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A ASSUSTADORA HISTÓRIA DA MEDICINA - OS BARBEIROS DEMONIACOS

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A cirurgia moderna foi inventada pela pólvora.

HONRAS DE BATALHA

Através do avanço inexorável da civilização, os golpes de espadas e lançamento de flechas foram superados, mais ou menos em 1450, pela pólvora e pelos tiros. Suas vantagens foram reconhecidas imediatamente. Era um modo mais eficiente e menos trabalhoso de mutilar e matar seres humanos, o que convidava à engenhosidade na sua aplicação e necessitava de implementos que logo se tornaram de baixo custo e que podiam ser produzidos em profusão. Acabou rapidamente com a Guerra dos Cem Anos e com o feudalismo. Mais tarde, confirmou a superioridade dos americanos sobre os peles-vermelhas e o domínio da África pelos europeus, no século XIX, devido à sua eficiência nas mãos dos poucos contra os muitos que não a possuíam.

As avarias provocadas pela pólvora ocuparam os cirurgiões do renascimento tanto quanto as provocadas pela sífilis. Ferimentos a bala e feridas eram as mais comuns e óbvias desgraças da humanidade. Uma espada ou uma alabarda abre o corpo com um golpe limpo, mas a bala de uma arma complica o assalto militar com carne queimada e pedaços de chumbo e de tecido no interior do corpo. A rainha Elizabelh felizmente contratou para cuidar de Hawkins e Drake seu cirurgião militar Thomas Gale (1507-86), cujo livro An Excellent Treatise of Wounds Made with Gonneshot contradizia todos os outros cirurgiões da Europa, em 1563, afirmando que a bala suja não era tão quente quanto o cautério purificador. Sua majestade foi também muito bem servida no mar, na luta contra a Armada, por William Clowes (1549-1604), que, em 1591, disse a mesma coisa no seu A Profilable and Necessarie Book of Observations for All Those that Are Burned With the Flame of Gumpowder Etc and also for Curing of Wounds Made with Musket and Caliver Shot and Other Weapons of Warre Commonly Used at this Day both by Sea and Land.

Os reis franceses que vieram depois, Francisco I (que morreu em 1547, com 53 anos), Henrique II (que morreu em 1559, de um ferimento durante uma justa amistosa com um escocês), Francisco II (que casou com Mary, rainha da Escócia, aos 14 anos e morreu de um abscesso no ouvido com 17 anos, em 1560), Carlos IX (que morreu de tuberculose, aos 24 anos, em 1574) e Henrique III (assassinado aos 38 anos, em 1589) tiveram mais sorte, nessa época de inovação, com a presença do seu cirurgião do exército Ambroise Paré (1510-90), o Pai da Cirurgia Moderna.

Naquela época os ferimentos a bala eram tratados com óleo fervente, mas certa noite, durante o ataque de Francisco I a Turim, em 1537, o óleo acabou e Paré passou a aplicar uma emulsão de ovos, água de rosas e essência de terebintina. Depois de uma noite, ansiosa e insone, de manhã Paré viu, aliviado, que seus pacientes estavam vivos, et tant mieux!, quase sem febre e sem dor. Os pacientes tratados com óleo fervente estavam inchados, agonizantes e morrendo. A partir de então Paré abandonou o óleo fervente, adicionou gordura de cachorro à sua mistura, vermes e óleo de lírio e caminhou pela enfermaria dizendo humildemente “Je le pansay, Dieu le guarit"— eu apliquei o curativo, Deus fez a cura.

Paré era outro irrepreensível médico-aforista. Dois dos seus aforismos merecem ficar guardados na mente dos estudantes de medicina:
— Nunca perca a esperança no paciente, mesmo (quando os sintomas apontam para uma fatalidade.
— Aquele que se toma cirurgião por amor ao dinheiro não conseguirá nada.

Paré era outro médico prático, como Hipócrates, que preferia aprender com os pacientes, não com os livros. Nos 10 dias entre o ferimento de Henrique II, no combate singular, e sua morte, Paré procurou o melhor tratamento, dissecando quatro cabeças humanas recentemente decapitadas, gentilmente cedidas por criminosos locais. Um huguenote suspeito, ele sobreviveu ao massacre do Dia de São Bartolomeu, em 1672, graças à proteção da câmara do real mandante da matança. “Não é razoável que uma pessoa que vale um mundo inteiro de homens seja assassinada assim”, admitiu Carlos IX. Paré misericordiosamente aboliu a castração como cura rotineira das hérnias masculinas.

UM BENFEITOR DA CIRURGIA

A guerra continuou a ser um estímulo admirável e consistente para o desenvolvimento da cirurgia. Quanto maior e mais profundo o ferimento, provocado pelo aperfeiçoamento das técnicas de matar, mais hábeis e mais informados ficavam os cirurgiões. O imperador foi ferido apenas uma vez em suas campanhas, na batalha das Pirâmides, em 1789, quando levou um coice do próprio cavalo no pé. Seu cirurgião era Dominique Jean Larrey (1766-1842), “o homem mais virtuoso que já conheci”, para o qual ele deixou 100.000 francos e concedeu a dignidade de barão por ter matado os cavalos dos oficiais para alimentar os feridos.

