O verão de 1894 foi terrível em Woking. Os marcianos aterrissaram. Eram grandes como ursos, pele oleosa, dois olhos enormes e a baba escorria das bocas repletas de tentáculos móveis como fios de cabelos. Não comiam nunca — não tinham entranhas — mas injetavam sangue humano nas suas veias. Nunca dormiam nem ficavam cansados. Gritavam “ulla, ulla, ulla, ulla!” o tempo todo, e se reproduziam como botões de flores. Estenderam um tapete emaranhado de mato vermelho que emitia raios quentes fatais e gás negro venenoso. Os invasores avançaram pela bela estrada de Chobham e tomaram a sossegada Byfleet, a despeito dos hussardos e dos Maxims. Weybridge caiu, Shepperton foi devastada, a população de Londres fugiu para Bamet. Os marcianos continuaram seu caminho assassino até Primrose Hill, onde todos contraíram uma doença e morreram. Eles haviam conquistado o homem, mas não tinham nenhum fator de resistência às bactérias que pululavam na Terra dos homens. Nossos germes nos salvaram. Destruíram também o tapete de mato vermelho.
A GUERRA DOS MUNDOS
Por ocasião do nascimento de H.G. Welles, em 1886, ninguém conhecia a existência do exército de micróbios na Terra. Quando ele morreu, em 1946, nós os estávamos atacando aos poucos, com algumas vitórias. Os humildes microorganismos herdaram a terra antes de nós, são em número infinitamente maior do que nós, eles nos matam sorrateiramente, restringem nosso prazer sexual, eles pilotaram nossa história e comandaram nossos pensamentos, eles nos massacraram intermitentemente, eles nos reduzem ao medo abjeto e à meticulosidade absurda, eles estarão aqui depois de nós. A descoberta desses microorganismos na segunda metade do século passado foi uma materialização de duendes, diabretes e feiticeiros que desde o início dos tempos dançam na memória dos povos. É um mundo de insetos.
O décimo terceiro capítulo do Levítico é um manual perfeito de saúde pública. Para o controle da lepra, as roupas do doente são queimadas — seja qual for a utilidade ou o material — e gritando “impuro, impuro” ele desaparece no isolamento. Casais com gonorréia enfrentam uma quarentena de uma semana, tudo em que eles sentaram é lavado, incluindo suas selas. O homem sempre soube que podia apanhar uma doença de outra pessoa ou de alguma coisa — mas apenas vagamente, como imagina ainda que o vento frio traz reumatismo. O próprio Hipócrates não chegou a conceber a idéia de infecção.
A febre era atribuída aos deuses, ou mais especificamente ao ar impuro — malaria significa, em italiano, o tremor de frio provocado pelas emanações venenosas dos Pântanos Pontine. Foram necessárias as pragas devastadoras da Idade Média para que se começasse a suspeitar de que algo sólido pode transmitir doenças de uma pessoa para outra. Em 1546, um médico jovial e poeta de Verona, Hieronymus Fracastorius (1483-1553) dizia no De Contagione que as epidemias que assolavam as margens do Lago Garda progrediam por meio de sementes invisíveis. Essas sementes propagavam-se rapidamente, levadas pela respiração ou pelo ar, ou por beber no mesmo copo ou dormir com a mesma mulher, por meio de roupas, pentes, moedas, qualquer coisa infectada, que ele chamava de “fomites”. Ele só não descobriu que as sementes eram vivas, tanto quanto ele.
Não aconteceu muito mais do que isso na conquista da infecção, até 17 de setembro de 1683.
O nosso arrojado almofadinha de Delft, Antony van Leeuwenhoek, estava tão na moda como o criador do microscópio quanto seu contemporâneo Stradivarius, o fabricante de violinos. Naquele dia de setembro ele tirou restos de comida de seus dentes e descobriu pequenos animais “mais numerosos do que a população dos Países Baixos, todos se movimentando alegremente”. Eram bactérias nos seus típicos aglomerados e cadeias, tão conhecidos hoje em dia. Esses “animalúculos” persistiram na mente dos médicos como sendo gerados, a exemplo das larvas, pela própria carne putrefata. Assim como os chineses supunham que os insetos eram gerados pelo bambu molhado, as abelhas surgiam de vacas mortas e a lama do Nilo, cozida pelo sol, produzia rãs e cobras, se não crocodilos.
