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Retrato de dona Maria I, pintado por Giuseppe Troni, exposto no Palácio Nacional de Queluz, em Portugal |
No entanto, o golpe mais doloroso à rainha foi a morte de seu primogênito, o príncipe do Brasil, d. José, em setembro de 1788. Em 1783, d. João havia sofrido um ataque moderado de varíola. Tendo sobrevivido, estava imunizado. D. José, contudo, pegou a doença em 1788 e d. Maria achou que, a exemplo do que acontecera ao filho mais novo, também o herdeiro do trono se recuperaria logo, o que acabou não ocorrendo.
Desde 1720, já havia uma “vacina” para a doença: por meio de um corte na pele do braço, inseria-se pequena quantidade de um líquido tirado de pústulas da varíola. O paciente acabava contraindo uma forma menos perigosa da doença e ficava imunizado a vida toda. Assim como Catarina, a Grande, que pediu para ser vacinada com seu herdeiro, diversas casas reais imunizaram seus príncipes. A rainha d. Maria foi aconselhada a fazer o mesmo, mas recusou porque, segundo seus princípios religiosos, a vacinação seria contrária aos desígnios de Deus.
Com a morte do filho pela doença, enlouquecida pela perda, passou a se culpar por não tê-lo vacinado, considerando-se responsável pela tragédia. Enquanto isso, o povo, à boca miúda — como aconteceria com d. João VI e com d. Pedro —, procuraria culpados entre os médicos e os cortesãos e desenvolveria tramas de envenenamento e até de descaso deliberado visando à morte do doente.
Ao que tudo indicava, o príncipe daria prosseguimento aos planos de Pombal assim que chegasse ao trono, no intuito de modernizar Portugal. D. José teve como preceptor o frei Manuel do Cenáculo Vilas-Boas Anes de Carvalho, que lhe transmitira os princípios iluministas tão caros ao marquês. Por influência do religioso, o príncipe do Brasil seria favorável a leis mais sóbrias e benéficas ao povo, contrariando a altamente dispendiosa, vã e pomposa manutenção do patriarcado de Lisboa.
Segundo o embaixador britânico Robert Walpole:
"Suspeita-se que sua Alteza Real foi tratado de forma inábil. A nobreza é cautelosa e prudente e, em silêncio, lamenta o melancólico acontecimento, mas as imprudentes classes baixas não se têm refreado de refletir sobre a ignorância e a inabilidade do médico principal. Tendo isto chegado aos ouvidos de Sua Majestade, pode ter contribuído para a sua resolução de se retirar para Queluz".
Em novembro, d. Mariana informava da Espanha ter tido mais um filho, mas logo novas cartas cruzariam a fronteira e inaugurariam nova fonte de dor na já abalada rainha. O bebê nascera com varíola, e logo mãe e filho estavam mortos, seguidos pelo genro da rainha, esposo de d. Mariana e pai do bebê. Assim, em menos de três meses, d. Maria perdia para a varíola dois dos três filhos ainda vivos, um neto e um genro.
Com a morte de seu confessor, um novo lhe foi indicado: José Maria de Melo, bispo do Algarve. O anterior apaziguava os temores da rainha, dizendo-lhe que não se preocupasse com a participação do pai no esquema que levara à execução de membros da alta nobreza lusitana e que ele mesmo, o confessor, sofreria por ela. Por sua vez, José Maria não só lutava pela reabilitação das famílias implicadas na tentativa de assassinato de d. José I, ação que levou ao julgamento dos Távora, mas também afirmava que tanto o pai de d. Maria quanto Pombal estariam ardendo no inferno. Aliás, o tema “inferno”, do qual a rainha morria de medo, era o favorito das preleções do bispo do Algarve, que a ameaçava dizendo que o local estava à sua espera.
Cercada pela morte de todos os lados, consumida em culpa pelo falecimento do príncipe herdeiro, no auge da menopausa e com um confessor fazendo contagem regressiva para o encontro da rainha com o capeta, não é de se estranhar que ela enlouquecesse aos 57 anos, levando o inexpressivo e despreparado príncipe d. João a assumir a regência em nome da mãe.
O príncipe regente
D. João, com a morte do irmão, passou a ser o novo príncipe do Brasil, título dado ao herdeiro da coroa. Após quatro anos assim, ele tomou as rédeas do poder a 10 de fevereiro de 1792. Oito dias antes, d. Maria I enlouquecera definitivamente durante a execução de uma peça teatral no palácio real de Salvaterra, puxando seus cabelos e roupas enquanto os serviçais tentavam acalmá-la, sem, porém, tocarem em sua pessoa, a fim de não cometerem afronta contra Sua Majestade.