Larrey inventou a "ambulância voadora”, uma caixa leve sobre duas rodas, puxada por dois cavalos, para retirar os feridos do campo de batalha, ao invés de deixá-los para morrer até a luta terminar. Cirurgião-chefe de la grande armée, Larrey teve uma vida muito ocupada (1.900 feridos em Abukir, 200 amputações por dia em Borodino). Ele próprio foi ferido cm Waterloo, foi cirurgião de Luiz Filippe e estava esperando em Les Invalides, com seu uniforme de gala, quando Napoleão voltou de Santa Helena.

No outro lado, em Waterloo, estava Sir Charles Bell (1774-1842), um escocês que morava na Soho Square, artista hábil e pescador com isca artificial, o homem que separou os nervos sensores dos motores, uma descoberto tão importante quanto a da circulação do sangue, por Harvey. Ele é popularmente conhecido pela paralisia parcial da face de Bell. Era filho de Manse, vivia bem e morreu pobre.

Sir Charles operava imparcialmente amigos e inimigos, com duas horas de sono por noite:

É impossível descrever o quadro de miséria humana que eu linha sempre ante meus olhos. Enquanto eu amputava a perna de um homem na altura da coxa, 13 muros feridos esperavam para ser operados... Era estranho sentir minha roupa engomada com sangue e meus brados exaustos com o esforço de manejar o bisturi!

Oito dias depois da batalha ele visitou o campo da luta.

A vista do campo, os ataques galantes, as cargas, os episódios individuais de iniciativa e valor me fizeram lembrar o sentido, para o mundo, da palavra vitória e o que significa Waterloo. Mas isso tudo passa. Uma visão sombria e desagradável da natureza humana é a conseqüência inevitável de ver todas as partes do todo como eu vi — como fui obrigado a ver.

Certamente.

A cirurgia retribuiu a inspiração da guerra, tornando-a menos letal. A tala para imobilizar o membro quebrado, desenhada pelo filho de um galês especialista em fraturas ósseas, o fumante inveterado e com gorro de pano Hugh Owen Thomas (1843-91), clínico geral nos bairros pobres de Liverpool, foi introduzida para fraturas compostas do fêmur em 1916 e, em 1918, havia reduzido o índice de mortalidade de 80% para 20%. O tio do Kaiser, o cirurgião Friedrich von Esmarch (1823-1908), insistia nas bolsas de instrumentos para curativos durante a Guerra Franco-Prussiana de 1870-71. Ele inventou uma enorme atadura de borracha para retirar todo o sangue da perna, antes da operação, facilitando a vida do cirurgião. Nikolai Ivanovitch Pirogoff (1810-81), o russo inovador do éter, foi o cirurgião militar que, como Florence Nightingale na Criméia, irritou as autoridades insistindo em medidas de maior conforto para os médicos e introduzindo enfermeiras de guerra, onde antes só havia enfermeiros.

Na I Guerra Mundial, as forças dos EUA tiveram 234.300 feridos, dos quais 14.500 morreram devido aos ferimentos. O que significa que 219 800 sobreviveram, 6,25%. Na II Guerra Mundial só o exército dos EUA teve mais do dobro de feridos, 572.027, e 25.493 deles morreram em virtude dos ferimentos, 4,5%.

Um modo mais confortável de matar seu semelhante é o automóvel. O departamento do governo britânico responsável pelo controle das estradas anunciou orgulhosamente que o total de 4.655 mortes por ano em acidentes de automóvel havia caído para o nível de 43 anos antes. Nas ruas da Grã-Bretanha, em 1930, 4% dos que foram feridos morreram. Em 1960, 2% dos feridos morreram, Em 1990, 1,6% morreu. Portanto, a cirurgia faz também motoristas melhores.

TODOS OS CIRURGIÕES DO REI

A história dos cirurgiões é mais encorajadora e mais consecutiva que a do médicos, porque no começo eles eram um bando de barbeiros que cortava e barbeava com um pouco mais de ousadia. Ambroise Paré era originário da cidade têxtil de Laval, filho de barbeiro, irmão de barbeiro e barbeiro. Em 1500, Paris distinguia com esnobismo os barbeiros-cirurgiões dos “cirurgiões acadêmicos, de mantos compridos". O mesmo acontecia na sociedade no tempo da Madame de Pompadour, entre a alta noblesse de robe e a feudal noblesse d’épée. A faculdade de medicina da Universidade de Paris, acrescentada às de Divindade, Artes e Direito, no século XII, por Luiz VII, elevou o posto dos barbeiros em 1503, acolhendo-os, e não aos cirurgiões de mantos longos, que a faculdade detestava. Esses cirurgiões tiveram de sair e se juntar aos clínicos. Os médicos clínicos de Paris, ça va sans dire, desprezavam todos os tipos de cirurgiões.

Os barbeiros dos clubes da Inglaterra haviam formado guildas em todas as cidades, como os merceeiros, os negociantes de fazendas e os comerciantes de artigos para homens, e subiram socialmente quando Thomas Vicary (1495-1561) convenceu seu paciente, Henrique VIII, a promover todos eles a cirurgiões. Sua majestade graciosamente criou a Companhia dos Barbeiros-Cirurgiões Unidos, em 1540 (Holbein pintou a ocasião). Era basicamente um sindicato exclusivo e fechado, com o encorajamento do uso de dois criminosos enforcados por ano para praticar anatomia. Seu emblema era o poste com listras vermelhas e brancas dos barbeiros, que significavam o curativo e a sangria. Os escoceses ganharam uma concessão semelhante, em 1506, de James IV, mas com direito a só um criminoso por ano, embora tivessem conseguido o monopólio do uísque em Edimburgo.