Quando Francesco Redi (1626-97), da Toscana, antecipou a Sra. Pooter, cobrindo a carne para protegê-la das moscas, ele acabou com as larvas. Elas não brotavam espontaneamente. Omne Vivum ex ovo, anunciou ele, até uma larva tem mãe e pai. Somente Homero teve a idéia antes:
“Mãe”, queixou-se Aquiles em Tróia, “tenho um medo terrível de que nesse meio-tempo as moscas profanem o corpo de meu senhor Patroclos, pousando nos ferimentos abertos e depositando vermes neles.”
“Meu filho”, Tetis o tranqüilizou, “vou providenciar para que as moscas sejam afastadas, salvando-o assim dessas pestes que devoram os corpos dos homens mortos em batalha.”
O tratamento preventivo da mãe Tetis consistia em ambrosia e néctar vermelho, administrado pelo nariz.
As modas dos tratamentos aparecem tão absurdamente quanto na alta-costura. Aquelas larvas que rastejavam repulsivamente em volta dos ferimentos só estavam fazendo o bem. Avidamente elas limpavam os restos sépticos de pele morta, de carne e de pus, e estão agora sendo recrutadas para atuar como abutres não-tóxicos do corpo. Para uma infecção do ouvido externo, nada melhor do que uma larva na orelha.
Ninguém foi muito adiante até a chegada do maior médico do século XIX, que não era qualificado.
MEDICINA PASTEURIZADA
Em 1856, a indústria francesa de vinho praticamente fechou. Garrafa após garrafa de vinho avinagrado era devolvida iradamente aos sommeliers, seu conteúdo despejado nos esgotos, quebradas com desespero contra a parede. A cerveja também estava horrível. Os vinhateiros de Bordeaux chamaram o professor de química de Lille, uma autoridade em fermentação como Flaubert era, em Rouen, autoridade em adultério.
Louis Pasteur (1822-95), do Jura, era filho de um curtidor de peles, veterano da La grande armée. Em 1864, Pasteur descobriu que aquela trágica acidificação do vinho não era produzida por alguma química maligna, mas por organismos microscópicos vivos, gerados não pela própria bebida agradável, mas que estavam no ar. O desastre enológico podia ser evitado matando os organismos, o que podia ser feito aquecendo o lagar a 60 graus centígrados. Aquelas safras tão bien chambrées foram consumidas com tanto alívio e alegria que a indústria vinícola da França teve um lucro sem precedentes de 500 milhões de francos naquele ano. Pasteur observou então que os fermentos da boa cerveja eram esféricos, e os da cerveja azeda, elípticos, uma distorção provocada por micróbios. Assim, ele pasteurizou a cerveja também.
Na mesma época, os lucros anuais da indústria francesa da seda caíram de 130 milhões para 8 milhões, porque o bicho-da-seda contraíra pébrine, doença da pimenta-negra. O bicho-da-seda gosta de amora, mas as plantações de amoreiras nas Montanhas Cévennes, do Languedoc, estavam se transformando em cidades fantasmas, atacadas pela vermiculite. Desesperados e confusos, os sericultores procuraram Pasteur.
Ele foi de Paris para Alais, no sul, e os presenteou com a descoberta de que a epidemia não era causada por um micróbio vivo (era um protozoário, um organismo unicelular como a ameba, que provoca a desinteria, mas naquele momento ele não podia pôr as mãos nele). Pasteur, a flâcherie, diarréia do bicho-da-seda. A cura para as duas consistia em separar os insetos que apresentavam os pontos cor-de-pimenta — os camponeses os guardavam em garrafas com conhaque, para mostrar aos entendidos — e higiene rigorosa da folha da amoreira. Logo o farfalhar da seda foi ouvido em nossa terra.
É reconfortante pensar que a gênese da anestesia foi o costume de cheirar “éter por brincadeira”, e que a bacteriologia — com suas benevolentes ramificações de inoculação e antibióticos — foi um copo de vinho, uma caneca de cerveja e um belo vestido. Nossos instintos para o prazer têm seus efeitos colaterais positivos.
