquer outro povo do mesmo nível de desenvolvimento, tanto na abolição da escravatura como na imposição ao Estado da obrigação de assegurar educação primária à população e na extensão aos trabalhadores rurais dos direitos de sindicalização e de greve.

A Independência e a República, que em quase toda a América deram lugar a um profundo esforço nacional por elevar o nível cultural da população, capacitando-a para o exercício da cidadania, não ensejaram um esforço equivalente no Brasil. Esse descaso para com a educação popular bem como o pouco interesse pelos problemas de bem-estar e de saúde da população explicam-se pelo senhorialismo fazendeiro e pela sucessão tranqüila, presidida pela mesma classe dirigente, da Colônia à Independência e do Império à República. Não ensejando uma renovação de liderança, mas simples alternância no mesmo grupo patricial oligárquico, se perpetua também a velha ordenação social.

Nessas condições, toda participação democrática na vida política se reduz aos grupos de pressão oligárquicos em disputa pelo controle das matérias que afetavam seus interesses.

Nessa república de fazendeiros, os problemas do bem público, da justiça, do acesso à terra, da educação, dos direitos dos trabalhadores eram debatidos tal como a democracia, a liberdade e a igualdade. Isto é, como meros temas de retórica parlamentar. A máquina só funcionava substancialmente para mais consolidar o poder e a riqueza dos ricos. Como o resultado social dessa política era um atraso vexatório com respeito aos Estados Unidos, por exemplo, se desenvolve nas classes dominantes uma atitude de franco descontentamento para com o próprio povo, cuja condição mestiça ou negra explicaria o atraso nacional.

Em consequência, aos motivos econômicos se somam incentivos ideológicos para a realização de enormes investimentos públicos a fim de atrair ao país colonizadores brancos, na qualidade de reprodutores destinados a "melhorar a raça". E não se queriam lusitanos porque também contra seus avós portugueses se rebelava a alienação oligárquica, convencida de sua própria inferioridade racial e que explicava seus êxitos pessoais como exceções.

Examinando a expansão da economia cafeeira verifica-se que espacialmente ela constituiu uma fronteira móvel que, envolvendo milhões de pessoas, progrediu da costa fluminense para o oeste. Nessa marcha atingiu, primeiro, as matas do estado do Rio de Janeiro, depois as do Espírito Santo, mais tarde as da zona da mata do sul de Minas Gerais, por fim, as de São Paulo. Essa marcha prosseguiu pelo noroeste do Paraná, penetrando em território paraguaio, e subiu, depois, pelo Mato Grosso do Sul e Rondônia.

Essa onda móvel difundiu-se envolvendo bolsões ocupados por índios hostis até então inatingidos pela civilização, nas matas de Minas Gerais e do Espírito Santo (1910) e de São Paulo ( 1911 ), bem como formas antigas de ocupação econômica como os núcleos caipiras, a tudo levando de roldão.

Avançou instrumentada por estradas de ferro e rodovias que a ligavam aos portos, conduzindo, floresta adentro, um sistema comercial articulado internacionalmente, semeando vilas e cidades onde se instalava. Representou, por isso, um papel modernizador e integrador que acabou criando a área econômica mais ampla e de maior densidade do país.

O café não se alastra, porém, sobre novas terras de mata, mantendo as já conquistadas. Sua retaguarda é sempre o deserto e neste fato se encontra o motor real do seu impulso itinerante.

Sendo a terra o fator mais abundante e relativamente menos oneroso da produção cafeeira, sobre ela é que recai, sempre que possível, a poupança empresarial. Derruba-se a floresta virgem e plantam-se novos cafezais sem quaisquer cuidados culturais que importassem em ônus para o empresário, usando e desgastando a terra num primitivismo tecnológico que quase transformava a agricultura num extrativismo.

Assim é que só em zonas de excepcional fertilidade do solo, os cafezais se fixam realmente como uma cultura permanente. O procedimento comum foi sempre abrir as  lavouras esperando obter safras por uma década ou menos, até que uma geada destruísse a plantação ou que o cafezal envelhecesse por desgaste do solo.

Operando através desse processo extrativista, a cafeicultura se estruturava como uma fronteira viva que se movia sempre à frente, conduzindo consigo os capitais, os trabalhadores e a riqueza; e deixando para trás enormes áreas devastadas e erodidas.