Depois de quase 150 anos, os cirurgiões de Londres começaram a sentir que os barbeiros não eram de modo algum o tipo de pessoas com quem eles desejavam conviver, e resolveram pedir a Carlos II o divórcio, que foi finalmente concedido por George II, em 1745, quando eles se tornaram a nova Companhia de Cirurgiões, construíram o Salão dos Cirurgiões, no Old Bailey, e começaram a jantar agradavelmente em boa companhia.

A INFELIZ FRATURA DE POTT

O ano de 1756 foi muito movimentado para os planejadores da cidade de Londres. A Ponte de Westminster foi aberta, como a segunda de Londres, em 1750 (Canaletto a pintou), e a ponte Pitt estava programada para começar a ser construída em 1760 (depois tomou o nome de Blackfriars). Ao sul do Tâmisa, novas estradas se delineavam, irradiando de Lambeth Marshes: saindo de Lambeth Horse Ferry, siga em frente até passar o palácio do arcebispo, então vire à direita, no Dog and Duck, para tomar a Rodovia Kennington e Surrey, ou vire para a esquerda, passando pela Alsmhouse Fishmonger para a Velha Estrada Kent, Canterbury, os portos do Canal e a comunidade européia.

O tempo de três horas que o rei levava para ir de Whitehall a Greenwich Palace foi sensacionalmente reduzido em três quartos. O pedágio, um penny por carruagem, meio penny um cavalo. Percival Pott (1714-88), cirurgião do Hospital São Bartolomeu — que dava para o Mercado de Gado de Smithfield, no centro da cidade — em janeiro daquele ano de futuro tão promissor passava a cavalo pela Velha Estrada de Kent, para cruzar a ponte de Londres, a caminho de casa, em Bow Lane, quando caiu e sofreu uma fratura de Pott.

O tratamento para fraturas expostas era necessariamente heróico: amputação. Deitado na lama, rodeado pelos londrinos curiosos, Pott olhou para as duas pontas da sua tíbia que haviam rasgado a pele. Com impassividade profissional, ele enviou um mensageiro para Westminster, no outro lado do rio, para trazer rapidamente dois carregadores de liteiras com seus varais. Enquanto esperava comprou uma porta, e quando os carregadores chegaram esbaforidos ele mandou que a pregassem nos varais, fez com que o deitassem cuidadosamente sobre ela e partiram para Bow.

Estavam preparando os instrumentos para a amputação quando um colega de Bart chegou e disse que não ia haver operação. A delicadeza do transporte e a imobilização da fratura tiveram como resultado uma possibilidade de não ser preciso amputar a perna, uma operação que Pott disse, estremecendo, ser “terrível de agüentar e horrível de ver”. Ele escapou da infecção, que teria sido letal, ficou na cama e escreveu Sobre Fraturas.

Pott era um cirurgião sociável e próspero, com uma clientela invejável, que incluía Samuel Johnson e David Garrick. Legou ao mundo a doença de Pott (deformação da coluna provocada por abscessos tuberculosos nos ossos), o tumor fofo de Pott (da infecção do crânio), o aneurisma de Pott, a gangrena de Pott e o câncer dos limpadores de chaminés (provocado pela fuligem no escroto e que deu origem à Lei do Limpador de Chaminés, de 1788, para poupar as crianças que desciam pelas chaminés das lareiras dos nobres). Ele é lembrado principalmente pela fratura de Pott. É um deslocamento com fratura, logo acima do tornozelo, em nada parecida com a sofrida por Pott.

A fratura de Colles, que sofremos quando estendemos instintivamente os braços para a frente quando caímos, atinge o rádio acima do pulso e provoca a deformação “garfo de mesa”, descrita em 1814 por Abraham Colles (1773-1845), de Dublin. Em 1839, Lord Melrose ofereceu a Colles um baronato, mas ele, modestamente, recusou.

OS ANTIGOS MESTRES

John Abernethy (1764-183D era um cirurgião rude. Quando substituiu Percival Pott, no São Bartolomeu, aconselhou aos vereadores obesos da cidade: “Vivam com seis pence por dia e tratem de ganhá-lo."Às mulheres dos vereadores, também com excesso de peso, aconselhou: “Madame, compre uma corda de pular.” A respeito das filhas apertadas nos espartilhos e com problemas de prisão de ventre, ele dizia. “Ora, madame, sabe que há mais de 30 metros de entranhas apertadas debaixo dos espartilhos das suas filhas? Vá para casa e corte a cinta, dê uma oportunidade justa à natureza, e não vai mais precisar dos meus conselhos.” Abernethy ligou a artéria carótida, no pescoço, para conter a hemorragia, e a artéria ilíaca, no intestino, para conter o aneurisma.
Ninguém havia tentado isso antes. Antes da anestesia e da assepsia, o abdome era tão inviolável quanto os cofres do banco da Inglaterra. “Ele formou uma época na história da sua profissão”, disse o Edinburgh Medical Journal, cumprimentando generosamente um londrino.