Os gados bovino e ovino da França estavam passando por uma fase terrível, também. Estavam sendo dizimados pelo antrax, extremamente doloroso. Em 1881, a vacina contra o antrax, de Pasteur, reduziu a mortalidade por essa doença a 1% entre as ovelhas e a 0,34% no gado bovino. Todas as galinhas apanharam cólera. Pasteur viajou nos feriados e esqueceu no laboratório um espécime do fluido bacteriano que infectava as galinhas, e saiu para uns dias de descanso. Ele voltou para descobrir que sua cultura de bactérias em crescimento tinha enfraquecido, e concluiu que era ideal para inoculação contra a epidemia — como durante outro feriado, que veremos mais adiante, num clima menos ameno, o bolor da penicilina cresceu satisfatoriamente para Alexander Fleming. É muito inteligente ganhar o prêmio Nobel in absentia.
Com a medula de cães raivosos Pasteur criou a vacina que salvou a vida do garoto pastor Juptile, eternizado na estátua que o mostra lutando contra um cão raivoso, no 15º arrondissement. Ele enfeita o jardim nos fundos do Instituto Pasteur, onde está enterrado nosso descobridor de micróbios vivos e da inoculação científica para combater sua incessante campanha contra nós.
A mente de Pasteur foi a luz e o fim do túnel da infecção, que não tinha começo. O valor em dinheiro das suas descobertas foi usado pela França para completar a indenização exigida pela Alemanha pela guerra de 1870-71. Pasteur teve uma vida simples, séria e espiritual, e fez tudo isso a despeito de ter sofrido um sério derrame, em 1868. Sua filha de 12 anos morreu de febre tifóide, 15 anos antes de ser descoberto o germe dessa doença. A aplicação do seu gênio ao leite, no século XX, fez com que o nome de Pasteur passasse a aparecer na soleira de todas as portas da Grã-Bretanha.
O MÉTODO NOS SEUS MICRÓBIOS
Em 1771, o sensato Dr. Tobias Smollett podia resumir francamente:
Existem armadilhas para nossas vidas em tudo que comemos e bebemos. O próprio ar que respiramos está carregado de contágio.
Não podemos nem mesmo dormir sem correr o risco de uma infecção.
O francês Louis Pasteur ensinou aos médicos que as misteriosas "coisas” infecciosas que transmitiam as doenças são coisas vivas. A classificação dos tipos exatos dessas coisas foi um obstáculo demolido pela mente bem ordenada dos alemães.
No outro lado da guerra de 1870 lutava Robert Koch (1843-1910), clínico geral numa cidadezinha em Wollstein, na Renânia, que, farto de longas e duras jornadas e pacientes rústicos, procurou diversão intelectual no microscópio. Começou estudando um bacilo vigoroso descoberto em 1863 pelo francês Casimir Davaine (1812-1882), especialista em tênia ou solitária. Com os olhos objetivos de um médico do campo, Koch observou a tendência do bacilo para formar cadeias infindáveis e desaparecer em esporos de longa duração e sorrateira virulência. E que causava o antrax.
Essa foi a sensação médica de 1876. Robert Koch associou o germe à doença como causa e efeito, um casamento patológico no qual ninguém havia pensado.
O antrax, no homem ou no animal, com as pústulas sangrentas na pele, a "doença dos cardadores de lã” de rápido e letal desenvolvimento e que ataca os pulmões, era atribuído aos miasmas do campo. Koch provou que o antrax era uma infecção identificável, causada por um agente identificável. Melhor ainda, ele tingiu com corantes de cores vivas esses inimigos invisíveis e descobriu o que eles comiam enquanto proliferavam abundantemente no cativeiro (consommé de carne, frio), e tirou fotografias espetaculares deles. "C’est un grand progrès!” foi como Pasteur o saudou alegremente, quando foi a Londres para tentar a cultura de uma forma de virulência atenuada do bacilo do antrax, para a vacina que salvaria a carne e o queijo da França.
Koch escreveu os Postulados de Koch:
1 O germe causador da doença deve estar presente em todos os casos da doença, e deve ser encontrado no corpo sempre que a doença aparecer.
2 Extraído do corpo, o germe deve crescer numa cultura pura de laboratório, por várias gerações microbianas. (As bactérias não têm vida sexual, elas se dividem em duas indefinidamente.)
3 Essa cultura deve transmitir a doença a um animal suscetível, ser recolhida dele numa cultura pura e transmitir a doença para outro infeliz animal.
Essa prova de um micróbio específico causar uma doença específica continua inviolada desde sua criação, em 1881, exatamente como o Túnel Mersey.