Aí se instala o pastoreio, geralmente em mãos de outro proprietário, que procura fazer vicejar capim onde outrora crescia o cafezal. A nova economia não pode manter, porém, o mesmo nível de captação de mão-de-obra; nem de utilização da estrada de ferro que atravessara a mata a duras penas e a custos sociais altíssimos; nem a rede urbana que se implantara. Toda a região entra, assim, em decadência, configurando a paisagem típica das cidades mortas e estabelecendo outra sociedade e cultura da pobreza.

Eventualmente, em algumas áreas se reativa uma nova produção agrícola, como ocorre em algumas áreas que se tornam principais produtoras de açúcar e álcool. No Paraná, a opção pelo trigo e pela soja foi a solução, porque as melhores terras estavam sujeitas a geadas. O preço dessa reversão foi a decadência de uma zona rural de prosperidade generalizada, para uma outra paisagem monocultora, que atirou mais de um milhão de lavradores à procura de novas áreas tão distantes como Rondônia.

Para avaliar o preço social desse desgate de terras basta comparar o número de trabalhadores que podem ser empregados numa mesma área para as tarefas de derrubada da mata e do plantio dos cafezais; sua posterior redução, quando cumpre apenas cuidar da plantação e fazer as colheitas anuais; e, finalmente, quando desgastada é entregue à criação de gado. A proporção - que é de cem trabalhadores na primeira etapa para trinta na segunda e um, apenas, na última - explica como e por que a fronteira móvel do café, integrada por milhões de trabalhadores, segue sempre à frente, deixando atrás de si um quase deserto humano. E, como consequência, a morte das cidades, os déficits das ferrovias, a falência do comércio.

Em certas áreas de terras mais pobres, como o nordeste de São Paulo e alguma zonas paranaenses, as cidades nascentes da época da derrubada e do plantio mal chegam a amadurecer pela rapidez com que o surto as atravessa. Morrem antes de crescer, com suas igrejas incompletas, com o casario que jamais se conclui, o comércio decadente, e todos os que se agarram a esses bens lançados à miséria.

No Paraná, o café encontrou uma terra de promissão na região de Londrina, pela qualidade extraordinária dos solos e, sobretudo, porque ali a ocupação não se fez através do latifúndio.

A zona foi colonizada por uma companhia inglesa na forma de pequenas propriedades, ensejando a instalação, como proprietária, de milhares de famílias empenhadas em defender um solo que é seu.

A sociedade resultante contrasta vivamente com as zonas cafeeiras do latifúndio, revelando suas singularidades no nível de vida do povo, na prosperidade crescente das cidades e do seu comércio, e na conduta política autônoma, oposta às velhas oligarquias paranaenses e paulistas. Para além da zona de Londrina, todavia, a fronteira móvel do café prosseguiu por terras já impraticáveis e, geralmente, pela expansão dos latifúndios. Nos últimos anos, essa onda, que só tem diante de si o rio Paraná, começou a penetrar no Paraguai.

O que não aconteceu com o Brasil aconteceu em São Paulo, que se viu avassalado pela massa desproporcional de gringos que caiu sobre os paulistanos. Em 1950, os estrangeiros, principalmente italianos e seus descendentes, eram mais numerosos do que os paulistas antigos. A esse soterramento demográfico corresponde uma europeização da mentalidade e dos hábitos.

A própria Semana de Arte Moderna, que foi uma reação a esse avassalamento, foi também por seu estilo a forma mais expressiva desse eurocentrismo. Tudo bem, porque essa gente quase toda acabou se abrasileirando belamente. Restam, porém, aqui e ali, alguns alunados apátridas que ainda não saíram do fundo do navio em que seus avós vieram. Perderam sua pátria de origem e estão soltos à busca de um pouso.

Seu único compromisso é consigo mesmos e com as vantagens que possam ganhar. Não têm nenhuma noção e muito menos orgulho da façanha que representou construir e levar à independência esse paísão que já acharam feito. Em consequência, tal como os argentinos fazem com seus cabecitas negras, chegam a olhar os trabalhadores nordestinos e inclusive os caipiras paulistas, a que chamam baianos, com desprezo.

Ouvi um politicão paulista dizer que o que São Paulo tem de analfabetismo e atraso é culpa dessa presença baiana, e propor que se pagasse a viagem de volta deles para suas terras. Afortunadamente essa é uma minoria.

Texto de Darcy Ribeiro em "O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil", Companhia das Letras, 1995, excertos pp. 364-407. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.



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