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"A Prisão de Tiradentes" tela de Antonio Parreiras (1914) |
Tiradentes era um homem angustiado, naquele princípio de 1787. Foi tropeiro e comerciante, arriscava-se como dentista e cirurgião, tinha terras e um punhado de escravos que lhe rendiam algum dinheiro pela mineração. Já ia se aproximando dos 15 anos na carreira militar e permanecia na mesma patente com a qual entrara. Recitava a lista dos que entraram abaixo e já haviam sido promovidos para além de seu posto, de seus pares que tornaram-se superiores. Parecia a ele, como lembraria depois, “que tinha sido muito exato no serviço”. Era escolhido para “as diligências mais arriscadas”, mas “para as promoções selecionavam os outros, que só podiam campar por mais bonitos ou por terem comadres.”[142] Aos 40 anos, sentia-se angustiado e amargo, precisava de outra vida. Porque, afinal, que tipo de homem era ele? Contava entre seus amigos com alguns dos homens mais ricos da capitania: o fazendeiro José Aires Gomes, os contratadores João Rodrigues de Macedo, Joaquim Silvério dos Reis e o velho Domingos de Abreu Vieira — tão próximo que o alferes o escolheu para apadrinhar sua filha. Em Vila Rica, ele próprio era vizinho de Macedo e Domingos, viviam a meros passos uns dos outros, cerca de dois minutos caminhando. Entretanto, ele próprio não era um homem de posses, não naquele nível. Sua vida parecia empacada. Precisava de uma nova estratégia, uma rota de fuga. O alferes tinha habilidades e pensava muito, planejava, sonhava. Sua cabeça era um turbilhão de ideias e projetos. Em 2 de março de 1787, deixou Minas. Estava cansado e licenciado.
A licença o permitia seguir para Lisboa, mas não chegou a fazer viagem. Ficou pelo Rio de Janeiro, onde já vivera por mais de um ano, no início da carreira militar. A capital da colônia estava se transformando. Durante o governo do vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa, que já durava quase uma década, obras públicas se espalhavam por toda a cidade e as carências de uma população que não parava de crescer eram muitas. Imaginativo, Tiradentes decidiu se fazer empreiteiro. Nos meses seguintes, correu o perímetro urbano e os subúrbios mapeando oportunidades.
Era um Rio diferente. O maciço da Tijuca, que separa as atuais Zona Sul e Zona Norte, o pico do Corcovado no meio, era um grande desmatado, suas encostas cobertas por plantações de cana-de-açúcar. Só muitas décadas depois, durante o Segundo Império, a Floresta da Tijuca foi plantada. Sem proteção ou precipitação nos morros ali, onde nasciam tantos rios, faltava água.[143] Água potável. Mangues, charcos e pântanos, que emanavam cheiro forte e espalhavam mosquitos, não faltavam. Era uma capital portuária, que vivia do fluxo de navios entre colônia e reino, mas os armazéns eram poucos. Muitas vezes, os navios eram descarregados, as mercadorias que traziam ficavam expostas. Furtos não eram raros.[144] E faltavam moinhos onde alimentos, principalmente o açúcar, pudessem ser processados.
O alferes Joaquim José da Silva Xavier submeteu ao governo alguns projetos. O mais ambicioso era a canalização dos rios Andaraí e Maracanã. Nascido no maciço da Tijuca, os tupis o chamavam Andirá-y. Águas dos morcegos. O rio Andaraí, que batizou um bairro, hoje se chama rio Joana e desemboca, não longe do Estádio que já foi o maior do mundo, no rio que lhe emprestou o nome: Maracanã. Em Vila Rica, os rios nascidos na serra do Espinhaço eram canalizados com manilhas feitas da maleável pedra sabão e se proliferavam em inúmeros chafarizes pela cidade. Ao longo daquela década, também o Rio de Janeiro estava ganhando chafarizes, embora em muito menor número, e ainda insuficientes. Aproveitando o trabalho de nível que teria de fazer naqueles rios, Tiradentes pretendia ainda espalhar moinhos para aluguel. E, no porto, construir um píer para a embarcação de gado e armazéns. Se algum dos projetos fosse aprovado, ele sonhava, poderia enfim ficar rico. Foram todos, devidamente, encaminhados para avaliação do Conselho Ultramarino, em Lisboa.