Em 1879, Albert Neisser (1855-1916), dermatologista de Breslau, descobriu o gonococo. Armauer Hansen (1841-1912), de Bergen, justificou o Levítico descobrindo o bacilo da lepra (a Noruega estava-se tornando uma nação de leprosos). Em 1880, Pasteur descobriu o estreptococo e o estafilococo, que causam vários tipos de infecções. Karl Joseph Eberth (1835-1926), um patologista com barba espessa, de Halle, descobriu o bacilo do tifo. Em 1882, Koch descobriu o micróbio causador da tuberculose. Aquele que mais tarde seria seu sucessor no novo Instituto para Doenças Infecciosas, Friedrich Loëffler (1852-1915), naquele mesmo ano descobriu os bacilos do mormo e, no ano seguinte, com o impaciente Edwin Klebs (1834-1913), de Königsberg, o bacilo da difteria.
Koch descobriu o bacilo da cólera em Berlim, em 1884, Albert Fränkel (1848-1910) descobriu o da pneumonia e Arthur Nicolaier (1862-?) descobriu o bacilo do tétano. Em 1886, Theodor Escherich (1857-1911), de Munique, que usava barba em ponta, identificou o bacilo coli, que atacava os intestinos de todo mundo. Erguendo a bandeira do Reino Unido, Sir David Bruce, em 1887, descobriu o micróbio da febre de Malta, enquanto Anton Weichselbaum (1842-1920), na Áustria, descobriu o micróbio da meningite. Em 1889, outro discípulo de Koch, Richard Pfeiffer (1858-1945), em Breslau, descobriu o bacilo da gripe, ou influenza, que infelizmente não causa a influenza. Em 1892, desfralda-se a bandeira das listras e estrelas quando William Welch (1850-1934) descobriu o terror dos exércitos, que despreza o oxigênio, o bacilo da gangrena gasosa. E em 1894 ergue-se a bandeira do sol nascente, quando n gordo Shibasaburo Kitasato (1852-1931), também discípulo de Koch, descobriu, com o francês Alexander Yersin (1862-?), o germe da peste bubônica, que espalhou o terror através dos tempos.
Dezoito anos, e dezoito assassinos de massas identificados e encurralados.
Ó mundo invisível, nós o vemos,
Ó mundo intangível, nós o tocamos
Ó mundo não identificável, nós o identificamos
Inapreensível, nós o agarramos!
Os bacteriologistas podiam agora declamar a apóstrofe do ex-estudante de medicina Francis Thompson (1859-1907) à vida espiritual, mas de modo mais prático e útil. Robert Koch ganhou o prêmio Nobel em 1905, e suas cinzas repousam no Instituto Koch, em Berlim.
PROVAVELMENTE APENAS UM VÍRUS
A doença do mosaico que assolou as plantações de tabaco, em 1892, e a febre aftosa que atacou o gado, em 1898, indicavam que algumas doenças podiam ser transmitidas sem bactérias. Era possível passá-las experimentalmente para um fluido infectável, e isso significava passar pelo filtro impermeável a todos os outros micróbios conhecidos. Os culpados seriam os vírus, que se reproduzem (assexualmente, por fissão binária) somente no interior das células vivas. São menores do que as bactérias e visíveis somente no microscópio eletrônico. Alguns não são mais do que ácido nucléico envolto em proteína. Alguns são tão simples que podem se cristalizar: substâncias químicas mas vivas, como nós. Talvez tenhamos começado assim, como a espuma do limo viscoso do começo do mundo.
Os vírus ameaçam as criaturas humanas com doenças desagradáveis e perigosas, desde a poliomielite e a pneumonia até resfriados e verrugas. Egoisticamente, nós nos vemos como alvo principal do exército vasto e voraz das bactérias e dos vírus. Porém, os animais, os peixes, as flores e as árvores, insetos e ostras, todos têm a saúde e a vida ameaçadas pela infecção. Seguindo o princípio de Swift de que as pulgas têm pulgas menores que as picam, até as bactérias ficam doentes e morrem, vítimas dos pequenos vírus bacteriófagos, que parecem girinos, descobertos em 1915. Nós todos vivemos de alguma outra coisa. Nosso mundo é um paraíso de parasitas.
