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O MELANCÓLICO FIM DE UM GENERAL INGÊNUO

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Castello assistia a televisão

Naquele tempo, para completar o salário pago por O Globo, eu tinha mais duas atividades: participava de um programa de entrevistas políticas na TV-Rio e colaborava com uma agência de publicidade, a Norton, com sede em São Paulo.

A direção da emissora logo suspenderia o programa, mas fomos surpreendidos com a notícia de que o presidente Castello Branco telefonara para a sua direção apelando para que continuasse no ar, porque lhe assistia e gostava, mesmo quando as críticas eram duras. Coisas do Brasil.

Continuam as escaramuças

Castello Branco ainda imaginava afastar Costa e Silva da sucessão e chegou a convidá-lo para embaixador em Paris, coisa que o general não aceitaria, ficando até o último dia anterior à desincompatibilização no Ministério da Guerra e reforçando seu esquema de poder. Engolia sapos, mas não passava recibo, consciente de que tinha a força.

Certo dia, o presidente mandou chamar seus jornalistas conhecidos e distribuiu um papel onde se liam os nomes de Costa e Silva, é claro, mais os do marechal Cordeiro de Farias, Juracy Magalhães, Bilac Pinto e João Agripino. Informou que enviaria a relação para o presidente da ARENA, Daniel Krieger, a fim de que o partido começasse a debater a sucessão presidencial. Uma farsa, por certo. Sabíamos que a ARENA não decidiria nada, que tudo era uma questão militar. Mesmo assim, publicamos e comentamos os esforços do primeiro general-presidente para afastar o segundo.

Aos poucos, os militares e os políticos mais chegados a Castello foram-se convencendo da inevitabilidade da candidatura Costa e Silva.

Os tempos, porém, ainda eram instáveis. Castello, com o olho no futuro, sentiu que, naquele ano de governo que lhe restava, precisaria corrigir o bombardeio que a revolução provocara nas instituições jurídicas. Acima da Constituição de 1946 prevaleciam os atos institucionais e complementares, estes às centenas. Mais os decretos-leis, as emendas constitucionais impostas ao Congresso e os montes de leis ordinárias que se conflitavam. Chamar o quadro jurídico de colcha de retalhos era pouco. Mais parecia um saco de gatos. O presidente, então, cederia à sugestão de Afonso Arinos.

Decidiu botar ordem na confusão. Mas como? A saída seria uma Assembleia Nacional Constituinte capaz de produzir um texto máximo, acima do qual nenhum outro prevaleceria. Ótimo, concordava, indagando, porém, sobre como proceder.

Auxiliares ingênuos responderiam o óbvio: através de eleições gerais para deputados constituintes, ao que Castello atalhou dizendo tratar-se de um risco, pois, com a revolução impopular, as oposições poderiam fazer maioria e elaborar uma Constituição contrária ao regime vigente. Nesse caso, havia outra forma: redigir e outorgar um texto sem submetê-lo ao trabalho dos representantes do povo. As Constituições de 1824 e 1937 eram frutos desse modelo impositivo. “Não pude aceitar”, ouviria dele semanas depois, “porque seria ditadura e eu não sou ditador.”

Como estamos no Brasil, logo apareceria o nosso jeitinho. O senador Paulo Sarazate, do Ceará, velho amigo de Castello e mestre em Ciências Jurídicas, opinou que, nos tempos modernos, o Poder Constituinte Originário não precisava decorrer apenas de uma Assembleia Nacional Constituinte ou de um ditador. Criou, pois, o Poder Constituinte Delegado, que não devia ser confundido com o Poder Constituinte Derivado, prerrogativa de qualquer Congresso. Exporia tudo em livro, depois.

Tratava-se de uma tese que os doutos repudiariam quando da volta do país à democracia, mas oportuna para o nó em que se haviam amarrado os governantes: uma revolução, como a que imaginavam estar vivendo, detinha o poder de delegar atribuições a quem bem entendesse. Assim, se o presidente, sem convocar eleições, delegasse a tarefa de redigir uma nova Constituição a um colegiado, não seria ditador. E que colegiado seria esse? Ora, o Congresso em final de mandato, que já tivera dezenas de parlamentares cassados, fora posto em recesso e atropelado por atos institucionais e similares.

