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O SABOR DE MINAS GERAIS

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Percorrer as trilhas e os caminhos atravessados pelos mineiros para chegar às mineirices e mineiridades atuais requer que conheçamos as encruzilhadas e os descaminhos das Gerais. O que nos leva, invariavelmente, aos fins do século XVII e início do século XVIII.

A Coroa Portuguesa nunca perdera as esperanças de encontrar metais preciosos nas suas terras na América. Essa esperança era alimentada pelas lendas sedutoras da cidade de Manôa, das Serras das Esmeraldas e de Sabarabuçu. A descoberta do ouro no interior da colônia, se nos menores detalhes foi obra da casualidade, na sua concretização foi, acima de tudo, obra da persistência histórica.

Se essa descoberta não pode ser fato atribuído a esse ou aquele homem em particular, ela foi resultante dos esforços e sonhos continuados de gerações que se sucederam. Esforço iniciado em 1532 com a chegada dos primeiros povoadores portugueses com Martim Afonso de Souza. Uma das primeiras medidas tomadas por ele foi enviar uma expedição, formada por 40 homens, partindo de São Vicente/SP em direção ao sertão, em busca das minas de ouro e prata...Nunca mais voltaram.

A notícia da descoberta do ouro espalhou-se rapidamente por todo o mundo. Começa o grande rush. Chegam aventureiros de toda condição, homens e mulheres, moços e velhos, brancos, pardos, pretos, nobres e plebeus, seculares, clérigos e religiosos de diferentes ordens, determinados pelo afã de enriquecer depressa, sem cuidar das asperezas dos caminhos e sem se preocupar com a dureza dos trabalhos e perigos que tinham que enfrentar. Largam tudo em suas terras de origem. Vendem seus bens (se os possuem), abandonam mulher e filhos, interrompem seus noivados.

Se a partida para as minas é um drama, o transcurso da viagem será outro, penosíssimo, talvez mortal. Cada um, com o seu comer frugalíssimo na sacola, partia, confiante, desvairado pela miragem do ouro. Esperava-o, muitas vezes, o pior dos padecimentos: a fome. E foi tal a escassez de mantimentos, que houve uma grande fome em 1698, outra em 1700 e ainda uma terceira em 1713. Campos e montanhas haviam sido despojados de víveres silvestres e caça pela gente que tudo consumira. Muita gente se retirou para caçar nos matos ou voltou aos seus povoados de origem. Muitos ficaram pelos descaminhos.

"Com o que lhes deparasse o acaso todo gênero de caças, antas, veados, capivaras, maca cos, quatis, onças, cervos e aves, e muitas vezes, cobras, lagartos, formigas e até “uns bichos mui alvos que se criam em taquaras e paus podres”. Serviam-se também de mel de abelhas, porcos, palmitos, grelos de samambaia, carás do mato... e outras variedades que a necessidade inventava. Não faltavam os peixes: os miúdos cozidos em taquaras, os grandes assados."1

Lançado o grito de descoberta do ouro, desencadeou-se para essa região uma onda imigratória que tem poucos paralelos na história da humanidade. Caudais humanos procuraram a região das minas, partidos de todas as direções. Em todos os cantos e províncias do Brasil ecoou a notícia de descoberta do ouro e, em toda parte, o sistema demográfico sofreu profundas convulsões, em virtude da corrida para as minas. Daí o povoamento rápido e gigantesco da região mineira.

Entretanto, em muito pouco tempo aquele rush em direção às minas gerais se transformou em calamidade pública. Tantos foram os ambiciosos que correram em busca do ouro que surgiu o perigo de despovoar-se o Reino. Também as cidades litorâneas do Brasil viram-se diante da mesma ameaça... As minas que haviam sido acolhidas como uma benção do céu, depois de dois séculos de buscas ansiosas, começaram a ser olhadas como causadoras de desgraças e fontes de malefícios.

Logo surgiram as proibições e restrições à ida de povoadores para as minas, isto já em 1709 e 1711. Além das restrições à entrada na região, outras foram tomadas, proibindo a abertura de novos caminhos e picadas para as minas. Nada, entretanto, impedia que a população das Gerais fosse crescendo num ritmo espantosamente rápido e desordenado, se considerarmos as distâncias e as dificuldades.