Na capital, porém, não lhe faltava oposição. Os donos de moinhos tinham o monopólio de uma atividade extremamente lucrativa. Quem explorava píeres também. E muita gente fazia dinheiro distribuindo água em vasos através de escravos. Além disso, a canalização do rio Carioca, que havia exigido a construção de um portentoso aqueduto, os Arcos da Lapa, parecia sugerir que a obra de trazer águas ainda mais longínquas seriam longas, complexas e talvez inviáveis. Fez inimigos entre tantos possíveis concorrentes que, certa tarde, teve de deixar uma das duas casas de ópera[145] da cidade sob vaias.[146] Foi um momento marcante que seria lembrado ainda por muitos meses, uma história que chegaria a Vila Rica.
Os projetos de Tiradentes jamais receberiam aprovação, mas não por serem inviáveis. Ainda antes da independência, o rio Joana seria canalizado por ordens do príncipe regente d. João, desembocando num imenso chafariz no Campo de Santana.
Tiradentes: um homem angustiado, amargo, em busca de perspectivas.
Ideias nascem do encontro de pessoas com experiências distintas. Em junho de 1788, quando chegou ao Brasil, o engenheiro José Álvares Maciel, 27 anos, era um homem com inúmeras ideias novas, carregado de notícias e de informação. Tinha ideias sobre indústrias que o país poderia promover. Sobre as riquezas minerais ainda por explorar em Minas. Assim como trazia novidades sobre um mundo em convulsão. Foi natural que, sabendo de sua chegada, o alferes o procurasse. Não se conheciam, mas eram de Minas. O tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrade, marido da irmã de Maciel, liderava os Dragões e, portanto, era comandante de Tiradentes. Seu pai, o capitão-mor de Vila Rica, era conhecido do alferes. E Maciel era um engenheiro de verdade, perante o qual Tiradentes não passava de um mestre de obras.
Um engenheiro vindo de Coimbra, com passagens pela Inglaterra, poderia ajudá-lo, pensou. Frustrado, mas incapaz de se permitir derrubar, movido por um moto-contínuo de novas ambições, ele queria mostrar ao jovem Maciel seu rio Andaraí. Contar-lhe dos planos que tinha. E o engenheiro se deixou levar. Já mais de um ano depois, perante os juízes que o acusavam de conspirador, o engenheiro diria que “viu a dificuldade que aquilo havia de ter e conheceu que as ideias eram de pouco juízo”.[147] Naqueles dias de intenso convívio com Tiradentes no Rio, porém, talvez tenha tido outra opinião.
Em comum, os dois tinham a ambição de encarar grandes projetos e a capacidade de absorver informação. Eram sonhadores. Mas a idade os distanciava e também a condição social. Tiradentes não era pobre, tampouco era rico. Maciel era filho de um homem rico. O militar não havia estudado muito, o engenheiro era doutor. Um era o mar de frustrações, o outro só possibilidades. Se entenderam. Tiradentes sabia um quê sobre minérios na prática, por conhecer profundamente a capitania onde ambos nasceram, tendo-a explorado, patrulhado e nela traçado estradas. Via no governo de Luís da Cunha Meneses inúmeros obstáculos para si. Um governo que atrapalhava a ele e a seus amigos. Maciel, que lera em carta sobre as dificuldades do pai enquanto estava na Europa, compartilhava da mesma opinião.