Era a solução para o presidente, apesar de mistificação antidemocrática. Logo seria baixado o Ato Institucional número 4, porque o 3 resultara do esquecimento de o 2 tornar indiretas também as eleições de governador. Pelo texto, datado de 7 de dezembro de 1966, o Congresso, já sem representatividade e legitimidade, deveria, entre 12 daquele mês e 24 de janeiro do ano seguinte, receber um projeto de nova Constituição elaborado pelo governo e discuti-lo, com ampla liberdade para modificá-lo, desde que o promulgasse na data final. Caso contrário, ficaria valendo, outorgado, o projeto oficial.

A invasão do Congresso por tropa armada

É preciso voltar aos fatos para ver como as intenções estavam distorcidas. Em novembro de 1966 já se conhecia a estratégia do Poder Constituinte Delegado e da tarefa a ser dada ao Congresso desmoralizado. Assim, para levantar um pouco o moral dos políticos, o presidente da Câmara, Adaucto Lúcio Cardoso, revolucionário de primeira hora, homem íntegro e de coragem a toda prova, procurara o presidente Castello Branco pedindo-lhe um compromisso: que, a partir daquele momento, conhecendo-se a estratégia da nova Constituição, o governo abrisse mão da faculdade de cassar mandatos parlamentares, coisa frequente até então. Seria um compromisso dos militares em prol do restabelecimento da democracia. Aqui, as versões se dividem: Adaucto morreu dizendo que Castello concordara e se comprometera; auxiliares do presidente sempre negaram.

De qualquer forma, o diálogo entre os dois tornou-se público, certamente por inconfidência de Adaucto. Logo acirrar-se-iam os ânimos dos radicais, que já não estavam gostando daquela história de nova Constituição sem os atos institucionais. Resultado: tanto pressionaram Castello, apresentando acusações de subversão contra cinco deputados, que, sem avisar o presidente da Câmara, o presidente da República decretaria a cassação do mandato deles, todos do MDB.

Adaucto Lúcio Cardoso não aceitou o que entendia como uma traição. Adotou, então, atitude que ninguém mais, antes ou depois, ousaria. Declarou que não tomava conhecimento das cassações, continuando a dar a palavra e o voto aos cassados. Por cautela, fez com que todos deixassem seus apartamentos, no Plano Piloto de Brasília, e, com pequenas maletas, se transferissem para a enfermaria da Câmara, ali dormindo, comendo, frequentando o plenário, votando e discursando à maneira de que deputados ainda fossem.

Mesmo baseado no Rio, já foi dito que, nas horas de crise, deslocava-me para Brasília. A tensão era imensa entre deputados, funcionários e jornalistas, a quase totalidade passando 24 horas por dia no recinto do Congresso. Alguma coisa aconteceria. Almoçando com o dr. Adaucto num daqueles dias, tentei arrancar-lhe a estratégia para enfrentar um impasse que duraria muito pouco. Afinal, a autoridade do presidente da República estava profundamente arranhada. Ele simplesmente disse: “Chegou a hora da resistência.”

Três ou quatro dias passamos na expectativa do inevitável. Para o alto dos anexos do Congresso, as duas torres até hoje lá fincadas, com visão de 360 graus sobre Brasília, o presidente da Câmara designara grupos de deputados, funcionários e até jornalistas como observadores, em especial à noite. Qualquer movimento ao longe seria detectado, pois não se duvidava de uma invasão armada. Bem depois das três da madrugada, os observadores de plantão viram movimento invulgar na plataforma da estação rodoviária da capital, bem distante. Por essa sorte que marca jornalistas esforçados, eu estava lá. Víamos caminhões do Exército chegarem de marcha a ré, abrindo-se as cortinas e de lá saindo soldados em profusão, logo descendo para o andar térreo e ganhando o gramado que se estende desde lá até a frente do Congresso, passando pela Catedral e os ministérios. Só que os soldados pareciam em guerra, porque davam aquelas corridinhas e logo se deitavam, apontando as espingardas. Notamos metralhadoras progredindo lentamente. Até atrás dos postes podiam ser vistos soldados avançando como se próximos de invadir uma fortaleza. Nas pistas da Esplanada dos Ministérios começaram a aparecer tanques e jipões.