Ele era um cirurgião que detestava operar. Certa vez seu assistente o encontrou “na sala dos médicos, depois de uma operação, com os olhos cheios de lágrimas, lamentando o possível fracasso do que acabara de ser obrigado a fazer por necessidade e pelas regras da cirurgia”. Tinha outra fraqueza. “Conheci uma pessoa que era a prova viva do poder do tóxico, de tal modo que rae deixou incrédulo, pois era um cirurgião, e tinha tomado uma grande quantidade de ópio”, escreveu de Quincy sobre John Abernethy em Confissões de um inglês comedor de ópio. Ele continua citando: “Eu admito,” disse ele, “que digo bobagens, e, segundo, admito que não falo tolices por princípio, nem com intenção de lucro, mas única e simplesmente”, disse ele — "única e simplesmente” — (repetiu três vezes) “porque estou embriagado com ópio, todos os dias.”

Tudo que Abernethy não podia operar ele tratava com uma pílula azul, que movimentava os intestinos. Numa noite de sábado ele disse a uma jovem que havia tratado durante semanas a mãe viúva, paciente dele: "Eu testemunhei sua devoção e bondade para com sua mãe. Estou precisando de uma esposa, e acho que você é exatamente a pessoa que me serve. Eu estou sempre muito ocupado, e por isso não tenho tempo para fazer a corte. Pense no assunto até segunda-feira”. Funcionou.
Sir Astley Paston Cooper (1768-1841), no outro lado do Tâmisa, no Guy’s, era entusiasticamente cortês. Com isso ganhava 15.000 libras por ano e pagava 600 libras por ano para seu mordomo, que controlava a fila na sala de espera do seu consultório. Naquele tempo podia-se calcular o sucesso de um cirurgião pelo número de carruagens que enchiam a rua do seu consultório. Em 1820, Astley Cooper extraiu um quisto superficial da cabeça de George IV e determinou que o preço por cortar o rei era um baronato (Lawrence pintou o quadro). Todas as manhãs, Sir Astley conscienciosamente praticava, dissecando corpos durante duas horas antes do seu desjejum (chá e dois pãezinhos quentes). Ele era um receptador que pagava muito bem aos ladrões de corpos que exigiam, no mínimo, oito guinéus por corpo, o que era possível obter na França por 5 shillings. Sir Astley disse cortesmente aos médicos, no Comitê Seleto de Anatomia da Câmara dos Comuns, em abril de 1828: “Não existe ninguém, seja qual for sua posição no mundo, que eu não dissecaria se pudesse.” Um pensamento quase tão apavorante quanto o de perder sua cadeira na câmara.

A rica clientela de Sir Astley Cooper foi herdada por Sir Benjamin Collins Brodie (1783-1862), cirurgião do Hospital São George, em Hyde Park Comer, que nessa época estava sendo reformado para se tomar o encantador e bem situado hotel que é hoje. O próprio Sir Benjamin é lembrado pelo abscesso de Brodie (crônico, da tíbia) e a doença do seio de Brodie (grande, mas benigno). Em 1858, Sir Benjamin tornou-se o primeiro presidente do Conselho Geral de Medicina, cujo objetivo, todos sabiam, era desgraçar publicamente os médicos que assediavam suas pacientes sexualmente ou as horizontalizavam. O uso mais consistente do CGM consistia em regulamentar o ensino da medicina, erradicando os caubóis da profissão que não conseguiam figurar no Registro oficial, a lista que confere aos médicos os direitos tão necessários de assinar atestados de óbito. Antes do CGM, só um terço dos médicos britânicos havia se interessado em figurar no registro.

No outro lado do Solway Firth estava James Syme (1799-1870), sogro de Lord Lister. Ele foi imortalizado pela amputação Syme do pé. Nascido em Princes Street, sendo seu pai um colaborador do Signet, Syme era essencialmente um homem de Edimburgo que “jamais desperdiçava uma palavra, ou um pingo de tinta ou uma gota de sangue”. Tomou-se professor de cirurgia em Edimburgo, ele mesmo determinando a pensão de 300 libras por ano para o titular da cadeira, um bom negócio, uma vez que seu antecessor estava então com 81 anos. Quando era estudante, com uma queda para química, Syme notou que a borracha dissolvida em petróleo impermeabilizava os tecidos. Se ele tivesse explorado sua descoberta, nos dia de chuva nós todos estaríamos usando as nossas symes, não as mackintoshes.

No outro lado do Canal, a contratura que dobra os dedos para a palma da mão estava sendo tratada, em 1832, pelo Barão Guillaume Dupuytren (1777-1835). Dupuytren era o pior tipo de cirurgião. Vaidoso, desdenhoso, autoritário, inescrupuloso, ele operava en pantoufles e repetia provocadoramente, embora com razão: “Eu já me enganei, mas muito menos do que qualquer outro cirurgião." E também — o que era também irritante — era um operador magnífico e extremamente bondoso para com seus pacientes.

A primeira operação de contratura realizada pelo Barão Dupuytren foi num comerciante de vinho de Paris, mas depois disso o cirurgião absteve-se de fazer essa cirurgia até encontrar um corpo com essa deformidade, no qual pudesse praticar. A operação persiste até hoje, a condição é comum, sendo um dos pacientes mais ilustres Margareth Thatcher. Atualmente suspeita-se que seja outra reação auto-imune, como o reumatismo.