Sete anos durou o ofício informal de d. João em cuidar dos negócios do Estado português; depois de muito relutar, ele enfim aceitou o encargo, que já lhe vinha sendo solicitado pelos principais ministros, de assumir como príncipe regente em nome de sua mãe. D. Maria I foi declarada oficialmente louca ao fim desse período, durante o qual passou por terríveis tratamentos aplicados pelo dr. Francis Willis, médico do rei da Inglaterra, Jorge III. Entre os procedimentos estavam: purgativos, vomitórios, o uso de camisas de força, imersão em banhos congelantes e a aplicação, nas pernas, de pomadas que provocaram úlceras. Por fim, e uma vez que a rainha não queria mais alimentar-se, criaram um instrumento com o qual lhe enfiavam a comida garganta abaixo.
Com a chegada oficial de d. João à regência, a relação entre ele e d. Carlota Joaquina deteriorou-se. Ressentida por querer compartilhar o governo com o marido e notar que isso não ocorreria nunca, aquela mulher sem dotes femininos, baixa e, após uma queda de cavalo, também manca — mas também extremamente inteligente e ávida pelo poder — acabou desenvolvendo sua própria rede de informações e intrigas. O casamento, com isso, foi desmoronando. Tudo convertia-se em motivo de desavença — por exemplo, se d. João concordava com o casamento de uma dama de d. Carlota com certo fidalgo do paço, esta se punha contra o arranjo e ao lado da dama que desejava se casar por amor.
D. João, assim como a mãe d. Maria, era dado a crises de depressão, deixava-se ficar cada vez mais em Mafra. Entre 1805 e meados de 1806, teve diversos incômodos, tonturas e indisposições, isso tudo aliado à melancolia. De Mafra, acabou partindo para Vila Viçosa, e os rumores de que estava com os mesmos sintomas da primeira fase da doença mental que atingira d. Maria começaram.
Em 1806, d. Carlota escreveria aos pais, os reis da Espanha, para relatar-lhes que “o príncipe está com a cabeça quase totalmente perdida”.22 Ao pai, foi mais longe e pediu que pressionasse d. João a fazê-la membro do Conselho de Estado.
A princesa, em parceria tanto com os marqueses de Alorna e de Ponte Lima quanto com os condes de Sarzedas e de Sabugal, procurou tomar a regência. Vazada a conspiração, que ficaria conhecida como a “conspiração dos fidalgos” ou “de Mafra”, o príncipe regente, em um raro assomo de energia, retornou a Lisboa para dar fim à trama, desterrando diversos nobres e demitindo servidores da corte.
D. João e d. Carlota passariam a viver em cortes separadas. Enquanto ela passava a maior parte do tempo na sua Quinta do Ramalhão, ele ficava no palácio-convento de Mafra, habitação rica e monumental construída por seus antepassados com a fortuna proveniente das colônias; ali, gostava de assistir às liturgias e acompanhar peças de música sacra. Quem mais se prejudicou com a separação foi o pequeno príncipe da Beira, d. Pedro de Alcântara, que acabou por morar no Palácio de Queluz em companhia da avó louca.
Rumo à primeira grande aventura
D. Maria parecia enlouquecer junto com o mundo que conhecera até então. Em 1789, teve início a Revolução Francesa, que destruiria todos os resquícios do feudalismo francês e derrubaria os privilégios da aristocracia e da igreja. A monarquia absolutista dos Bourbon, na França, cairia, e em 1793, para tentar sepultá-la completamente, foram julgados e decapitados diante da sanguinária turba parisiense o rei Luís XVI e a rainha Maria Antonieta. Esse período da Revolução ficou conhecido como Terror; nessa fase, vários nobres, aristocratas e prelados franceses fugiram para salvar a própria vida, sendo recebidos em diversas cortes, entre as quais a portuguesa. Muitos seguiriam futuramente para o distante Brasil.
Com a quebra das estruturas do antigo regime e, consequentemente, também das velhas alianças familiares, a Espanha e a França acabaram por se alinhar diplomaticamente, em 1795, contra a Inglaterra. Isso deixou Portugal em uma posição delicada, ainda mais porque enviara tropas para ajudar os espanhóis e os britânicos contra a França revolucionária na Campanha do Rossilhão, na região dos Pirineus. A Espanha, sem comunicar a seus aliados, assinou o Tratado da Basileia e, juntando-se ao antigo inimigo, pôs fim ao conflito. Portugal viu-se traído pelos espanhóis e pressionado, por ambos os países, a se aliar a eles contra os ingleses. A Inglaterra era seu principal parceiro econômico e, consequentemente, também militar.