Há poucos mistérios tão intransponíveis na história quanto o momento exato em que uma ideia surge. Homens se tornarão heróis ou vilões, abraçarão causas, tomarão decisões que seguirão por anos dissecadas nos livros. Mas o momento em que uma ideia foi plantada quase nunca deixa rasto documental. Em que instante, por exemplo, um fiel oficial militar de sua majestade a rainha, por mais insatisfeito que esteja, se permite cogitar sedição? Entre todos os historiadores que se debruçaram sobre a Inconfidência, as teorias sobre em que momento a conspiração teve início são inúmeras. Há quem sugira que o projeto foi costurado ao longo de uma década. Certo é que nenhuma testemunha jamais sugeriu ter ouvido o alferes Joaquim José da Silva Xavier falar de levante antes daqueles dias entre julho e agosto de 1788, quando, entre passeios pelas margens do Maracanã e conversas na sala do comerciante Francisco José Freire,[148] que hospedava Maciel, o assunto veio à tona.
Certa vez, contou-lhe o engenheiro, lera na Oxford Gazette a notícia de que o vice-rei havia morrido. A notícia estava errada, mas logo alguns comerciantes ingleses com quem convivia sugeriram que “era boa ocasião para enviar quatro navios ao Brasil”.[149] No vácuo de poder, o bloqueio português estaria frouxo e o contrabando seria facilitado. De seus amigos ingleses, disse-lhe Maciel, “ouvira falar com admiração de não terem seguido o exemplo da América inglesa”. E, se acaso houvesse a independência, esses comerciantes imediatamente os apoiariam com suprimentos. Tiradentes era todo ouvidos. Um amigo dele, também estudante, ouvira a mesma promessa de comerciantes franceses. E esse mesmo amigo conversara com um ministro dos americanos ingleses que insinuava apoio.
Maciel deixou com o oficial sua cópia do Recueil, a coleção de textos legais traduzidos para o francês sobre a América inglesa independente. Silva Xavier não lia francês a não ser de forma rudimentar, mas logo arranjaria um dicionário.
Aquele pequeno livro seria seu constante companheiro durante os meses seguintes. Mas estava já há um ano e meio licenciado e chegava a hora de voltar para Minas. Havia mudanças no ar e um parecer final sobre seus empreendimentos cariocas, parecia, ia demorar. O governo de Cunha Meneses chegava ao fim e não eram poucos os motivos de otimismo com o novo governador, que se encontrava no Rio. Não era o único mandato terminando em Vila Rica. Também estava no Rio o novo ouvidor, que substituiria Tomás Antônio Gonzaga. As constantes brigas entre governador e ouvidor talvez já estivessem incomodando alguém.
O alferes Silva Xavier não foi o único dos interlocutores que Maciel encontrou no Rio de Janeiro. Na casa de seu anfitrião, recebeu também algumas vezes o padre fugitivo José da Silva e Oliveira Rolim, velho contrabandista de diamantes e cunhado de Chica da Silva. Desde que fora expulso do Serro por Cunha Meneses, o padre se mantinha em movimento. Chegara ao Rio vindo de Minas, estivera antes em São Paulo, onde tinha boa relação com o governador. Amigo e contemporâneo de Tiradentes. Tinha esperanças de que, com o novo governador, sua sorte mudasse.
O terceiro amigo que Maciel fez no Rio chegara de Lisboa mais ou menos na mesma época que ele. Era o visconde de Barbacena, nomeado para o governo de Minas Gerais.
Luís Antônio Furtado de Castro do Rio Mendonça e Faro, o visconde de Barbacena, era um homem afável. Estava para completar 34 anos e vinha de uma das famílias mais nobres de Portugal. Sua inteligência chamara tanto a atenção que, ainda aos 15 anos, foi encaminhado para Coimbra por recomendação do marquês de Pombal. Pegou a primeira turma da universidade pós-reforma, imediatamente adotado pelo professor então recém-chegado, Domenico Vandelli. Quando Vandelli estava doente, ele o substituía. Era engenheiro formado, “uma revelação” segundo o reitor,[150] aos 19 anos, quando seguiu para o segundo diploma, em direito.