Lá de cima, pelo telefone, deputados avisaram Adaucto, em seu gabinete, e ele era assim informado, enquanto a tropa progredia, sempre aos pulinhos, protegendo-se no terreno. Era o caos, do lado de dentro, com funcionárias gritando e chorando e até dois ou três jornalistas tentando fugir pelos fundos, dos quais jamais revelarei o nome.

Naqueles momentos, um funcionário foi ao banheiro e percebeu que a água não escorria das torneiras. Minutos depois, tudo escuro. A luz também fora cortada. Providenciaram-se velas, mas a incerteza e o pânico davam-se as mãos. Felizmente o dia ia nascendo. De outras janelas e postos de observação, percebia-se que não apenas as rampas e portas principais do Congresso encontravam-se atulhadas de soldados. Nas outras entradas, a mesma coisa, apesar de fardas distintas: fuzileiros navais, marinheiros, praças da Polícia Militar do Distrito Federal, uma operação conjunta que cercara todo o palácio do Legislativo.

Diante da rampa principal estacionara um jipe. Dele saltou um oficial com ares de comandante, capacete, pistola na cintura, cantil, farda de serviço e coturnos reluzentes. Sem correr, olhou para os lados e ordenou: “Avançar!”

Na mesma hora, por todas as entradas do Congresso a soldadesca invadiu em acelerado. O grito da maioria era “Civis fora! Civis fora!”

Para os que conhecem as instalações do Legislativo, aqueles dois salões do rés do chão eram tomados, sem que ninguém pudesse ou quisesse esboçar qualquer reação. Estávamos perplexos.

No pé da chamada “escada verde”, que liga o primeiro andar ao saguão da Câmara, até hoje atapetados dessa cor, a escada e o saguão acima, postou-se por um minuto o coronel Meira Mattos, homem de confiança do presidente Castello Branco e chefe das operações de invasão. Tinha acabado de vir da Força de Paz que o Brasil enviara à República Dominicana, invadida pelos americanos.

Cercado de oficiais e soldados, começou a subir a escada em acelerado, mas, quando chegava ao meio, estancaria por conta de um vozeirão que vinha de cima: “Alto! Quem vem lá?”

Era o deputado Adaucto Lúcio Cardoso, de mais de um metro e oitenta de altura, farta cabeleira branca, cercado de deputados e jornalistas. Novamente a sorte me beneficiava, pois estava no lugar certo na hora certa. Meira Mattos interrompeu a progressão e perfilou-se. Estavam os dois carecas de se conhecer. Ambos frequentavam o palácio do Planalto. Mesmo assim, o coronel respondeu alto: “Eu sou o poder militar. E o senhor, quem é?” Ao mesmo tempo, prosseguiu subindo a metade final da escada, ao tempo em que escutaria a resposta do presidente da Câmara: “Eu sou o poder civil e curvo-me à força dos canhões”, fazendo exagerada reverência a Meira Mattos, que prosseguiu.

A frase dita por Adaucto, ele deve ter pesquisado, era a mesma que Antônio Carlos, presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1823, irmão de José Bonifácio, disse quando preso, ladeado por dois soldados, ao passar defronte a um dos canhões que D. Pedro I mandara assestar sobre o prédio da Cadeia Velha, sede da Constituinte, que o Imperador acabava de fechar.

Pela democracia, atrasaram o relógio

No final de 1966 o Congresso, eleito em 1962, encontrava-se completamente desmoralizado, humilhado e ofendido. Tivera noventa deputados cassados, desde 1964. Fora submetido à legislação excepcional, com seus poderes diminuídos pelos atos institucionais 1 e 2, e acabara de ser invadido por tropa armada e posto em recesso temporário. Assim, ao tomar conhecimento do Ato Institucional 4, que o transformava em “Assembleia Nacional Constituinte” de mentirinha, a primeira reação de seus líderes foi desconhecer o ucasse, cruzar os braços e não participar da farsa da nova Constituição.

O problema era que, se agissem assim, deputados e senadores estariam colaborando para que entrasse em vigor o projeto elaborado pelo governo, que, se quisessem, poderiam modificar. De autoria do então ministro da Justiça, Carlos Medeiros e Silva, datilógrafo da Constituição de 1937 e coautor do AI-1, junto com Francisco Campos, seu texto era um horror de truculência, bastando referir que não continha o capítulo dos direitos e liberdades individuais. Medeiros entendia tratar-se de matéria para a lei ordinária, não para a Constituição. Preceituava a maioria dos poderes para o Executivo, reduzia o Legislativo e perseguia o Judiciário.

Por isso, aqueles parlamentares tidos como liberais, a maioria de partidários do golpe militar, membros da ARENA, assustaram-se com o rumo do processo institucional. Decidiriam então ser preferível modificar o projeto do governo, já que teoricamente tinham poder para tanto. Entre eles estavam Pedro Aleixo, Afonso Arinos, Aliomar Baleeiro, Antônio Carlos Konder Reis e Nelson Carneiro, entre outros.

Iniciaram os trabalhos no próprio dia 12 de dezembro, com o propósito de desfigurar a Constituição de Carlos Medeiros e elaborar a possível. Trabalharam como nunca, sem sábados, domingos, nas vésperas do Natal e do Ano-Novo. Eram monitorados pelos serviços de informação e pelo presidente Castello Branco. Buscaram inspiração na Constituição francesa do general De Gaulle, de 1958, democrática mas enfeixando poderes quase absolutos nas mãos do presidente da V República, ou seja, ele mesmo. Mesmo assim, o capítulo dos direitos e liberdades individuais parecia perfeito.

O diabo era o prazo exíguo para aprovarem aquela versão de Constituição, sem o que prevaleceria o execrável texto preparado pelo governo. Desdobraram-se todos, sob a direção de Auro de Moura Andrade, presidente do Senado e do Congresso. Ia sendo moldada uma Lei Fundamental até moderna, sem instrumentos de exceção. Não perceberam seus artífices, porém, ou fizeram não perceber, que uma Constituição, para gerir democraticamente um povo e uma nação, necessita de representatividade e de legitimidade. Os “constituintes” não haviam sido eleitos como tal, assim transformados por um Ato Institucional. Muito menos representavam o eleitorado, porque um novo Congresso fora escolhido em outubro. Uma Constituição é mais do que uma folha de papel, onde tudo se pode escrever, se existir um lápis.

Assim, continuariam. Só que o prazo fatal aproximou-se sem que todos os capítulos pudessem ser debatidos e votados. Encerrar-se-ia à meia-noite de 23 de janeiro de 1967.

Na manhã bem cedo daquele dia, Auro de Moura Andrade convocou os líderes e deu a má notícia. Disse que passara a noite em claro, fazendo contas, e que verificara não haver tempo para todas as votações, até a meia-noite. Seriam necessárias pelo menos mais doze horas de trabalho. Os esforços estavam perdidos e, pior ainda, prevaleceria a Constituição da truculência.

O desânimo tomou conta de todos, precisamente o que o sagaz senador e empresário queria. Então, completou: “Mas eu tenho uma solução.” Sem esperar as tímidas manifestações de esperança, chamou o contínuo, que se encontrava havia poucos metros de sua cadeira, e perguntou: “José, que horas são?” A resposta: “São sete e meia da manhã, Excelência.” Ao que o senador replicou: “José, você está maluco? Não vê que são sete e meia da noite de ontem?” E o contínuo: “São as horas que o senhor quiser.” Deixou para que Auro determinasse: “Então vá ao plenário e atrase os relógios em doze horas...”

Parece piada, mas foi exatamente o que se passou. A “Constituinte” trabalharia até o meio-dia do dia 24, fingindo que ainda era meia-noite da véspera e ultrapassando o prazo para concluir a votação. A nova Constituição ficara pronta para a promulgação.

Muita gente perguntaria como Castello Branco aceitou aquela mistificação, já que sabia de tudo o que se passava no Congresso, até com microfones ocultos instalados em suas dependências e dezenas de espiões e olheiros espalhados por lá. A explicação era simples: o presidente ficou sabendo do recuo dos relógios, mas meditara e concluíra que o texto dos parlamentares era muito melhor do que o dele, de modo que valia engolir a tramoia. Assim aconteceu.

A volta ao mundo com Costa e Silva

Não testemunhei uma sessão sequer da “Constituinte”. Acontece que o marechal Costa e Silva, já “eleito” pelo Congresso, apesar de deter o controle das Forças Armadas, ainda temia a possibilidade de Castello tirar-lhe o tapete. Para evitar um confronto, optou por ausentar-se do país, numa longa viagem ao exterior. Deixaria de dar pretextos para o imponderável. Assim, um dia antes da instalação dos trabalhos “constituintes”, viajou para a Europa, Ásia e Estados Unidos, numa verdadeira volta ao mundo.

Eu acompanhara, através da coluna que escrevia em O Globo, todos os lances da fixação da candidatura de Costa e Silva. Ele costumava receber-me, e a outros jornalistas políticos, no escritório que passou a utilizar depois de deixar o Ministério do Exército. Gostava de conversar, contar casos e até sorver um copo de uísque, mexendo o gelo com o indicador. Também assistia aos telejornais, onde, na TV-Rio, além das entrevistas das sextas-feiras, cabia-me um comentário político nas edições da noite.

Quando se preparava para viajar, levando D. Yolanda e assessores, o “velho” ficou feliz ao ver que parte da imprensa o acompanharia. Gostou da ideia, pois visitaria países e instituições internacionais, colhendo sugestões para governar a partir de março de 1967. Mandou o coronel Mario Andreazza telefonar para Roberto Marinho, agradecendo a informação de que O Globo o acompanharia, e acrescentando: “Roberto, o marechal tem uma preferência.” Do outro lado da linha, o patrão atalhou: “Já sei. É o ‘Chaguinhas’.”

Quando cheguei à redação, naquela tarde, havia a instrução para que passasse no caixa, no dia seguinte, e calculasse quanto precisaria levar para a longa viagem. A partir de Portugal o roteiro ainda não estava completo. O Globo custearia as despesas e eu precisaria comprar as passagens aéreas à medida que fossem definidos os próximos países a visitar. Antes de embarcar, o dr. Roberto me instruiu: “Não se afaste do Costa e Silva. Fique nos mesmos hotéis que ele ficar, viaje nos mesmos voos, compareça aos mesmos restaurantes.” Foi uma farra, financiada pelo jornal. Como seria inverno na Europa e eu não tinha casacão, emprestou-me o dele o governador Negrão de Lima.

Lisboa, Frankfurt, Bonn, Paris, Roma, Beirute, Karashi, Bangkok, Hong Kong, Tóquio, Honolulu, Los Angeles, Washington e Nova York. Dois meses de maravilhosas férias, mas também de trabalho duro. Permaneci sempre atrás do presidente eleito, registrando suas declarações, impressões e encontros, de Oliveira Salazar aos presidentes e primeiros-ministros da Alemanha, Itália, Líbano, Paquistão, Tailândia, Japão e Estados Unidos. Além dos telegramas que mandava quase todos os dias, escrevi na volta uma série de reportagens contando detalhes da passagem do marechal por todos aqueles lugares. Salazar se recusou a me dar uma entrevista, dizendo apenas “Feliz Natal”. De Gaulle não recebeu o novo presidente do Brasil. O Papa Paulo VI ficou quinze minutos conversando com os jornalistas. O primeiro-ministro da Tailândia oferecera um dos mais faustos jantares de que participei. O Príncipe Akihito, em nome do pai, o Imperador Hiroíto, distribuiu medalhas. O já general Vernon Walters levou-nos a uma colina, no Havaí, dando uma aula de como os japoneses haviam bombardeado Pearl Harbour. Lyndon Johnson, na Casa Branca, quis saber como estava a liberdade de imprensa no Brasil.

“Mister, não me dê ordens!”

Na semana que passamos na capital americana, um fato digno de registro: o marechal estava hospedado na Blair House, bem defronte à Casa Branca, e recebeu a visita do ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, um dos artífices do golpe de 1964. Grosseiro, o americano pretendia dar ordens, dizendo a Costa e Silva que deveria manter a política econômica do governo Castello até com Roberto Campos no Ministério do Planejamento. O presidente eleito irritou-se, esticou o polegar no nariz do visitante e encerrou a conversa, com o seguinte corte: “Olha aqui, mister, o senhor não se meta no meu governo. Pode se retirar.”

Naquela noite, mandei um telegrama para O Globo, relatando o encontro. Como de praxe no jornal, notícias políticas explosivas não eram censuradas, mas costumavam ser publicadas nas últimas páginas, sem destaque. Foi o que aconteceu, ainda que aquela informação fosse digna de sair na manchete. O dr. Roberto não queria desagradar o presidente Castello Branco. Nem ele nem o novo chefe de redação do jornal, Moacir Padilha, enciumado porque eu conversava com Castello Branco e com Costa e Silva, enquanto dele nem cogitavam.

O novo ministério

No dia seguinte à nossa volta do exterior, fruto de alguma observação e de informações do coronel Mário Andreazza, pude dar o furo, na primeira página de O Globo, a respeito do futuro ministério: Delfim Netto, desconhecido do grande público, seria o ministro da Fazenda; Hélio Beltrão, no Planejamento; Magalhães Pinto, nas Relações Exteriores; Costa Cavalcanti, nas Minas e Energia; Jarbas Passarinho, no Trabalho; Mario Andreazza, nos Transportes; Garrastazu Médici, no SNI; Lyra Tavares, no Exército; Jayme Portella, no Gabinete Militar; Rondon Pacheco, no Gabinete Civil; Gama e Silva, na Justiça.

Meu furo resultaria em crise e demissões no Jornal do Brasil e em O Estado de S. Paulo, que se tinham negado a enviar repórteres para acompanhar o presidente eleito. A Folha de S. Paulo mandara Washington Novaes, de quem fiquei grande amigo.

É preciso referir que, durante o período em que deixou o Ministério do Exército, passando por sua “eleição” e até a viagem ao exterior e à posse, Costa e Silva compusera diversos grupos de trabalho. O objetivo era preparar seu governo que, não escondia, seria diferente do de Castello Branco, a começar pela política econômica. Queria uma administração voltada para o homem, não para a recessão. Um dos grupos denominava-se de “Relações Públicas” e era dirigido pelo coronel Ernâni D’Aguiar, um dos redatores dos discursos de Costa e Silva ao longo da “campanha”. Aliás, eu viajara na comitiva do marechal por todo o país, ainda que votos, propriamente, não estivessem em disputa. Para mim, uma repetição esmaecida da anterior campanha de Jânio Quadros.

Assim que o grupo se formou, com Walter Poyares, relações- públicas de O Globo, e outros profissionais do setor, sabe-se lá por quais inspirações, Costa e Silva determinou: “Botem o ‘Chaguinhas’ nesse grupo.” Sucediam-se as reuniões, sempre meio esotéricas, realizadas pela manhã numa das salas do escritório do candidato, em Copacabana, em cima do cinema Roxy. Um dos temas sempre presentes era a campanha que os partidários de Castello Branco desenvolviam contra o sucessor, chamando-o de inculto e de burro. Piadas circulavam sobre ele, como a de que seus auxiliares procuravam um presente para o seu aniversário, quando alguém sugeriu um livro. Resposta dos outros: “Livro, ele já tem um...” O coronel D’Aguiar insistia em que criássemos piadas envolvendo a inteligência de Costa e Silva, o que parecia um pouco demais. Certa feita não me contive e disse: “Olha aqui, não precisa piada nenhuma! A resposta é que o ‘velho’, sendo burro, está prestes a assumir a presidência da República! Basta isso!” O coronel não gostou, mas engoliu. Nos textos que me pediam para redigir, naquele grupo, eu sempre puxava para a questão social e a necessidade da retomada de reformas trabalhistas que o governo Castello suprimira. Não sei se chegaram ao novo presidente; desconfio que não.

Atentado à bomba

Sobre a “campanha” de Costa e Silva, em viagem por todo o país, mais um episódio a demonstrar que a esquerda furibunda, não a esquerda consciente, sempre dá pretextos para a direita botar a pata em cima das instituições. O marechal, sempre acompanhado de políticos, assessores militares à paisana e jornalistas, viajava pelo Nordeste. De Fortaleza fomos a João Pessoa, sempre em aviões de carreira, tendo o candidato, durante todo o tempo, recusado o empréstimo de aviões especiais que a Varig não se cansava de oferecer. Depois das atividades de um dia cheio de reuniões e entrevistas, fomos dormir cedo. No dia seguinte, teríamos de estar no aeroporto às sete horas para aguardar o avião de passageiros que vinha do Ceará. O governador João Agripino fazia as honras da casa e logo foi informado do atraso do voo que sairia de Fortaleza. Pelo menos três horas de espera naquele barracão improvisado de aeroporto. Ele mesmo daria a solução: ainda estavam estacionados os automóveis que nos tinham transportado do hotel, e melhor seria seguirmos por terra para Recife, trajeto a ser cumprido em pouco mais de uma hora.

Costa e Silva aceitou a sugestão e caímos na estrada. Quando o comboio se aproximava da capital pernambucana, surgiu em alta velocidade, em sentido contrário, um carro esporte, fechando a estrada, do qual saltaria apavorado, à paisana, um oficial do Exército, explicando vir do aeroporto, onde houvera um atentado à bomba, com mortos e feridos. Com cautela, a comitiva entrou na cidade, já ocupada por tropa armada nas principais praças e cruzamentos.

Anos depois ficaria esclarecido que um casal de sul-americanos ligados a movimentos subversivos deixara uma maleta encostada ao balcão por onde passariam o marechal e seus acompanhantes, se tivessem vindo no avião comercial. A hora da explosão coincidiria com a da chegada da aeronave, não fosse um segurança solícito que, vendo a maleta, tentou afastá-la do local. Rudimentar, a bomba detonara ao ser movimentada. O rapaz perdeu as pernas. Dezenas de pessoas ficaram feridas. Um almirante da reserva e um secretário do estado de Pernambuco morreram.

Com o clima de tensão evidente, a proteção a Costa e Silva passara a contingentes do Exército, cujo comandante local era o general Antônio Carlos Murici. Na parte da tarde, o marechal faria questão de ir ao necrotério, levando os jornalistas, para prestar homenagem aos mortos que tinham ido ao aeroporto para saúda-lo. Chegávamos quando ele saía, emocionado e acentuando: “Vão lá dentro e vejam o que é o comunismo!”

O episódio esquentaria a temperatura no país inteiro. O presidente Castello Branco determinou que um transporte da FAB trouxesse a comitiva, de Recife, sendo que muitos ministros compareceram à chegada de Costa e Silva, no Santos-Dumont, solidarizando-se com ele.

Texto de Carlos Chagas em "A Ditadura Militar e os Golpes Dentro do Golpe 1964-1969", Editora Record, Rio de Janeiro, 2014, capítulo 6. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.


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