D. João tergiversou, tentando manter a neutralidade do frágil Portugal, que por anos estivera sofrendo com o descaso de d. Maria e depois do príncipe regente, incapazes de modernizar, treinar e melhor equipar seu exército. Enquanto o príncipe tentava ganhar tempo em negociações que lhe garantissem a paz, o impaciente e poderoso ministro espanhol Manuel de Godoy, amante da rainha Maria Luísa, mãe de d. Carlota, pressionou a França para uma ação conjunta contra o vizinho. Os portugueses podiam não dispor de um exército significativo, mas tinham diplomatas e espiões (se é que houvesse diferença entre ambos à época) nas principais cortes europeias. Assim, foram descobertos os planos da Espanha. D. João solicitou ajuda à Inglaterra, que desembarcou uma força expedicionária de seis mil homens. Tal força seria desmobilizada futuramente, já que, além da guerra diplomática, nenhuma invasão ocorreu.
Em meio a todas essas tensões, d. Carlota pegou a pena em 20 de julho de 1798 para pressionar o pai, o rei Carlos IV da Espanha:
"Sendo assim, sinto vivamente as ameaças de V.M. contra seus próprios descendentes, e não posso concordar com que não haja meios de compor tudo de maneira que o mundo não seja testemunha de um proceder da parte de V.M. contrário à natureza. Ah, querido Papai, e que glória dará a memória de V.M. ser um pai tão sanguinolento com a destruição da sua Casa, dos bens e da vida de seus filhos? E isso para se queria? Para agradar a um governo coberto do sangue da nossa família.23 [...] O governo francês, em seu plano de revolução universal, e já se me afigura, juntamente com nossa destruição, a de V. M.,24 uma vez que consintas que entrem armados em seus estados aqueles malditos instigadores e pregadores da rebelião."25
Com o golpe de 18 de Brumário, em 9 de novembro de 1799, e a ascensão de Napoleão, uma política externa ainda mais agressiva surgiu por parte da França. Em 29 de janeiro de 1801, ela e a Espanha assinaram um acordo estipulando a invasão de Portugal caso este não concordasse em:
• Romper diplomaticamente com a Inglaterra e fechar os portos portugueses aos navios britânicos, permitindo no lugar o comércio com os espanhóis e os franceses.
• Ceder parte de seu território para compensar a perda, pela França e Espanha, das ilhas de Minorca e Malta, tomadas pelos ingleses.
• Indenizar a Espanha e a França por prejuízos causados pela sua posição favorável à Inglaterra.
• Rever todas as fronteiras.
Sem acordo, tanto o embaixador francês quanto o espanhol deixaram Lisboa. Ignorando que o pai assinara a declaração de guerra a Portugal no final de fevereiro, d. Carlota escreveu-lhe em 22 de março de 1801:
"Senhor,
Papai do meu coração, da minha vida e da minha alma: como soube que o Príncipe26 escrevia a V.M., quis aproveitar-me da ocasião para pôr-me aos pés de V.M. e assegurar-lhe quanto me afligiu com essas dissenções que há entre estas duas Cortes, Deus queira apaziguá-las segundo os desejos do príncipe, e meus; agora peço a V.M. que me dê sua benção, e aos pequenos, e que, lembrando-se de que tem aqui esta filha, e cinco netos, às vésperas de seis, há de ajudar para que nos [...] em sossego, como todos desejamos."27
Um mês após a carta da infanta, teve início o que ficou conhecido como a “Guerra das Laranjas”, um confronto que durou menos de um mês e no qual tanto a Espanha quanto Portugal ganharam e perderam. Enquanto a região portuguesa de Olivença, na fronteira com a Espanha, foi tomada pelos espanhóis, Portugal conquistou terras espanholas no Brasil. O Rio Grande do Sul aumentou o seu território em um terço; no Mato Grosso do Sul, a tomada e consequente destruição do forte São Jorge, à margem meridional do rio Apa, permitiu que a fronteira brasileira se consolidasse definitivamente ali. A mãe de d. Carlota, rainha Maria Luísa, teria recebido de seu amante, o ministro Manuel Godoy, um ramo de laranjeira supostamente colhido nos campos de Elvas, informando-lhe assim de que tomara Olivença — daí o nome pelo qual a rápida guerra ficou conhecida.