Fez direito porque nobres, quase todos, estudavam direito. Mas a sua era uma alma de cientista. Esteve entre os fundadores da Academia de Ciências de Lisboa. Passou seus primeiros anos de adulto investigando jazidas de minério em Portugal. Nomeado para o governo de Minas, contrariando o que quase todos os governadores sempre fizeram, Barbacena veio com a mulher e seus três filhos pequenos. Parecia, desde já aquele início, repetir os passos do benquisto d. Rodrigo, antecessor de Cunha Meneses.
Era o governador perfeito. Para aquela terra da qual todo o Império Português dependia por conta de suas riquezas minerais, era difícil imaginar um homem mais apto ao comando do que um mineralogista. Nobre como era, tinha seu status e fortuna intimamente ligados aos destinos de Portugal. Mas o ministro do Ultramar, Martinho de Melo e Castro, via com desconfianças aquele grupo de cientistas ao qual Barbacena estava afiliado. Se um primo da rainha não fosse presidente da Academia, ela sequer existiria. Ainda assim, para conseguir o cargo no Brasil, o seu primeiro num governo, Barbacena teve de renunciar à organização. Ainda em Lisboa, ele pediu ao Conselho que lhe destacasse um assessor especializado em minerais. Não lhe foi concedido. Mas, chegando ao Rio, logo conheceu um jovem mineiro, também recém-chegado, também aluno de Vandelli. Se Barbacena era o governador perfeito, Maciel seria seu braço direito perfeito.
A boa relação entre os dois foi inevitável. Tinham interesses demais em comum. E o jovem Maciel trazia, da Europa, exatamente o tipo de educação na qual o visconde acreditava. Além de ser seu assessor para mapear os veios de ferro, cobre e salitre na capitania, teria uma função mais íntima: a de preceptor das três crianças. Cuidaria de sua formação nos anos passados no Brasil.
A viscondessa, Ana Rosa de Melo, filha de um marquês, estava doente e não conseguiria enfrentar a longa viagem serra acima. Barbacena tinha pressa para começar o trabalho e, em julho, decidiu seguir para Vila Rica. Sua mulher e as crianças estariam bem, hospedadas com seu tio. E Maciel as acompanharia assim que estivessem aptas à viagem. Na capital mineira, o visconde reencontraria pelo menos um velho conhecido de Portugal. O ouvidor Tomás Antônio Gonzaga.
O padre Rolim não era um homem sonhador e não se deixara levar pelas ideias e notícias de Álvares Maciel. Vivia no mundo prático, não no das ideias. E, neste seu mundo, tinha um problema. O banimento não o impedia de frequentar Minas, muito menos o Serro. Mas precisava se hospedar em fazendas afastadas, procurava viajar fora das estradas e, quando nas cidades, se via obrigado a sair mais de noite do que de dia. Mais que um inconveniente, aquilo lhe atrapalhava os negócios. E se o sacerdote sabia fazer algo era dinheiro, usando seus contatos e a total falta de pudor no contrabando.
Antes de seguir para o Rio, passara por Vila Rica. Início de janeiro daquele 1788. Precisava conversar com seu advogado, o poeta Cláudio Manuel da Costa e saber das novidades. Na casa do ouvidor Gonzaga estava hospedado um primo, também juiz, Joaquim Antônio Gonzaga.[151] Seguia para assumir como ouvidor no Serro do Frio. Era bom agouro, ter o novo juiz de sua terra entre seus contatos próximos. Melhor notícia, ainda, a de que o novo governador fora nomeado e era conhecido do ouvidor. Ninguém melhor do que o novo general para cancelar uma ordem do velho. Pela primeira vez em muito tempo, o pragmático Rolim via motivos para otimismo.
Na maior parte do tempo, porém, se mantinha recolhido numa casa distante. Lá, recebia o capitão-mor José Álvares Maciel que o recomendava procurar, no Rio, seu filho que chegava da Europa. Seu amigo, o tenente-coronel Francisco de Paula, casado com a filha do velho Maciel, era também assíduo na visitante. Dizia que as chances de Barbacena perdoá-lo eram grandes. Tentava animá-lo. À noite, Rolim jogava com os amigos. Gamão, cartas. Tinha, agora, um novo membro em seu círculo de amizades. O contratador Domingos de Abreu Vieira. Compadre de Tiradentes, vizinho de frente de João Rodrigues de Macedo. Tinham interesses comuns no negócio das pedras.
Rolim chegou ao Rio em 23 de março, dia de Páscoa. Tiradentes, seu velho conhecido, fazia um ano na cidade. José Álvares Maciel e Barbacena estavam para chegar.
Em meados de 1788, Tomás Antônio Gonzaga era um homem perdidamente apaixonado.
Foi mais ou menos quando chegou Barbacena a Minas que o ouvidor requereu a Lisboa licença para se casar com Maria Doroteia Joaquina de Seixas. A moça, uma menina aos 19 anos, tinha belos e longos cabelos negros. Filha do capitão Baltazar João Mayrink. Durante o governo de Cunha Meneses, ele fora deposto do cargo de responsável pela segurança do Distrito Diamantino. Era acusado de não ter feito nada para conter o contrabando. Réu confesso. Quando o processo passou pelas mãos de Gonzaga, no ano anterior, o desembargador limitou-se a reformá-lo compulsoriamente sem qualquer condenação.[152] Já esticava o olho para sua filha e pertenciam, ambos, ao mesmo grupo político.
Desde a morte de sua mãe, quando ainda era criança, Doroteia vivia com os tios, Antônia Cândida de Seixas e seu marido, José Luís Saião, capitão dos Dragões. Sua casa, na rua Direita, dividia muro com a residência oficial do ouvidor. Porque a casa de Gonzaga, na ladeira íngreme, ficava imediatamente acima, de seu jardim de árvores frutíferas podia ver o quintal dos vizinhos e, lá, Doroteia. Possivelmente a viu crescer. Os íntimos a chamavam de Duruta.[153] A Marília morena a quem um dia, na solidão da cadeia, o poeta lembrou escrevendo: Nesta cruel masmorra tenebrosa, ainda vendo estou teus olhos belos, a testa formosa, os dentes nevados, os negros cabelos.
Não é ali, tampouco na casa de depois da praça onde viveu quase toda a vida, que Doroteia é celebrada, na Ouro Preto turística. É coisa de um quilômetro antes, na residência onde morou quando criança, em frente à qual hoje está o Largo de Marília. Por ter sido noiva de Gonzaga, é a única celebrada pela história oficial como Marília de Dirceu. Não faltam críticos literários que, para lidar com o fato de que há versos para Marília loura e outros para Marília morena, sugerem que o poeta tentava compatibilizar seu amor real com um ideal greco-parnasiano importado da Europa, devidamente louro. Gonzaga, como Vinicius de Moraes, era literal e teve muitos amores. A história oficial pode reconhecer só uma Marília, mas hoje a existência de Marília loura não desperta qualquer polêmica entre historiadores.
Gonzaga persistia não sendo um homem de posses. Tinha roupas e alguns livros, não muito mais. Pode ter sido porque, na disputa com Cunha Meneses, ficou sem espaço. Ou talvez tenha sido porque, embora não tivesse pudores de favorecer amigos com seu poder, não fosse o tipo de corrupto que acumula dinheiro. Ao fim de seu mandato, Gonzaga continuava precisando trabalhar para garantir o sustento. Por vezes, lembrava da sorte de Anselma, que o trocara pelo governador, e refletia sobre o futuro magro que poderia oferecer a Doroteia. Embora, escreveu para sua jovem noiva sobre sua amante anterior, as paredes da sala onde habita, adorne a seda e o tremó dourado, pendam largas cortinas, penda o lustre do teto apainelado, tu não habitarás palácio grande, nem andarás nos coches voadores. Porém terás um Vate que te preze, que cante os teus louvores.
Para um homem sem grandes reservas financeiras, o momento não era dos melhores para o amor. Diferentemente de Anselma, a jovem Doroteia tinha uma família atenta. A moça não viveria em concubinato. E, para casar, seria necessário esperar uma autorização real. O relógio corria contra. A espera teria de ser por vários meses. Seu sucessor, o ouvidor Pedro José Araújo de Saldanha, estava para chegar. Gonzaga, por sua vez, fora nomeado para assumir a ouvidoria em Salvador, a capital baiana. No momento em que passasse o comando, estaria sem salário até tomar posse no novo posto. Mas, para casar, seria preciso esperar pacientemente a sanção real em Vila Rica.
No dia 12 de agosto de 1788, partiu a cavalo do Rio seguindo para Vila Rica um grupo de homens. Entre eles estava o desembargador Pedro José de Saldanha e, juntando-se a seus camaradas Dragões que o escoltavam, retornava para casa o alferes Joaquim José da Silva Xavier. Fazia um mês que o visconde de Barbacena tomara posse, com promessa de novos ares. No dia 20, o grupo cruzou a fronteira entre as duas capitanias e, no dia 21,[154] saltou na Fazenda da Borda do Campo para pernoitar. Lá os esperava um velho amigo de Tiradentes, o coronel José Aires Gomes.
Gomes estava com 54 anos e sua relação com o alferes era próxima. Haviam percorrido juntos, inúmeras vezes e por longos dias cada uma, as matas da Serra da Mantiqueira, à caça de bandoleiros, nos tempos de d. Rodrigo. Foi por intermédio do fazendeiro que o militar conseguira as sesmarias próximas dali, que lhe garantiam a renda que aliviou o período de licença sem soldo, por um ano e meio. Por outro lado, Tiradentes fora o braço militar que dava ao velho fazendeiro, um dos homens mais ricos de Minas, autoridade local.
Não se viam fazia tempo. Tiradentes encontrou um Aires Gomes otimista, interessado em ouvir suas histórias do Rio e os projetos. Pouco mais de um mês antes, quando vinha da capital, Barbacena havia passado uma noite em sua fazenda. Prometera voltar, pois pretendia encontrar-se com a mulher no meio do caminho quando ela viesse. À noite, sozinhos numa sala, os dois amigos conversavam. “Muito agradável e atencioso para todos”, comentou o fazendeiro.[155] Estava impressionado com o governador, diferentemente do alferes. “Antes fosse o Diabo, pior do que o antecessor”, resmungou. Seu amigo ficou surpreso com a reação. “Estes generais só vêm cá a buscar dinheiro”, continuou Silva Xavier. Em seus depoimentos em juízo, tanto Tiradentes quanto Aires Gomes lembrariam com precisão do que disseram um ao outro naquela noite, um diálogo descrito em detalhes e quase sem discordância.
“Antes fosse o Diabo, porque poderia assim suceder que esta terra se fizesse uma república e ficasse livre dos governos que só vêm cá ensopar-se em riquezas de três em três anos.” As longas conversas com José Álvares Maciel o haviam impressionado. O alferes esboçava e testava pela primeira vez, com seu amigo, um discurso que começaria a repetir ininterruptas vezes nos meses seguintes. “Nas potências estrangeiras se admira que a América portuguesa se não subtraía da sujeição de Portugal.”
Tanto Tiradentes quanto Aires Gomes lembrariam que, naquela noite, surpreso ao ouvir pela primeira vez um discurso sedicioso, o fazendeiro o repreendeu, embora suas lembranças insinuassem tons diferentes. “Sempre haverá um que nos governasse”, disse-lhe Aires Gomes segundo Tiradentes, lembrando ainda um ditado — “Que se neste vale estou, outro melhor me parece.” “Está louco”, lembraria ter dito o fazendeiro, “aquilo não são coisas que se digam.”