O SHOW DA SALMONELA
Tantas bactérias e subespécies de bactérias estavam sendo descobertas no reinado da Rainha Vitória e de seu neto, o Kaiser Guilherme, que exigiam uma classificação numa lista telefônica microbiana. O grupo Salmonela, irrequieto, abanando as caudas, compreende hoje mais de 1.000 espécies diferentes que provocam infecção intestinal. Passaram a ser o tema das conversas quotidianas e levaram o pânico ao povo e aos políticos da Grã-Bretanha, em 1988, provocando a espetacular renúncia da subsecretária de saúde, Edwina Currie (1946).
O homem, com sua notável engenhosidade, criou fornos de microondas e comida congelada, meios ideais para a propagação dos seus inimigos unicelulares invisíveis. E seu confortável ar condicionado transformou numa ameaça assassina os antes ignorados cocobacilos, que agora disseminam a doença dos legionários. Como um recurso de economia, a alimentação das galinhas com suas próprias fezes, ricas em salmonelas, transformou o ovo do desjejum dos ingleses em Borgias levemente cozidos, levando as granjas da Inglaterra à ruína, como as vinícolas francesas no passado. O primeiro a classificar as salmonelas foi Daniel Elmer Salmon (1850-1914), um americano de porte distinto, de cabelos brancos, sobrancelhas espessas, bigode aparado e barba em ponta. Fiquei intrigado quando vi sua fotografia no Museu Wellcome de Medicina. Com qual pessoa notável se parecia aquele guru das doenças intestinais? Até encontrar na rua seu sósia, o amigo de todo mundo, o santo sanitário Coronel Saunders.
AS PRAGAS QUE NOS AMEAÇAM
A mentalidade germânica saltou para a classificação dos micróbios com a mesma agilidade com que saltou para a metafísica ou o misticismo. A mentalidade britânica explorou as doenças sobre as quais o sol jamais se põe.
O médico hindu Susruta (c. 500 d.C.) suspeitava que a malária era disseminada não pelo ar, mas pelos mosquitos que zumbiam ao fim do dia (com a mesma percepção com que suspeitava que os ratos mortos transmitiam a peste). Marco Polo, no século XIII, observou os cortinados contra mosquitos, que mais tarde velaram os sonhos, as paixões e o suor da insônia do Raj britânico. Os professores togados de Cambridge eram atacados pela “febre dos pântanos", mas continuaram, como todo o mundo, a ignorar os insetos que injetavam a febre intermitente, até que em 6 de novembro de 1880 o oficial médico do exército francês na Argélia, Alphonse Laveran (1845-1922), descobriu o parasita unicelular plasmódio nos glóbulos vermelhos do sangue de doentes de malária.
O escocês Sir Patrick Manson (1844-1922) foi diretamente da Universidade de Aberdeen para o Serviço de Alfândega da Marinha Imperial da China, chegando à praia de Formosa numa noite escura de 1866. Três anos antes da descoberta de Laveran ele afirmou, em Hong Kong, que os vermes filária de cinco centímetros de comprimento causavam elefantíase, uma condição provocada pelo bloqueio dos condutores da linfa humana que pode causar um edema gigantesco nos membros e obrigar os homens a carregar os testículos num barril, para se movimentarem. Além disso, ele descobriu que as pequenas e extremamente móveis filarias larvais, que invadiam o sangue dos pacientes, eram sugadas à noite pelos mosquitos Culex fatigans, depois incubadas neles e em seguida passadas para outra pessoa. Ninguém acreditou.
Manson voltou para casa e fundou a Escola de Medicina Tropical de Londres. Em 1894 ele conheceu o futuro Sir Ronald Ross (1857-1932), nascido na índia, filho de um general, de pescoço grosso, com um bigode espetado de oficial não comissionado, que acabava de desembarcar do navio P&O, de licença do Serviço Médico da índia. Manson apresentou a ele, por meio do microscópio, o parasita da malária do oficial francês da Argélia. O estudioso Ross, de volta ao seu laboratório na frente da estátua da Rainha Vitória, voltou a encontrar o parasita em 20 de agosto de 1897 no estômago do mosquito anofeles, que tem pontos escuros nas asas.