Quanto mais complicados e custosos eram os processos de extração do metal, mais se sedentarizavam os mineradores, estabelecendo arraiais de caráter permanente, com construções sólidas, feitas para desafiarem os anos. Os arraiais mineiros cresceram tão vertiginosamente que, em poucos anos, muitos deles atingiram a dignidade de vila. As cidades históricas de Minas, guardiãs das construções coloniais, viriam a ser a marca permanente da época.

Muito cedo, estabeleceu-se ativa corrente comercial entre as cidades litorâneas e as Gerais. Os caminhos viram-se trilhados e batidoscom freqüência por mercadores, tropeiros, comboieiros e boiadeiros que iam e vinham por esses caminhos, diferenciando-se por isso mesmo daqueles que, levados pela febre do ouro, apenas pensavam na ida e não na volta.

Entretanto, não estavam as vilas e cidades litorâneas preparadas para suprir as necessidades dos mineradores das Gerais. A febre da especulação fez com que tudo que houvesse para suprir suas próprias vilas, fosse levado para as minas. A conseqüência foi a alta dos preços, a escassez de gêneros alimentícios e mantimentos. A situação ficou tão dramática para a Vila de São Paulo que a Câmara Municipal, em sessão realizada em 19 de janeiro de 1705, deliberou que nenhuma pessoa vendesse artigo algum de subsistência para fora da terra, “tanto a farinha de guerra, o trigo, o feijão, o milho, como o toucinho e o gado”.

A vida nas minas, nos primeiros anos que sucederam as descobertas seria praticamente impossível, sem o fornecimento de mantimentos e gêneros de todas as espécies, partidos das cidades e vilas de São Paulo, do Rio de Janeiro e da Bahia: boiadas, toucinho, aguardente, açúcar, farinha, feijão, milho, panos, calçados, remédios, algodão, enxadas, e artigos importados como o sal, azeite, vinagre, trigo, ferro, pólvora, vidros, vinho, armas, tecidos, e escravos, milhares e milhares de escravos africanos.

Das crises de fome do século XVIII surgiu o aproveitamento dos alimentos disponíveis. E da busca por melhor aproveitamento, chegou-se à variada e farta, simples e sofisticada cozinha mineira.

Para enfrentar a falta de carne bovina, habituaram-se os mineiros a criar suínos, onde quer que houvesse espaços, até mesmo nos fundos do quintais (costume mantido até os nossos dias). O consumo de carne de porco tornou-se hábito alimentar dos habitantes das lavras, e hoje, constitui o lombo de porco, talvez o prato mais típico de nossa mineirice, presente em todas as nossas mineiridades, predileto de todos os mineiros.

Os mineradores e demais habitantes da região das Minas Gerais nunca conheceram a fartura de alimentação. A comida dos bandeirantes paulistas era pouco sortida. O alimento básico da maioria da população achava-se no feijão, milho e mandioca. As plantações de mandioca eram insuficientes e na canjica dispensava-se o sal porque esse não chegava para todos.

A mandioca era o principal alimento e o pão diário dessas populações. Vinha em seguida o milho. O cronista anônimo de 1717, citado por Afonso de Taunay, enumerava algumas das muitas comidas que se fazem com o milho: “pipocas,curau, pamonhas, farinha, cuscuz, biscoitos, bolos, alcamonias (doce feito, em geral, de melaço e farinha)2 e, catimpuera (espécie de bebida fermentada, feita com milho ou aipim cozido ou amassado, de mistura com água e mel de abelha)3, aluá (bebida refrigerante feita, no Nordeste, com farinha de arroz ou milho torrado, fermentada em potes de barro e, em Minas Gerais, com cascas de abacaxi, pelo mesmo processo)4 ou cerveja de milho verde, aguardente e canjica. O angu de fubá, cozido em grandes quantidades, em tachos de água quente que “os ricos comem por gosto e os pobres por necessidade”.

"O estilo da cozinha mineira revelou-se, principalmente, no complexo do milho. Desde o milho verde, cozido, assado, ou feito um mingau, ao fubá (angu, mingau, bolo, cobu, etc), o milho comparece vitorioso, em todas as refeições, dominando a nativa mandioca. O mineiro nunca usou pão da “farinha de pau”, o pão da terra dos primeiros séculos da colonização: sempre preferiu o angu, os sólidos bolos de fubá e o cobu enrolado em folha de bananeira. Para misturar ao feijão usou sempre a farinha de milho (o milho molhado, socado ao monjolo e depois torrado), o angu, a farinha de moinho (fubá torrado). As classes pobres sempre usaram a “canjiquinha” (subproduto de despolpação do milho, com muito êxito para substituir o arroz). O leite com farinha (de milho ou de moinho) à noite, é ceia apreciada. O café com farinha de milho e queijo, violenta ceia. A canjica deliciosa, as pipocas e, como refrigerante, o aluá, fubá com água e rapadura, que fermentado tem propriedades alcoólicas, bebida que os negros tomavam nos caxambus, nos intervalos das danças. Estes variados usos do milho mostram o caráter compósito da cozinha mineira."5

O problema da alimentação na fase mineradora era grave não só para os escravos (mal vestidos e mal alimentados), como também para os homens livres, nas lavras auríferas e, notadamente, para os que viviam nas cidades.

As conseqüências da ocupação acelerada e desordenada da região mineradora foram de várias ordens. Alguns historiadores frisam como causa principal da Guerra do Emboabas (1709), o conflito pela posse das minas do ouro, salientando que os paulistas não queriam que elas fossem repartidas com os forasteiros. Entretanto, se houve nas origens dessa guerra o ciúme dos paulistas contra a concorrência dos portugueses e baianos e rivalidades em torno da posse das minas, outro motivo suplanta esse em importância: o monopólio de certos gêneros indispensáveis à vida nas Gerais, como os contratos de carnes de açougues, a especulação e contrabando com todos os artigos de primeira necessidade, promovidos pelos filhos da metrópole, aliados aos baianos.6

Podemos, então, considerar que na origem da mineiridade, onde se impõe essa culinária, estaria, entre outras, a Guerra do Emboabas, estudada nos manuais escolares como uma das primeiras manifestações do “espírito nativista” do povo brasileiro.

Outro fato histórico que traz nas suas entrelinhas o problema do abastecimento da capitania, foi o levante de 1720, em Vila Rica, conhecido como a Rebelião de Felipe dos Santos, contra a instalação das casas de fundição na região aurífera. Junto com esse desejo, estava embutido na revolta popular a vontade de abolir os contratos de aguardente, de tabaco e fumo.

A gravidade do problema do abastecimento das minas, forma o “substractum” dos principais acontecimentos políticos das Gerais, no primeiro quartel do século XVIII. Por conseqüência, reflete na formação sociocultural de nosso povo, manifestado nos saberes e fazeres de nossa gente, de onde surgem, fumegante em tachos de cobre, caldeirões de ferro fundido e panelas-de-pedra curtidas, os cheiros, as cores e os múltiplos sabores de nossas comidas.

As respostas e soluções mineiras dadas às necessidades de sobrevivência, geraram usos pessoais e familiares, que, aos poucos, em banho-maria, se transformaram em hábitos locais, que, cozidos em fogo brando, generalizaram-se como costumes regionais, até que pipocaram como torresmos em gordura quente, formando nossas tradições culturais.

Dessa forma e seguindo esse processo, o mineiro saiu das crises de fome para a consolidação de uma rica, variada e tradicional culinária, pautada pelo aproveitamento dos gêneros mais elementares – feijão, milho, mandioca, carne – encontrados ou disponíveis em nossa região. A pouca variedade de recursos do período colonial foi a condição para o surgimento e desenvolvimento de uma culinária criativa e inovadora, demarcada pela busca do sabor e da combinação de gostos, entre os poucos e limitados produtos disponíveis.

John Mawe, o primeiro viajante estrangeiro que pode penetrar pelo território mineiro, autorizado pelo Príncipe Regente, em 1809 afirmava: “Ora essa! Enquanto houver milho e água, os mineiros não morrerão de fome”.7

Saint-Hilaire8 , por sua vez, observou o gosto dos mineiros por doces e geléias e o seu pendor para confeitá-los. Censurou-lhes, porém, o abuso do açúcar, que mascara o sabor dos frutos. Esse reparo ainda o fazem muitos estrangeiros que provam nossos doces. E estranharam alguns viajantes franceses que comêssemos doce com queijo, heresia culinária, na opinião desses mestres no assunto. Eles não sabem o que estão perdendo: goiabada cascão com queijo minas, hum!...

Enquanto isso, famílias doceiras mandavam (e continuam mandando) às ruas, tabuleiros de cocadas, de canudos de queijo, de brevidades e pés-de-moleque. Outras apuram uns trocados com o bolo-de-feijão muito apimentado, outras fabricam em tachos de cobre as amêndoas para os cartuchos da Semana Santa.

Quitanda, não o esqueçamos, é a pastelaria caseira, o biscoito, a broa, a rosca, o sequilho, o bolo, expostos em tabuleiros. Quitandeira é a fabricante ou vendedora desses produtos. As mulheres de Ouro Preto tinham fama de boas quituteiras e excelentes doceiras.

As negras e mulatas quituteiras, por mais que trabalhassem, nunca produziram o suficiente para satisfazer a gula dos trabalhadores das lavras. Verdadeira multidão de negras e mulatas, escravas e fôrras, percorriam com seus tabuleiros os morros e margens dos rios, incitando os negros a gastar em quitutes o ouro que não lhes pertencia.

Um dos primeiros governadores da região já cuidava do problema.:

"...proíbe: de irem mulheres com tabuleiros às lavras do ouro com pastéis, bolos, doces, mel, aguardente, e mais bebidas, que algumas pessoas mandam às ditas lavras e sítios em que se tira ouro dando ocasião a este se descaminhar de seus senhores e ir dar a mãos que não pagam quintos a Sua Majestade..."9

“As bateias mais ricas que há nas minas” continuaram pertencendo as “negras de tabuleiro”, o que resultou em mais proibição, desta vez datada de 11 de setembro de 1729. E, mais uma, sem efeito.

“Na indigestão dos ricos se vinga a fome dos pobres”, diz o ditado popular.

Os mineiros sempre foram muito lambisqueiros, amigos de doces e quitandas, como a maioria dos brasileiros, conhecida por seu “sensualismo apícola”.10

Dos tabuleiros para as vendas e quitandas, adquiriam fama os nossos doces de leite (enrolados em palha de milho, os mais autenticamente mineiros), os de cidra, limão e laranja, a brevidade, as marmeladas, goiabadas e bananadas, o pé-de-moleque, a pamonha envolvida em folha de bananeira, a queijadinha, a mãe-benta, o quebra-quebra, a broinha de fubá mimoso ou de amendoim, o biscoito de polvilho, além de outros de nossa doçaria luso-brasileira, cujos nomes denunciam dengos e meiguices ao gosto do século do namoro (XVIII): suspiros, melindres, arrufados, esquecidos, beijos-de-freira, papos-de-anjo, baba-de-moça, quindins-de-iaiá...

No guarda-comidas nunca faltava a compoteira de melado, que se comia com farinha de milho ou bocadinhos de queijo. E nas vendas e bitacas, achavam-se invariavelmente, ao lado do pipote de aguardente, o biscoito fofão, o canudo recheado de creme, a pipoca e a rapadura que entrava na preparação da doçaria familiar.

Pouco a pouco, desaparecia o perigo da fome, mas tudo se vendia por preços altíssimos. Muitos dos ambiciosos que tinham corrido às Gerais para se enriquecer de ouro, descobriram que era mais fácil fazê-lo chegar às suas mãos já lavrado por outros, através do comércio. Pronto. Estava aberto o caminho para os habitantes das Minas praticarem o comércio e se tornarem espertos negociantes, mascates, comboieiros, tropeiros, praticando para, no futuro, tornarem-se exímios banqueiros e agiotas.

Com os fornecimentos organizados e mantidos sistematicamente pelas caravanas de tropeiros, nada mais faltou aos povoadores das Gerais. Em meados do século XVIII, havia ouro em abundância. Propagou-se que os mineiros pagavam generosamente aos seus fornecedores. Formaram-se linhas regulares de tropas. O perigo da fome e da carestia desapareceram para sempre. Houve abundância de gêneros e de objetos
de uso.

Vila Rica “abundava em víveres e as terras produziam muitas hortaliças, como couve, repolhos e cebolas. Havia também fartura de frutas, principalmente os pêssegos, marmelos, laranjas, maças, joazes. Embora se lavrasse pouco a terra, os seus habitantes nenhuma falta experimentavam, em razão dos mantimentos que entravam todos os dias em tropas carregadas de toucinho, milho, feijão, queijos e azeite, vendidos por preços bastante cômodos”11

Ao antigo tropeiro deve a cozinha mineira esse prato – o feijão-de-tropeiro – cujo nome é um preito de homenagem ao valente desbravador de sertões.

O centro das atividades mercantis era a venda. Ali podia-se achar (o mais comum era não achar) a cachaça, o sal, açúcar, feijão e carne-seca, fumo em corda, ferraduras, cabeças de alho, armas de fogo e livros de missa.

A extração de ouro e diamantes era absorvente. Enquanto a produção foi abundante, não houve margem para o aparecimento de uma agricultura ou de uma pecuária intensa. A agricultura, no apogeu do ouro, não poderia desenvolver-se, porque não podia disputar com as minas na compra de escravos. O minerador pagava pelo negro escravo preços que o roceiro não alcançava.

Os currais foram lentamente penetrando na Capitania, espraiando-se pelos campos próximos ao Rio São Francisco, como um prolongamento natural da pecuária baiana.

Apesar de todos os pesares e contratempos, as Gerais foram mineiramente caminhando para a auto-suficiência. Da Vila de Sabará saiam milho, feijão, arroz e cana-de-açúcar; das bandas da Vila Risonha e Bela de Santo Antônio da Manga de São Romão chegavam gado, peixes e frutas do sertão; a Vila Nova da Rainha produzia as “mimosas frutas de nosso Portugal”, maçãs, pêssegos, uvas e ameixas; o Serro Frio exportava milho, feijão e seus queijos; e a Vila de São José do Rio das Mortes (atual Tiradentes) era a mais abundante de toda a Capitania, dela se sustentando a maior parte das comarcas, de toucinhos, gado, queijos, milho, feijão e arroz.

A população mineira comia a carne de boi, salgada e em mantas – carne-seca ou charque, carne-de-sol, carne-de-vento ou jabá. Assim como as carnes de porco e toucinho, eram mantidas em bom estado pelo processo de defumação, salgamento, fabricação da paçoca e conservação em gordura (como se faz ainda).

No norte de Minas, a refeição comum da gente rural ainda é o feijão com farinha e jabá, servido com molho de cumari, malagueta e dendê – verdadeiro fogo que exige para apagá-lo um bom gole de cachaça com junça ou folhas de figo.

A decadência do ouro e do diamante, ainda no final do século XVIII, foi a causa principal do desvio de atividade dos habitantes das Gerais da indústria extrativista para a pecuária, para as manufaturas e para a lavoura. Na própria região da lavras, multiplicaram-se as plantações. As minas agonizantes passaram a apoiar-se nas lavouras que, expandindo-se, procuravam gulosamente as terras férteis que haviam nas imediações das lavras.

Ao iniciar o século XIX, o panorama econômico das Minas Gerais era bem diferente do que se descortinava no século anterior. O desenvolvimento da agricultura, da pecuária e das manufaturas, conferindo à Capitania elementos de autosuficiência, permitiu-lhe dispensar grande parte dos fornecimentos externos, passando a abastecer as regiões que antes lhe faziam o abastecimento, numa completa inversão do quadro econômico.

De sua viagem a Minas, em 1851, o naturalista alemão Hermann Burmeister nos deixou algumas impressões curiosas sobre sítios, paisagens, fauna e costumes da gente que pudera conhecer. Passou por várias regiões. Em Mariana e Ouro Preto fez interessante registro sobre os horários das refeições e o que se comia habitualmente:

"Às 10 horas, almoço: feijão, angu, carne-seca, farinha, toucinho, couve, arroz, às vezes frango. Comia-se a vontade, misturando-se tudo num só prato (como ainda hoje se faz comumente). Entre 3 e 4 horas da tarde, repetia-se a mesma refeição, com provisões frescas. Bebia-se água ao comer e um pouco de aguardente, tomando-se ao final uma xícara de café. Certas famílias faziam uma terceira refeição entre 7 e 8 horas da noite, mas isto já não fazia parte do costume geral. Nesta hora, serviam-se pratos mais leves (sic), como canjica com leite e açúcar, chá de laranja com leite, no qual se deitava o biscoito ou um bolo mais fino, como o pão-de-ló, ou pão de milho. Achou muito agradável o chá de laranja..."

O trivial da mesa mineira (das famílias que podem, é claro) era, e ainda é, na maioria dos casos, tradicionalmente o mesmo, com pouca variação, nas diferentes regiões do estado, do sul até às proximidades da Bahia. Comia-se, e ainda se come, principalmente, o feijão, o angu, a farinha de milho ou de mandioca, o arroz solto, o lombo de porco, a lingüiça, a carne de boi, seca ou verde, a galinha e, como erva, a couve.

O feijão é o pai de todos. “Feijão é a escora da casa”, diz o refrão popular. Ocupa o primeiro lugar, principalmente o mulatinho, além das outras variedades: chumbinho, manteiga, roxinho e preto. De perto, segue-se o angu, depois o torresmo. O arroz atualmente rivaliza-se com o feijão. O arroz branco, cozido ao nosso modo, soltinho, não pode faltar na mesa da família mineira. Por fim, a couve.

Feijão com angu e torresmo, farinha e couve rasgada ou picadinha – eis o diário de uma casa em sua forma mais simples e comum.

Ao feijão cozido, quase sem caldo, não esmagado, e juntado depois aos torresmos fritos e à farinha de mandioca, dão-se os nomes de “feijão-de-tropeiro”, “feijão-das-onze” e “feijão-de-preguiça”.

Outra iguaria incomparável para o paladar dos mineiros, e o mais mineiro dos pratos, é o tutu de feijão: feito de feijão-mulatinho. Depois de cozido, se engrossa com farinha de mandioca ou de milho. E se serve com torresmos, lingüiça ou ovos cozidos, cortados em rodelas...hum!

Como a feijoada simples, que se coze às vezes com carne de porco salgada, ou carne de vento, é prato sólido que pede uma “abre caminho”, um copinho de boa cachaça. No fim não se dispensa a xícara de café espesso.

Os bolinhos de feijão são muito apreciados para se fazer uma boquinha, antes do almoço ou jantar, como tira gosto de uma bela pinguinha de cana-caiana.

A alimentação costumeira do homem do campo, roceiro e sertanejo, compõe-se quase sempre de feijão, angu, arroz cozido, alguma erva, e, nos melhores casos, ovos e galinha. Não falta a farinha de mandioca...

O angu de fubá, prato de grande substância, indispensável na alimentação do camponeses, está igualmente presente na mesa do habitante dos centros urbanos. O mineiro prepara-o comumente sem sal, tradição herdada do século XVIII, quando o sal era produto caro e escasso.

O sabor do angu pode ser muito melhorado se acrescido de tropicão (torresmos) ou lingüiça. Se adicionar a erva picadinha, afogada, hum!... tem-se a tríade tradicional: feijão, angu e couve.

Faltando a farofa, é costume adicionar ao feijão com caldo a farinha simples, torrada ou não, para engrossá-lo.

Com o fubá de milho prepara-se o popularíssimo mingau, simples, com açúcar, polvilhado de canela, podendo ser comido com fatias de queijo ou adicionado de leite ou mel, pela manhã no desjejum ou à noitinha, como última refeição... ou o mingau de milho verde e o angu com leite.

Em fins do século XIX, nas fazendas mineiras, de todas as regiões, havia o seguinte trivial mineiro: feijão com angu e torresmo, lombo de porco assado, lingüiça, couve e a mineiríssima farinha de milho. Aos domingos, a invariável galinha. Como sobremesa, doces de caixeta e compotas com queijo, ou melado com farinha ou aipim. Depois do jantar, na varanda da fazenda, chá de congonha ou café adoçado com rapadura.

A agricultura aos poucos se expande. O mesmo acontece com a pecuária. O sul de Minas oferece as melhores condições para esta expansão. Inicia-se a indústria de laticínios. Surge o mineiro pecuarista, pouco consumidor de leite, mas criador de mais uma de nossas marcas mais mineiras: a indústria de queijos, o “queijo de Minas”, queijo branco, redondo, saboroso, presença indispensável em nossas mesas de café, de doces...

As comarcas do oeste produzem muito suíno. A carne de porco, sobretudo os toucinhos são consumidos em toda região, constituindo-se no tempero indispensável de todos os pratos da cozinha do País.

Em fins do século XIX, o trivial das mesas mais humildes ou modestas ainda se reduzia ao feijão com farinha e angu, completado com alguma erva ou produto da horta, couve, quiabo, chuchu, serralha, inhame, abóbora ou taioba. Outras vezes, a comida básica era feijão com torresmos e arroz. Faltava a carne, quase sempre! Não era indispensável! O feijão, sim! Em vez de pão, muitos usavam, o beiju de farinha de mandioca, a farinha de milho ou o biscoito de polvilho. O pão é quase estranho à cozinha mineira tradicional. Já a classes abastadas podiam se regalar com uma variedade de comidas, quitandas e quitutes:

• Desjejum: prato de mingau de fubá, simples, polvilhado de canela ou com melado e pedacinhos de queijo; ou então café com leite e quitanda; ou café com leite e pão com manteiga (estrangeira);

• Almoço: feijão, podendo ser tutu de feijão com torresmo, com lingüiça ou lombo de porco; ou feijão simples e, às vezes, couve, ou virado de farinha de mandioca ou de milho; angu, simples, ou com torresmos e quiabo; arroz branco solto, carne de vento ou de porco, fresca ou salgada e, mais raramente, carne fresca de boi. A carne, seca ou verde, assada, ensopada ou picadinha, com arroz ou mandioca ou couve ou inhame ou vagens; frita com ovos batidos ou desfiada, em forma de roupa velha; cozida com legumes; galinha de preferência ensopada com angu e quiabo; verdura, pouca, podendo ser couve, alface, repolho, serralha, taioba.
Sobremesa: marmelada ou goiabada, melado ou outro “doce de caixeta” com queijo ou requeijão fresco. Bananas, laranja ou mamão.

• Merenda: café simples ou com quitandas;

• Jantar: sopa, podendo ser de legumes, de carne com farinha de milho, de cará ou inhame, de mandioca, de feijão-branco, de fubá com ervas; feijão simples ou virado com farinha; ensopadinho de carne com quiabo ou com jiló, mandioca ou batata doce; arroz com ovos estrelados.
Sobremesa: doce com queijo ou requeijão fresco.

• Ceia: canjica simples, ou com amendoim, ou com queijo; ou mingau de fubá.
• Bebida: um copinho de cachaça, como abrideira, só para os homens.
• Condimentos: cebola-de-cabeça, cebola-decheiro, alho, louro, urucum, pimenta-malagueta, pimenta-do-reino, coentro. Gordura: banha de porco.

Esse trivial das famílias endinheiradas do século XIX - comida farta e barata, variada e saudável, de fácil digestão e, o mais importante, saborosa -, passou a constituir o cardápio da comida mineira, mantida pela tradição, até os nossos dias, com poucas variações.

O segredo foi sendo passado de mãe para filha, como uma pepita de ouro ou um diamante de estimação: o jeito mineiro de fazer, de “picar e afogar”, como dizem nossas velhas cozinheiras, os ingredientes disponíveis. Se as donas-de-casa mineiras não conheciam a ciência da alimentação, eram exímias na arte da alimentação, o que valia (e vale) muito mais.

Minas...é uma pequena síntese; uma encruzilhada. São, pelo menos, várias Minas, tantas e, contudo, uma.

Como diria Guimarães Rosa: Há a Mata, cismontana, molhada ainda de ventos marinhos, agrícola ou madeireira, espessamente fértil; há os pacíficos e os belicosos.

"Há o Sul, cafeeiro, assentado na terra-roxa de declives ou em colinas que européias se arrumam, quem sabe um dos mais tranqüilos recantos da felicidade neste mundo; há os tímidos e os arrojados até a imprudência. Há o Triângulo, avançado, forte, franco; há os rotineiros e os desbravadores. Há o Oeste, calado e curto nos modos, mas fazendeiro e político, abastado de habilidades; há os legalistas e os revolucionários. Há o Norte, sertanejo, quente, pastoril, um tanto baiano em trechos, ora nordestino na intratabilidade da caatinga, e recebendo em si o polígono das secas; há os ingênuos e os extremamente ladinos. Há o Centro corográfico, do vale do Rio das Velhas, calcáreo, ameno, claro, aberto à alegria de todas as vozes novas; há os somíticos e também os perdulários. Há o Noroeste, dos chapadões, dos campos-gerais que se emendam com os de Goiás e da Bahia esquerda, e vão até ao Piauí e ao Maranhão ondeantes."

Mas creio que a legítima mineiridade se faz pela mistura, ou coexistência de alguns desses defeitos e qualidades, com a permanência de características essenciais à nossa mineirice.

Afinal, há uma comida mineira? Resposta – bem mineira – sim e não!

Sim, porque se pode reconhecer uma constante na equação das preferências alimentícias da gente que habita Minas. Não, porque tais preferências não são exclusivas dessa mesma gente.

A constante se define, é claro, pelo trivial culinário, baseado primeiramente no trinômio feijão, angu e couve, depois no arroz, depois na carne (preferencialmente de porco) e, enfim, moderadamente, nos legumes e ervas.

Apontam-se como pratos típicos de Minas: o tutu de feijão com torresmo ou lingüiça, o lombo de porco assado e a couve fina. Acrescente-se ainda a galinha (ou frango) ao molho pardo com angu e quiabo. Pratos considerados genuinamente mineiros, sem serem, entretanto, exclusivamente de Minas.

Mas, o que aconteceu para que esses pratos ganhassem o ‘status’ de mineiridade?

O jeito mineiro de fazê-los, como um ritual; o jeito mineiro de servi-los, como uma liturgia; o jeito de saboreá-los, como uma comunhão!

“Nada há de melhor na cozinha universal”, afirmou, ufanisticamente, Guimarães Rosa.

“E por que não?”, respondeu ele próprio, acrescentando: “o verdadeiro patriotismo está no sensualismo gustativo, de mesa e sobremesa. Nosso não será o petróleo tanto assim; nossos, bem nossos, são o doce-de-leite e o desfiado de carne-seca. Meu – perdoem-me – é aquele prato mineiro verdadeiramente principal; guisado de frango com quiabos e abóbora-d’água (ad libitum o jiló) e angu, prato em aquarela, deslizando viscoso como a vida mesma, mas pingante de pimenta”.

Notas:

1. Carta anônima de 1717, citada por Afonso de E. Taunay 
2. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. 14ª impressão.
3. Idem
4. Idem, ibidem
5. TORRES, João Camilo de Oliveira. História de Minas Gerais, vol. I. Belo Horizonte. p. 161.
6. “Memória Histórica da Capitania das Minas Gerais”.In: Revista do Arquivo Público Mineiro, vol. II. p. 425.
7. “Viagem ao interior do Brasil, particularmente aos distritos do ouro e do diamante, em 1809/1810”.
8. “Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais”.
9. FIGUEIREDO, Luciano. Mulheres nas Minas Gerais. In: História
das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto. p. 151.
10. MÂNTUA, Simão. Cartas de um chinês
11. ROCHA, José Joaquim da. Memória Histórica da Capitania de Minas Gerais relativa ao ano de 1778.

Bibliografia:

ZEMELLA, MAFALDA P. O Abastecimento da Capitania das Minas Gerais no Século XVIII, Boletim 118, História da Civilização Brasileira nº 12, Universidade de São Paulo, SP - 1951.
FRIEIRO, EDUARDO. Feijão, Angu e Couve - Ensaio sobre a comida dos mineiros; Centro de Estudos Mineiros, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/MG - 1966
ANDRADE, CARLOS DRUMMOND DE. Brasil, Terra & Alma - Minas Gerais, Editora do autor, Rio de Janeiro/RJ,1967
ROCHA, TIÃO. Afinal, o que é ser mineiro? (org.), Serviço Social do Comércio de Minas Gerais, Belo Horizonte/MG, 1995


Texto de Tião Rocha publicado em "Textos do Brasil n.13" pp.78-93. Disponível em http://dc.itamaraty.gov.br/imagens-e-textos/revista-textos-do-brasil/portugues/revista13-mat12.pdf. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa

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