E os dois cultivaram um longo silêncio.
Na manhã seguinte, quando o ouvidor montou o cavalo para seguir no Caminho Novo a Vila Rica, o alferes se deixou ficar. Alguns dos agregados lhe pediram que arrancasse alguns dentes. Não se despediu do amigo. Passaria aquela noite alguns quilômetros adiante, na Fazenda do Registro Velho, que pertencia ao padre Manuel Rodrigues da Costa. Foi o segundo a ouvir o ensaio do discurso revolucionário.
Em 7 de setembro de 1788, o desembargador Tomás Antônio Gonzaga passou oficialmente seu cargo de ouvidor da capitania de Minas Gerais a Pedro José de Araújo Saldanha. Deixou também a residência oficial e se transferiu para o outro lado da rua, assentando-se provisoriamente num casarão em frente ao local em que vivia seu amigo Cláudio Manuel da Costa.
No dia 22 de setembro, um ansioso visconde de Barbacena se pôs no Registro do Paraibuna para esperar sua mulher e os filhos que vinham do Rio, acompanhados do jovem Álvares Maciel. Decidira, como seus dois antecessores, que ficaria vivendo no Palácio da Cachoeira, afastado de Vila Rica. No princípio, ainda tentou despachar na capital às quartas e aos sábados.[156] Mas, lentamente, foi perdendo primeiro um dia, depois outro e o hábito desaparecendo. Tinha um palacete pronto para a família, uma casa agradável com jardim e lago que fora restaurado uma década antes por d. Rodrigo justamente para ser um lugar bom de receber e divertido para crianças.
Logo após sua posse, tanto sua cordialidade quanto o perfil ilustrado eliminaram a amargura que tomara conta de Minas. Havia otimismo. Gente como o cônego de Mariana, Luís Vieira da Silva, e o recém-chegado filho do capitão-mor talvez sonhassem com o exemplo anglo-americano. Tiradentes podia estar começando, intimamente, a depositar suas ansiedades numa vaga ideia de república, já antevendo mais um fracasso nos projetos de empreendedorismo carioca.
Eram exceção. Em Minas, todos queriam botar o passado para trás enquanto nutriam a esperança de que, com aquele governador, tudo seria diferente. Tudo voltaria a ser como antes. O que poucos sabiam, no entanto, era a natureza das ordens que Barbacena trazia de Lisboa. Pelas mãos daquele homem afável e inteligente, o pesadelo mineiro perigava ser ainda maior do que nos tempos do Fanfarrão Minésio.
Notas
[142] Autos de devassa da Inconfidência Mineira, vol. 5.
[143] MATTOS, Rosa Augusta Aluizio de. A gestão sustentável de recursos hídricos, o caso do controle das enchentes da bacia hidrográfica do rio Joana.
[144] JARDIM, Márcio. Op. cit.
[145] CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista.
[146] GONÇALVES, Adelto. O inconfidente que virou santo: estudo biográfico sobre Salvador Carvalho do Amaral Gurgel.
[147] Autos de devassa da Inconfidência Mineira, vol. 5.
[148] Autos de devassa da Inconfidência Mineira, vol. 2.
[149] Autos de devassa da Inconfidência Mineira, vol. 5.
[150] JARDIM, Márcio. Op. cit.
[151] Autos de devassa da Inconfidência Mineira, vol. 2.
[152] GONÇALVES, Adelto. Gonzaga, um poeta do Iluminismo.
[153] OLIVEIRA, Tarquínio J.B. de. As cartas chilenas, fontes textuais.
[154] Autos de devassa da Inconfidência Mineira, vol. 1.
[155] Autos de devassa da Inconfidência Mineira, vol. 5.
[156] JARDIM, Márcio. Op. cit.
Texto de Pedro Doria publicado em "1789 - A História de Tiradentes, Contrabandistas, Assassinos e Poetas que Sonharam a Independência do Brasil", Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2013. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.