Tamanho foi o júbilo do império britânico com a elucidação da doença que devastava indiscriminada e impertinentemente os nativos e seus governantes de capacetes de cortiça e abanadores para espantar os mosquitos, que essa data foi denominada “dia da malária”, comemorada com enormes almoços no Instituto Ross, em Putney. Ross também escrevia poesia, que agradou imensamente a Osbert Sitwell. Outro bacteriologista/poeta foi Max von Pettenkofer (1818-1901), da Bavária, parecido com Vitor Hugo, que cometeu suicídio. Von Pettenkofer duvidava com tanto ardor da descoberta de Koch, em 1884 — que a cólera era causada por um germe móvel, com a aparência de uma vírgula — que tomou publicamente um copo inteiro de água contaminada. Ao contrário de Tchaikovsky, ele saiu ileso.
A teoria de Sir Ronald Ross foi definitivamente comprovada por Manson. Ele fez com que um jovem fosse picado por mosquitos, e o jovem apanhou a malária; esse jovem era seu filho. O império imediatamente declarou guerra ao mosquito, devastando seu habitat, matando-o em pleno vôo, protegendo seus alvos com repelentes. Os americanos, como em duas outras ocasiões, acompanharam o império nessa luta.
A companhia francesa que começou a construção do Canal do Panamá, em 1880, faliu em 1888. Tinha empregado 86.800 homens, dos quais 52.816 adoeceram e 5.627 morreram, quase todos de febre amarela. A febre amarela é uma icterícia explosiva, uma doença viral transmitida pelo mosquito tigre, listrado. Isso foi provado repetindo-se a tradição Manson por dois bacteriologistas de Baltimore, James Carrol (1854-1907) e Jesse Lazear (1866-1900), ambos picados por mosquitos infectados. (Carrol se curou, Lazear morreu.)
O chefe de estratégia americana na guerra do canal foi o major Walter Read (1851-1902), um bacteriologista da Universidade Johns Hopkins que já havia exterminado o mosquito em Havana. Seu comandante de campo era o enérgico Coronel William Crawford Gorgas (1854-1920), de Mobile, que havia sobrevivido a um ataque inimigo quando servia como cirurgião do exército, no Texas. O Coronel Gorgas entrou em ação com lança-chamas, grupos de ataque, guerra química, armadilhas aquáticas e multas por abrigar o inimigo, matando com clorofórmio todos os prisioneiros. O preço da sua ofensiva foi calculado em 10 dólares por mosquito. Quando o canal foi aberto, em 1913, a Zona do Canal — em relação ao índice de mortalidade — era duas vezes mais saudável do que os EUA na época.
A mosca tsé-tsé, com dois centímetros de comprimento, marrom, sugadora de sangue, transmite aos seres humanos a doença do sono, uma das muitas do vasto reservatório de doenças provocadas nos animais selvagens pelo protozoário de cauda longa, o tripanossoma. O tripanossoma foi descoberto no sangue dos doentes em 1849 por Sir David Bruce, depois que ele foi transferido de seu posto em Malta para a Zululândia. A mosca tsé-tsé foi notada por David Livingstone (1813-73), ex-operário de Glasgow, médico, missionário, explorador, descobridor da grandiosa Catarata Vitória e que durante 30 anos sofreu de uma fratura não soldada no braço, causada por uma mordida de leão. Ele vira a mosca em 1857, 14 anos antes de se perder na selva.
Hoje, um terço das mortes no mundo tem alguma relação com moscas.
FÁBULAS FEBRÍFUGAS
Os acessos de febre da malária, de dois em dois ou três em três dias, indicam o tempo necessário para que quatro tipos diferentes de parasitas realizem seu ciclo reprodutor assexuado, no sangue. O ciclo sexual é realizado dentro do mosquito. O quinino, com seu gosto extremamente amargo, era o remédio para a malária desde o século XVII. Tradicionalmente era chamado de “chinchona”, por causa da condessa Chinchon, que foi despachada com o marido da Espanha para o Peru e se curou da malária com a casca da árvore quina-quina, nativa do lugar. A eficiência da quina-quina foi descoberta por um paciente com febre alta. A única água que ele encontrou para beber era de um pequeno lago, onde haviam sido jogadas algumas dessas árvores e, por isso, era amarga demais para o paladar das pessoas saudáveis. A condessa mandou moer a casca e generosamente a distribuiu na cidade de Lima, antes de presentear benevolentemente a Espanha com o pó. (A condessa morreu antes de o marido ser nomeado vice-rei do Peru; a segunda mulher dele jamais ficou doente e continuou no Peru, mas a boa ficção é mais estranha do que a verdade.) A “casca dos jesuítas”, importada e adulterada com outras madeiras, foi então confiscada pela Europa inteira para curar a malária, exceto por Oliver Cromwell, por motivos religiosos.
Na II Guerra Mundial, o Império Britânico podia proteger convenientemente seus soldados com mepacrina, um medicamento que os inteligentes químicos alemães haviam criado a partir dos corantes de cores vivas que eles sintetizaram em Wuppertal, em 1930. Espalhou-se entre os soldados, como acontece com qualquer medicamento obrigatório, o boato de que a mepacrina provocava impotência. O rumor do bromido no chá dos soldados é tão velho quanto a história dos dois Pensionistas de Chelsea admitirem que o medicamento começava a fazer efeito. A mentira foi negada por meio de cartazes mostrando paxás rodeados por suas mulheres, alegremente tomando os comprimidos e declarando que jamais ficariam sem eles. Aparentemente isso convenceu os soldados.
Agora temos melhores medicamentos preventivos contra a malária e melhores inseticidas, mas temos ainda a malária. Não podemos acabar com todos os mosquitos da Tailândia e da Malásia. E os parasitas estão começando a se defender dos medicamentos. Exatamente como os germes combatidos pelos homens na década de 1880.
LUZ DO SOL E LUAR
O sol que brilhava ininterruptamente sobre o império britânico preocupava Whitehall tanto quanto o demônio preocupa o Vaticano. Os ingleses precisavam se expor a ele — alguém precisava conter o cachorro louco — porém o sahib não podia se arriscar a morrer de insolação. “Proteção adequada para a cabeça, os espessos capacetes de polpa de madeira ou de cortiça são essenciais”, ensinava o manual médico-padrão do império, no ano da batalha de El Alamein. “Forros para proteger a nuca são importantes, bem como leques e guarda-sóis.” Os americanos, que não tinham um império, andavam pela África toda com as cabeças descobertas. Isso encorajou os oficiais médicos do General Montgomery, na campanha do deserto, a se desfazer do capacete de cortiça, pois os espiões de Hitler que observavam no outro lado das pirâmides informavam exatamente o número dos soldados que chegavam da Grã-Bretanha contando os capacetes que desfilavam pelas ruas do Cairo.
Esse medo do sol afetou o jogo favorito do império. As acomodações em qualquer pavilhão de críquete, hoje em dia, bem como o do próprio Lord, não são atingidas pela luz do sol. Os que ficam no lado oposto são obrigados a enfrentar o perigo de uma insolação, nos lugares mais baratos, para assistir às partidas de campeonato. Nas festas ao ar livre e piqueniques, as damas eduardianas envolviam-se em musselina e tule e giravam seus guarda-sóis, defendendo-se da gloriosa inconveniência. Do meio para o fim do século, gradualmente as damas passaram a tirar toda a roupa sob os raios do sol, e agora estão-se vestindo outra vez, freneticamente. A sabedoria de continuar mortalmente branca depois dos feriados começa a ser aceita, em face da realidade comprovada do mal que o sol pode fazer à pele.
A insolação não é causada pela luz do sol, mas por deficiência de sal. Isso foi perfeitamente ilustrado por Sir Victor Horsley (1857-1916), o cirurgião de cérebro, de Londres, que inventou a cem Horsley para controlar a hemorragia craniana. A cera era uma adaptação da cera de modelagem. O pai de Horsley era um membro da Academia Real que se opunha ferozmente aos modelos nus. Sir Victor condenava também o fumo e o álcool. Ele afirmava com determinada convicção que a insolação era causada pelos elegantes goles de bebida, e não sair para o sol sem seu capacete de cortiça. Ele provou isso na Mesopotâmia, saindo com a cabeça descoberta, e logo depois morreu de insolação.
ESTIMULANDO OS FAGÓCITOS
“O médico do futuro será um imunizador", ousadamente profetizou Sir Almroth Wright (1861-1947), professor no Colégio de Medicina Militar Britânico, em 1900, e amigo do irlandês George Bernard Shaw. Mais tarde Shaw freqüentemente tomava chá com Wright no Departamento de Inoculação do Hospital Santa Maria, em Londres. