“Pois tudo o que narro, eu vi; e se acaso me enganei ao vê-lo, com certeza não te engano, ao contá-lo a ti. ”
( Stendhal, 'O Vermelho e o Negro')
Há 150 anos morria Jean-Baptiste Debret (Paris, 18 de abril de 1768 - Paris 11 de junho de 1848), o francês que melhor observou a vida brasileira entre 1816 e 1831, e que inventou as imagens mais persistentes da passagem do período colonial ao primeiro império. Em suas pinturas, desenhos, aquarelas e litografias ficaram registrados alguns dos principais episódios da vida da corte, como, por exemplo, a coroação de d. Pedro I (óleo sobre tela, acervo do Itamaraty, Brasília) e a movimentação popular nas ruas e praças de cidades como o Rio de Janeiro (litografias do álbum , além de aquarelas, desenhos e litografias reunidas por Raymundo Ottoni de Castro Maya, Museu da Chácara do Céu, Rio de Janeiro, entre outras coleções).
A obra produzida por Debret durante sua estada de 16 anos no Brasil é tida como o registro mais fiel da época de d. João VI e de d. Pedro I. Essa iconografia da vida brasileira é considerada tão confiável que, sempre que se quer saber como se vestia a mucama, ou como se portavam à mesa os rústicos “senhores” dos trópicos, enfim, sempre que se quer saber como era a vida no Brasil no início do século passado, recorre-se a Debret.
Essas imagens estabelecem um diálogo imediato com o observador, ajudando a alimentar o imaginário do Brasil colonial e exercendo influência decisiva na formação do nosso olhar.
Os relatos dos viajantes gozaram sempre de tal credibilidade interna que seu testemunho chegou a ser invocado como parâmetro de verossimilhança dos personagens de romances brasileiros, como é o caso do índio de O Guarani, de José de Alencar.
Se é em parte verdade que Debret produziu rica documentação desse período da vida brasileira, também não se pode esquecer o quanto há de ficcional no álbum Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Seria mesmo demais esperar que o olhar europeu desse artista de formação eclética e convicções anti-escravagistas, influenciado pelo neoclassicismo francês, documentasse de modo isento a vida da colônia, marcada pela escravidão.
Debret ingressa na Academia de Belas Artes de Paris em 1785. Leciona desenho na Escola Politécnica e participa por várias vezes do Salão de Paris, recebendo, entre outros prêmios, menção honrosa do Instituto de França com o quadro "Napoleão Prestando Homenagem à Bravura Mal-sucedida" (1805). Sua formação neoclássica recebeu inspiração direta de um primo mais velho, o grande pintor da França de Napoleão, Jacques-Louis David (1748-1825), que tratava seus assuntos solenes com absoluta clareza formal, como se vê em "O Juramento dos Horácios" (1784), hoje no Louvre.
A França da burguesia revolucionária oferecia motivos que casavam com o heroísmo grego e romano, e as telas produzidas por Debret na França seguiam a mesma tendência. Ora ele se dedicava a temas clássicos como "Regulus Voltando a Cartago" (1791), ora exaltava o heroísmo militar em "Napoleão I Discursa para Tropas Bávaras e Würtemburguesas em Abensberg" (1810).
Com a queda de Napoleão em 1815, David se exila em Bruxelas e Debret, aos 47 anos, desiludido com a política, separado da mulher e tendo perdido seu único filho, de 20 anos, não vê motivos para ficar na França. Ele recusa convite para servir ao czar russo Alexandre I e acaba vindo ao Brasil como integrante da Missão Francesa de 1816, organizada por d. João VI para estimular a vida cultural e modernizar a nova capital do reino. Ao lado do arquiteto Grandjean de Montigny (1776-1850), Debret é uma das principais figuras da nova Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro.
Rodrigo Naves diz que ele foi “o primeiro pintor estrangeiro a se dar conta do que havia de postiço e enganoso em simplesmente aplicar um sistema formal preestabelecido — o neoclassicismo, por exemplo — à representação da realidade brasileira”. A natureza edificante do neoclassicismo francês não encontrava eco em meio tão adverso como a frágil monarquia portuguesa, e “a existência da escravidão impedia de vez qualquer tentativa de transpor com verdade a forma neoclássica para o Brasil”.