Em 1801, além da perda de parte do território português, o suplemento da Gazeta de Lisboa no 24, de 19 de julho, anunciava:
"Havendo enfermado de bexigas a 30 de Maio o Sereníssimo Senhor D. António, Príncipe da Beira, dentro de poucos dias ofereceu o mal sintomas terríveis. [...]. Como pois, apesar de todos os socorros da Arte, se tornassem mais temerosos os sintomas, determinou logo o Príncipe Regente N.S., por efeito da sua grande piedade religiosa, unida ao seu singular desvelo paternal, que se implorasse o auxílio do Céu; e em consequência se fizeram Preces públicas em todas as Igrejas desta Capital. Não foi porém do agrado da Providência ouvir estas rogativas, [...] passou S. A. R. a melhor vida a 11 do corrente pelas 8 e meia da noite, em idade de 6 anos, 2 meses e 20 dias. Esta grande perda deixou a seus Augustos Pais penetrados da maior mágoa, não só pelo carinho e ternura com que amavam o defunto Príncipe, senão também por conhecerem de mais perto as raras qualidades que possuía em grão muito superior às peculiares de tais anos; porém em meio de tão viva dor deram novas provas da sua constante piedade, sofrendo com uma verdadeira resignação Cristã o expressado golpe, que igualmente afetou as demais Pessoas Reais, e a toda a Corte".
Assim, com a perda do irmão mais velho por varíola, d. Pedro, então com três anos incompletos, recebeu o título de príncipe da Beira, que era dado ao filho mais velho do herdeiro da coroa. A este, era reservado o título de príncipe do Brasil, tal como na Inglaterra o herdeiro tem o título de príncipe de Gales.
Enquanto a sucessão ao trono português era remodelada pela morte de mais um Bragança, a Europa tinha suas fronteiras redesenhadas por Napoleão. A França crescia territorial e espiritualmente. Os ideais propagados pela Revolução Francesa, o exército napoleônico e o gênio militar do corso apavoravam as monarquias europeias ainda de pé. Portugal, visando manter a neutralidade, pagava, e bastante caro, por isso. Em maio de 1803, d. João concordou em fazer um acordo com a França em que lhe daria um milhão de libras, dividido em prestações de 40 mil por mês. O conselheiro Rodrigo de Sousa Coutinho protestou. Segundo ele, o dinheiro seria mais bem empregado na defesa de Portugal do que em “sujeitar-se a um sistema de escravidão perpétuo, e que constituirá V.A.R. a feudatário do governo francês”.28
Notas
9 D. Pedro IV. Disponível em: http://www.dpedroiv.parquesdesintra.pt/cronologia/1798/julho/d/preparativos-para-o-nascimento-de-d-pedro/7#datas. Último acesso em: 24/10/2014.
10 Determinados tecidos eram legalmente proibidos de entrar em Portugal. É provável que a tal “renda fina” tenha vindo de fora do país. Sobre o assunto: PEDREIRA, Jorge Miguel. Indústria e atraso económico em Portugal (1800-1825): uma perspectiva estrutural. p. 563-596.
11 Gazeta de Lisboa no 39, 28/09/1798.
12 RESENDE, Marquês de. Elogio histórico do senhor rei D. Pedro IV. p. 5.
13 Op. cit., p. 6.
14 LACOMBE, Lourenço Luiz. João VI, p. 145.
15 Ofício do Marquês de Louriçal, apud BEIRÃO, Caetano Maria de Abreu. Dona Maria I, 1777-1792, p. 321.
16 A Real Barraca era um palácio de madeira, um edifício comprido, térreo. O prédio foi construído em 1757, após o grande terremoto que destruiu grande parte da cidade de Lisboa. D. João V, depois do terremoto, passou a temer construções de pedras.
17 ROBERTS, Jeniffer. D. Maria I, p. 62.
18 PEREIRA, Ângelo. D. João VI, Príncipe e Rei, vol. I, pp. 45-6.
19 BOMBELLES, Marc Marie. Marquis, Journal d’un Ambassadeur de France au Portugal, 1786-1788, p. 313.
20 BEIRÃO, Caetano Maria de Abreu. Dona Maria I, 1777-1792, p. 447.
21 HISTÓRIA de el-rei D. João VI, p. 127.
22 NOGUEIRA, Francisca L. Carlota Joaquina, cartas inéditas, pp. 87-8.
23 Carlota Joaquina faz menção aos Bourbon franceses, isto é, aos reis Luís XVI e Maria Antonieta.
24 Carlota aqui dá prova de sua inteligência e perspicácia, uma vez que prevê o que realmente aconteceria: o aprisionamento do pai e do irmão e a instalação de um irmão de Napoleão no trono espanhol.
25 NOGUEIRA, Francisca L. Carlota Joaquina, cartas inéditas, pp. 74-5.
26 Referência a d. João.
27 NOGUEIRA, Francisca L. Carlota Joaquina, cartas inéditas, p. 76.
28 LIGHT, Kenneth. A viagem marítima da família real, p. 23.
Texto de Paulo Rezzutti em "D. Pedro - A História Não Contada", LeYa Editora, São Paulo, 2015. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.