Dupuytren era mesquinho. Quando estudante de medicina, tirava gordura dos corpos para acender sua lâmpada de leitura. Quando uma duquesa o presenteou com uma bolsa bordada à mão, como uma prova carinhosa de gratidão por ele ter salvo sua vida, ele disse secamente que o preço era 5.000 francos. Então, sorrindo, ela tirou cinco notas de 1.000 francos da bolsa e a devolveu a ele, dizendo com voz arrulhante que agora continha exatamente aquela quantia, e o quanto ele era modesto. Dupuytren era o “bandido do Hôtel Dieu”, que deixou uma fortuna. Em algum tempo ele talvez tenha tido charme, uma vez que, na juventude, era mantido por uma mulher rica de Toulouse e, depois, por um oficial de cavalaria.

No outro lado do Atlântico, em Filadélfia, Philip Syng Physick (1768-1837) foi o Pai da Cirurgia Americana. Formado em Edimburgo, aluno de John Hunter, de Londres, em 1826 inventou o ânus artificial. William Wardell Mayo (1819-1911), de Manchester, foi o pai dos cirurgiões americanos William James (1861-1939) e Charles Horace Mayo (1865-1939), e os três fundaram a Clínica Mayo em Rochester, Minnesota, o equivalente cirúrgico do Museu Guggenheim de arte, na Quinta Avenida.

A CIVILIZAÇÃO DA CIRURGIA

Sir James Paget (1814-99) era filho de um cervejeiro, um estudante pobre, um jornalista-médico amador, que chegou a ganhar 10.000 libras por ano e foi o único cirurgião que apareceu num musical de Gilbert e Sullivan. O coronel Calverley canta em Patience a coragem de Lord Nelson, a bordo do Victory, o gênio de Bismarck, criando um plano, e a "calma de Paget pronto para fazer a trepanação”. Uma honra igual ao seu posto de Sargento Cirurgião da Rainha Vitória.

Paget nos deixou a doença dos ossos de Paget (espessamento do crânio, obrigando a pessoa a comprar chapéus cada vez maiores) e a doença do mamilo (câncer). A voz de Paget soava constantemente nos salões de conferências. “Eu divido as pessoas em duas classes — os que já ouviram e os que não ouviram James Paget”, dizia Gladstone em coro com W.S. Gilbert. Com 29 anos Paget foi nomeado Curador do Colégio de Medicina São Bartolomeu, e casou. Sua mulher estremecia na casa do curador com os gritos dos pacientes antes da anestesia, no teatro de operações que ficava ao lado.

“Um cirurgião deve possuir três coisas diferentes. Isto é, um coração de leão, olhos de falcão e mãos de mulher”, dizia John Halle (?1529-?1568), cirurgião e poeta. Isso era tudo que os cirurgiões podiam oferecer aos pacientes naquela época. Eles eram artistas inspirados pela anatomia. Agora são decoradores de interiores que modificam a disposição do mobiliário do corpo à luz brilhante da ciência. As cavidades do corpo não assustam mais, elas os atraem, nenhum tecido tem segredos para o bisturi, os órgãos são transplantados como objetos de uso, a cirurgia microscópica é tão comum quanto a televisão, a cirurgia de conforto — quadris, joelhos, calos, veias varicosas —, mais do que a cirurgia da sobrevivência, é tão prosaica que as pessoas reclamam quando não são submetidas a elas prontamente.

OS CANTEIROS

“Não usarei o bisturi, jamais, nas pessoas que têm pedras, mas deixo esse trabalho para os especialistas dessa arte”, diz Hipócrates, defensivamente, no seu Juramento.

As pedras da bexiga datam de mais de 7.000 anos, como provam as que foram encontradas nas múmias do Egito. Os árabes e os hindus da antiguidade abriam o corpo para retirar as pedras, depois Celso e Paracelso fizeram o mesmo. No século XVI havia litotomistas ambulantes, como malabaristas e latoeiros. Piere Franco (1505-70), um huguenote expulso de Florença para Lausanne, tirava habilmente as pedras por cima ou por baixo (ele confessou que o fracasso significava fugir dos parentes para salvar a própria vida). Frère Jacques de Beaulieu (1651-1719) retirava as pedras pelo lado do corpo e dava aos pobres o dinheiro que recebia. O franciscano Frère Jean de Saint Côme (1703-81) inventou uma faca de superfície mais lisa, e garantia 90% de cura. O cirurgião de Newton e de Pope, William Cheselden (1688-1752), fazia a extração em um minuto, ou, num dia melhor, em 54 segundos. Muitos escaparam da operação, como Pepys, em 7 de março de 1665. “Logo eu fui verter água, só pensando nos meus testículos que, por acidente, eu podia ter machucado, como faço sempre — mas quando urinei saíram duas pedras, eu as senti e olhei para a minha urina, mas não senti dor quando elas saíram.”

Na década de 1860, os médicos cortesãos de Napoleão III procuravam evitar que fosse conhecida a existência de uma pedra enorme na bexiga, que fazia o imperador andar com as pernas curvadas e que o fez desmaiar duas vezes, depois de uma noite bastante movimentada com sua amante. A pedra obstruía as passagens até o pênis e o impediu de inaugurar o Canal de Suez, em 1869. Os médicos diziam que o imperador sofria de reumatismo, mas a imprensa zombava dessa afirmação. Até os repórteres sabiam que não se trata reumatismo com cateteres.

O imperador recusava o uso de uma sonda exploratória, e comandou seu exército na Guerra Franco-Prussiana, de 1870-71, com toalhas enfiadas na calça, como fraldas. Quando Napoleão fugiu da terceira república para se juntar à imperatriz Eugênia, nos arredores de Londres, os cirurgiões da rainha Vitória foram mais severos do que os franceses. Nos dia 2 e 6 de janeiro de 1873 a pedra foi amassada dentro de Napoleão pelo urologista Sir Henry Thompson, baronete (1820-1904), fundador do crematório Golder’s Green (Millais fez o quadro), que 10 anos antes havia ensaiado em Leopoldo I da Bélgica. Joseph Clover aplicou o clorofórmio. Todos ficaram felizes com o fim da aflição de oito anos do imperador Napoleão, mas infelizmente três dias depois ele morreu. Essa história aconteceu no prédio onde está hoje o clube de golfe suburbano de Chislehurst.

CIÊNCIA DOMÉSTICA

O ano é 1923:
Eu estava olhando para o teto, minha testa molhada de suor frio.
Eu cruzava meus dedos com força, para evitar que toda a sensação desaparecesse deles.

Depois de algum tempo, ouvi três gemidos vindos do quarto acima do meu e, então, outra vez o ruído de passos. Compreendi que a operação tinha começado. Eu podia imaginar o bisturi, a grande incisão, a frieza insensível de tudo aquilo. Durante o que me pareceram horas intermináveis, olhei para o teto. De repente, houve uma grande comoção no quarto acima do meu. A mesa foi arrastada rapidamente. Os passos soavam em todo o quarto. A operação estaria terminada? Não. Alguma coisa estava errada. Um homem desceu correndo a escada e chamou um táxi. Num momento ouvi as rodas partirem velozes na rua e, logo depois, voltaram. Ele fora apanhar alguma coisa e subiu a escada correndo...

Então, quando olhei para cima vi, com horror, uma pequena mancha vermelha aparecer no teto branco. Eu sabia que era sangue. A mancha tinha o tamanho de uma moeda de cinco shillings. Cresceu até ficar do tamanho de um prato. O vermelho ficou mais vivo e, finalmente, uma gota pingou na coberta branca da minha cama. Caiu como um pedaço de chumbo. Eu mal podia respirar. Outra gota caiu com o som surdo de uma pedra...

Chega!

A heroína da aventura sanguinária era uma dama delicada, que fazia tratamento para os nervos numa clínica de Londres. A experiência a curou imediatamente.

A cirurgia moderna é tão técnica que precisa ser feita em teatros operatórios complexos, com equipes especializadas e monitores e gráficos luminosos. Todo o aparelhamento seria um enigma para os leigos se não aparecesse constantemente na televisão. Até a década de 1930 a grande cirurgia era realizada em salas provisórias, nas clínicas instaladas em antigas residências urbanas confortáveis adaptadas ou na casa do paciente. Amígdalas e até mesmo apêndices eram removidos na mesa da cozinha. Lord Lister operava por toda a cidade de Londres, seu “burro mecânico” mal disfarçado sob sua roupa, saindo de casa, em Regent's Park na sua berlinda. Sua chegada era recebida pelos vizinhos do paciente com estremecimentos, piadas e a mesma satisfação com que o povo curioso recebia em Tyburn o carrasco com seu equipamento.

O autor da história de horror da dama neurótica foi Sir Frederick Treves, baronete (1853-1923), que operou o rei Eduardo VII, que tinha então 50 anos, no dia 24 de junho de 1902. O rei estava com dores na barriga e foi examinado por Lord Lister, que diagnosticou peritiflite. Esta era uma denominação vaga para uma inflamação localizada dos intestinos, de cuja cura Treves foi pioneiro removendo o apêndice desde 1887. Em 1889, Charles McBumey (1845-1913), do Hospital Roosevelt, em Nova York, elucidou a condição centralizando o diagnóstico no “ponto de McBumey”, entre o umbigo e o quadril, sensível à ponta do dedo do cirurgião nos casos de apendicite aguda.

Foi muito inconveniente porque coincidiu com a coroação, marcada para dois dias depois, porque o rei disse que não podia ser adiada como uma reunião de tiro ao alvo em Sandringham. “Então, sire, o senhor irá à Abadia como um cadáver”, disse o cirurgião. Não havia outra solução. O adiamento era de fato algo quase inimaginável, com todos aqueles monarcas estrangeiros e príncipes que já estavam na Estação Vitória. O palácio de Buckingham cambaleou sob o peso dos problemas, como, por exemplo, o que iam fazer com o caviar? Podia ser guardado no gelo, bem como as 2.500 codornizes, mas as perdizes e as costeletas teriam de ser dadas aos pobres. Cestos repletos de comida foram enviados para as instituições de caridade e, na tarde seguinte, em Whitechapel, comeram consommé de faisan aux quenelles et cotelettes de bécassines à la Soiwaroff. A coroação foi transferida para 9 de agosto, e se o caviar agüentou até essa data só os reis abissínios estavam presentes para consumi-lo.

Eduardo VII foi operado em casa. Foi andando para a mesa de operação. A rainha Alexandra segurou a mão dele até terminar a aplicação da anestesia, e voltou a segurá-la um pouco antes dele voltar à consciência. O paciente real salvou um grande número de vidas do diagnóstico vago de peritiflite, dando à operação de Treves o éclat que seus descendentes deram ao jogo de pólo.

Treves não era um cortesão, ia para a cama às 10 horas da noite e levantava às 6 da manhã para escrever. Era amigo de Thomas Hardy, tinha carta de marinheiro e podia ter capitaneado o iate real tão bem quanto operava. Seu estilo literário era incisivo e seco, como convinha a um cirurgião. Sua história do Homem Elefante, de quem se tornou amigo no Hospital Londres, foi um sucesso de bilheteria no West End e na Broadway, porém, infelizmente, quando isso aconteceu Treves estava morto e seus direitos autorais já prescritos.

UMA EXPRESSÃO DE CORAGEM

O adultério foi a origem da cirurgia plástica há 2.000 anos, na Índia. Essa infração era levada muito a sério pelos hindus, que cortavam o nariz do culpado. A deformação social e facial era reparada com a pele da face ou da testa, cortada como se corta uma folha e costurada sobre o orifício. A operação foi aperfeiçoada em Bolonha, em 1597, por Gasparo Tagliacozzi (1546-99), que soltava três lados de um pedaço de pele do braço, prendia o braço sobre o nariz e, quando o enxerto pegava, soltava o braço, cortando a parte da pele ainda presa a ele. Há um século amadores faziam isso na Sicília. Branca de Catânia era o “homem de grandes habilidades que aprendeu a arte de restaurar um nariz, usando a pele do braço do paciente ou pregando sobre o orifício o nariz de um escravo”.

A Igreja ficou tão ofendida com o fato de Tagliacozzi aperfeiçoar a obra de Deus que seu corpo foi exumado do túmulo num convento e enterrado em terra não consagrada. Tudo isso contribuiu para dar má fama à reposição do nariz. Em 1788, a cirurgia plástica da face foi considerada pecaminosa e proibida em Paris.

Johann Friedrich Dieffenbach (1792-1847), um ex-cavalariano de Mecklenberg, cortava os músculos do olho para curar estrabismo (com sucesso) e os músculos da língua para curar a gagueira (um fracasso). No Charité Hospital, em Berlim, ele começou a reconstruir rostos afetados por trauma ou tumor e a fechar palatos fendidos. Sem anestesia, o paciente sentava de frente para uma janela, a cabeça segura por um assistente, e o mandavam respirar fundo, com bochechos e pausas para respirar, entre as incisões. Dieffenbach era amigo de Heine e do rei Guilherme IV da Prússia, que freqüentemente assistia às operações na companhia de toda a família.

Em Londres, Sir William Fergusson (1808-77) operou com sucesso 134 palatos fendidos e 400 lábios leporinos. Fora obrigado a emigrar de Edimburgo, onde James Syme não desperdiçava nem uma gota da sua próspera clínica particular. Sir William acreditava que em “uma grande coisa quando, por meio da prevenção, pode-se salvar até a ponta de um polegar”. Isso traduzia o conservantismo misericordioso, quando a amputação era praticada com o entusiasmo da Rainha de Copas de Alice. Sir William era também um virtuoso do violino e um hábil litotomista. "Olhe com atenção", disse um dos assistentes, “porque se piscar vai perder a operação inteira”.

A cirurgia plástica moderna foi um subproduto da pólvora. Foi criada em 1917 por um cirurgião com tendências artísticas, Sir Harold Delf Gillies (1882-1960), no feio subúrbio de Sidcup, em Londres, no recém-construído Queen’s Hospital, que hoje fica entre o túnel Blackwall e o túnel do Canal.

“Uma bela mulher merece ser mantida bela e jovem enquanto tem idade para desfrutar a beleza e a juventude", disse Harold Gillies, em 1957, corrigindo a Paris de 1788 e a obra de Deus, seu Criador. Gillies era neozelandês, cirurgião da garganta, descendente de Eduardo Lear (Livro do Nonsense) capitão da RAMC em 1915. Um cirurgião de maxilares, do Hospital Americano em Paris, emprestou a ele um livro recentemente chegado da Alemanha. “Como era uma guerra bastante informal, o inimigo aparentemente não se importava que soubéssemos o bom trabalho que estava fazendo nas fraturas do maxilar e ferimentos próximos da boca.” Assim, o autor do livro, Lindemann, inaugurou, por meio de Gillies, uma especialidade que levantou o moral das forças britânicas e americanas nas duas guerras contra seu país.

O astro da cirurgia britânica era Sir Arbuthnot Lane (especializado em cólon), que encorajou Gillies em Sidcup. A Gillies juntou-se o artista com tendência para a cirurgia, Hemy Tonks (1862-1937), antes cirurgião interno dc Sir Frederick Treves no Hospital Londres. Em 1917, Tonks era professor na Escola Slade de Belas-Artes, instrutor de Augustus John e de William Orpen, mas tomou-se membro do Colégio Real de Cirurgiões em 1888 e agora voltava à antiga profissão no RAMC. Tonks desenhava os ferimentos, os reparos e os resultados e, sem dúvida, contribuiu para aperfeiçoar a parte artística dos enxertos de Gillies, das abas e pedículos de pele como os de Tagliacozzi.

Excêntrico, rabugento, bom jogador de golfe e bom pescador, Gillies teve sua fama suplantada na II Guerra Mundial por outro neozelandês, seu primo, o cintilante e autocrata Sir Archibald Hector McIndoe (1910-60), com seu “Clube da Cobaia”, de pacientes da RAF, em East Grinstead, sul de Londres. Talvez as repetidas operações necessárias nos rostos daqueles pacientes justificassem a frequente imperfeição dos resultados. Talvez o trabalho menos sensacional dos cirurgiões plásticos nas queimaduras e nas mãos tivesse mais valor. Porém, um jovem na cabine de um Spitfire sentia-se mais encorajado sabendo que havia cirurgiões capazes de reparar sua horrível mutilação.

Entre as guerras a cirurgia plástica cresceu e depois delas, floresceu. Novos rostos, novos narizes, sem problema (os narizes delicadamente arrebitados de McIndoe eram imediatamente reconhecíveis no outro lado das luzes da ribalta ou nas mesas de jantar). As mulheres começaram a ficar tão exigentes quanto aos seios que podiam ser encomendados por tamanho, como sutiãs. “Muitas vezes, quando estava fazendo um lift, eu me sentia culpado, como se aquilo fosse só para fazer dinheiro. Contudo, esse sentimento não se justifica, se com isso podia trazer nem que fosse um pouco de felicidade a uma alma que precisa dela”, dizia Gillies, para se encorajar. Talvez a felicidade seja transitória e o ressentimento melancólico retirado do seu rosto seja transferido para alguma outra coisa, ou para outra pessoa.

CIRURGIA DE MANCHETE

Em 3 de dezembro de 1967, no Hospital Groote Schuur, na Cidade do Cabo, o professor Christian Neethling Barnard (1922) realizou o primeiro transplante de coração, combinando assim as forças humanas naturais e emocionais com uma intensidade shakespeareana. Em 25 de novembro de 1974 ele aperfeiçoou seu método, realizando o primeiro transplante de coração duplo. A idéia não era nova. Ocorreu a John Hunter dois séculos antes, em Londres, onde um dente humano que ele transplantou numa crista de galo pode ser visto hoje no Colégio Real de Cirurgiões.

Nosso corpo morto é como o “ovo do cura” do antigo ditado inglês: algumas partes são excelentes, mas outras deixam muito a desejar. Porém, a parte saudável não pode substituir imediatamente outras partes iguais doentes, porque o corpo rejeita violentamente os que ultrapassam o portão imunológico. Em 23 de dezembro de 1954, no Hospital Peter Brent Brigham, em Boston, um rim saudável foi transplantado de um irmão (nós só precisamos de um rim para viver) para outro, que tinha dois rins doentes, dando a ele uma sobrevida de nove anos. Porém, esses irmãos eram gêmeos idênticos. O truque do transplante consiste em combinar os tecidos do doador e do receptor, depois usar os novos medicamentos imunossupressores que podem fazer artificialmente gêmeos idênticos de todos nós. Esses medicamentos anulam a recepção hostil até que o novo hospedeiro se acostume com o visitante, e então eles passam a viver felizes juntos. Rins, pulmões, corações e fígados são agora trocados entre seres humanos vivos e mortos com a benevolência de presentes de Natal.

O novo rim não é implantado no lugar do anterior, mas na pelve. A “colheita” é grotesca até mesmo para os médicos experientes. O cirurgião, chamado com urgência por uma organização que nunca dorme, explica cuidadosamente para a equipe local que não vai ser um episódio de cirurgia convencional. O anestesista entra com o paciente na maca — rosado, quente, respirando regularmente graças ao respirador artificial, coração batendo, mas morto. O cirurgião faz uma incisão com a generosidade de uma autópsia, retira o coração, os pulmões, os rins, o fígado e, já que está com a mão na massa, outras partes úteis, como pâncreas ou uma glândula supra-renal. Tudo é acondicionado no gelo para o transporte dramático por helicóptero ou entre as luzes piscantes dos carros de polícia para os receptores, que já foram chamados, com suas valises, para o hospital de transplante mais próximo. O anestesista desliga o respirador. O corpo fica cinzento e frio, e coberto por um suor inesperado. É levado então para o necrotério e a equipe cirúrgica toma café num silêncio pensativo.

Para que essa descrição não me traga a vergonha de contribuir para que seja rasgado algum cartão de doador — um programa idiota da televisão mostra uma infinidade de cartões rasgados — por favor, acreditem, o indivíduo já está completamente morto.

A “morte cerebral” só é declarada depois de testes que verificam as mais baixas funções vitais, sem obter nenhuma resposta. O cartão de doador é algo muito valioso. Qualquer ser humano vítima de ferimentos fatais ou hemorragia cerebral pode, com sublimidade bíblica, dar a vida com sua morte.

Texto de Richard Gordon (tradução de Aulyde Soares Rodrigues) em "A Assustadora História da Medicina",Ediouro Publicações, Rio de Janeiro, 1996, capítulo 6. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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