O crítico defende a tese de que o esforço do artista em incorporar em sua arte traços da sociabilidade brasileira “supõe uma noção de forma complexa”. Essa forma complexa seria, de um lado, espelho da impossibilidade de adequação dos padrões neoclássicos de heroísmo e grandeza à esquálida realidade local (o que faz de Debret um Artes de Paris em 1785. Leciona desenho na Escola Politécnica e participa por várias vezes do Salão de Paris, recebendo, entre outros prêmios, menção honrosa do Instituto de França com o quadro Napoleão Prestando Homenagem à Bravura Malsucedida (1805). Sua formação neoclássica recebeu inspiração direta de um primo mais velho, o grande pintor da França de Napoleão, Jac- ques-Louis David (1748-1825), que tratava seus assuntos solenes com absoluta clareza formal, como se vê em OJuramento dosHorãcios (1784), hoje no Louvre.
A França da burguesia revolucionária oferecia motivos que casavam com o heroísmo grego e romano, e as telas produzidas por Debret na França seguiam a mesma tendência. Ora ele se dedicava a temas clássicos como Regulus Voltando a Cartago (1791), ora exaltava o heroísmo militar em "Napoleão I Discursa para Tropas Bávaras e Würtemburguesas em Abensberg" (1810).
Com a queda de Napoleão em 1815, David se exila em Bruxelas e Debret, aos 47 anos, desiludido com a política, separado da mulher e tendo perdido seu único filho, de 20 anos, não vê motivos para ficar na França. Ele recusa convite para servir ao czar russo Alexandre I e acaba vindo ao Brasil como integrante da Missão Francesa de 1816, organizada por d. João VI para estimular a vida cultural e modernizar a nova capital do reino. Ao lado do arquiteto Grandjean de Montigny (1776-1850), Debret é uma das principais figuras da nova Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro.
Rodrigo Naves diz que ele foi “o primeiro pintor estrangeiro a se dar conta do que havia de postiço e enganoso em simplesmente aplicar um sistema formal preestabelecido — o neoclassicismo, por exemplo — à representação da realidade brasileira”. A natureza edificante do neoclassicismo francês não encontrava eco em meio tão adverso como a frágil monarquia portuguesa, e “a existência da escravidão impedia de vez qualquer tentativa de transpor com verdade a forma neoclássica para o Brasil”. O crítico defende a tese de que o esforço do artista em incorporar em sua arte traços da sociabilidade brasileira “supõe uma noção de forma complexa”. Essa forma complexa seria, de um lado, espelho da impossibilidade de adequação dos padrões neoclássicos de heroísmo e grandeza à esquálida realidade local (o que faz de Debret um neoclássico menor) e, de outro, mostraria sua abertura “às vicissitudes de nossa realidade e às dificuldades de representá-la esteticamente” (criando assim algo novo, que nos pertence).
Há, porém, outro aspecto na obra brasileira de Debret que merece atenção. O objeto que se apresenta de modo privilegiado para essa análise são as 150 pranchas, textos e mapas que compõem os três volumes do álbum "Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil".
No álbum, interessa observar seu talento como construtor de contexto, como articulador de um roteiro, para o qual confluem imagens e textos, mas que paira sobre a Viagem como uma terceira instância de leitura.
A Viagem mostra uma coerência interna que não vinha das artes plásticas, mas do próprio projeto dos álbuns pitorescos em voga na época, e também da literatura, mais especificamente do romance realista. O álbum se apresenta como um inventário de abrangência enciclopédica, que se propõe a analisar o homem em estado natural e em sociedade, as três raças, a geografia política do País, suas florestas e plantas, tudo apresentado como um todo orgânico.
Nas imagens e nos textos da Viagem, é frequente o uso de uma fina ironia. Comentários paralelos não eram tolerados no modelo neoclássico de narração, mas combinavam com a estética naturalista praticada pelos grandes nomes do romance francês contemporâneos a Debret—Stendhal, Balzac, Flaubert e Zola.
O pressuposto do romance realista é o de que a narrativa é uma construção criadora de verdade, não importando os fatos que lhe dão origem. É o que diz a frase de Stendhal de "O Vermelho e o Negro": “Pois tudo o que narro, eu vi; e se acaso me enganei ao vê- lo, com certeza não te engano, ao contá-lo a ti.” É o modo como os fatos são apresentados que importa, modo que deve ser coerente com a lógica interna da narrativa. Debret usa diversas vezes a expressão “lógica” para justificar a ordem de apresentação das cenas que teriam sido observadas por ele. O que, para Debret, significava essa “lógica” é algo que interessa observar melhor.
Ao retomar à França, após 16 anos de vida no Brasil, Debret reúne os melhores desenhos produzidos aqui, redige um texto para acompanhar as pranchas e publica a Viagem, em três volumes editados entre 1834 e 1839- Os desenhos e aquarelas, feitos em sua maioria diante das cenas, são transformados em reproduções litográficas, visando à difusão dessas imagens junto ao público europeu. As pranchas trazem na borda inferior esquerda a indicação da autoria de Debret 0. B. Debret delineavit), tendo sido algumas desenhadas por Debret e Mme. Pauli- ne de Portes (Viscontesse de Portes, especialmente hábil no desenho de plantas, cortes das frutas, adornos, instrumentos musicais, utensílios de cerâmica); no canto inferior direito é informado que algumas litografias foram executadas por Ch. Motte e outras por Thierry Frères, sucessores de Engelmann & Cia.. As pranchas soltas do álbum editado por Firmin Didot foram agrupadas : em 27 cadernos ou fascículos. Encadernadas, geraram três volumes medindo 54 x 36 cm, com tiragem de 200 exemplares. As imagens, em branco e preto, foram, em alguns exemplares, coloridas à mão au pochoir(espécie de gabarito, recorte que isola cada zona de cor).
A Viagem, essa obra, “histórica e pitoresca” como Debret a define de início, é dedicada aos membros da Academia de Belas Artes do Instituto de França, aos quais o artista se declara “vosso correspondente no Rio de Janeiro”. A documentação “histórica” convive aqui com a visão “pitoresca”, e é da junção das duas que surge esse retrato do Brasil para francês ver.
Na Introdução, Debret afirma que “a obra que ofereço ao público é uma descrição fiel do caráter e dos hábitos dos brasileiros em geral”, e que, a fim de seguir “uma ordem lógica”, iria iniciar seu trabalho pela história do índio selvagem, “primeiro habitante desta parte do globo”. O Tomo I estuda os hábitos das diferentes tribos, registra os caboclos ou índios civilizados e suas várias mestiçagens e progride para os tipos citadinos como as caboclas lavadeiras do Rio de Janeiro. Inventaria os diferentes tipos de moradia dos “selvagens brasileiros”, suas roupas e máscaras rituais, plantas usadas na alimentação, a cerâmica utilitária, e termina com a descrição exuberante das florestas virgens.
Na Introdução ao Tomo II, Debret reafirma estar seguindo o plano “traçado pela lógica, isto é, a marcha progressiva da civilização no Brasil”. Depois de falar da dificuldade de contato entre branco e índio, ele conta como os portugueses trazem os escravos da África para assumir as tarefas necessárias, seja na roça ou na cidade. Esse volume trata dos “usos e costumes dos Brasileiros civilizados” , narra a descoberta do País pelos portugueses, fala da população, do “caráter do mulato”, do “caráter do brasileiro”, descreve longamente a baía do Rio de Janeiro e enumera as demais regiões brasileiras, do Pará a Santa Catarina, de São Paulo ao Mato Grosso. Passando pelas propriedades rurais, ele chega às cidades, detendo-se especialmente no Rio de Janeiro para observar a vida no interior das casas e na praça pública.
O Tomo III se dedica à “história política e religiosa” do Brasil, começando em 1808. Esse ano marcada, para Debret, a retomada da civilização, que até a chegada da corte de d. João VI “estava estacionária”. Ele cita a instrução pública, a educação das mulheres, cursos de medicina, tribunais, etc., uma série de instituições que sentam praça por aqui, como sintoma de progresso social. Ele fala da situação das belas-artes, mostra negros indo à Igreja para o batismo, detalha vestimentas da corte e uniformes dos ministros, e fecha o volume com os retratos de d. João VI e d. Pedro I vestidos com toda pompa e circunstância. Tendo iniciado esse trabalho pelo índio selvagem e progredido até a vida na cidade em contato com a corte portuguesa, Debret reafirmava ter cumprido seu projeto de obedecer a uma “ordem lógica”.
A mistura desses três conceitos — ordem lógica, pitoresco e histórico — parece indicar a coexistência de uma ordem lógica do pitoresco (de natureza romântica), ao lado de uma ordem lógica da história (contagiada pelo naturalismo científico). Essas duas “ordens” simultâneas explicariam as liberdades românticas que interferem na documentação histórica, e a lógica de partir (como nas narrativas romanceadas) da descrição de cada personagem ou tipo até chegar à criação das cenas, que por sua vez estruturam a história. Esse movimento corresponderia à “lógica” de caminhar do mais simples para o mais complexo, do primitivo para a civilização.
Artigo de Vera D’Horta publicado no "Caderno de Sábado" de "Jornal da Tarde", São Paulo, 27 de junho de 1998. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.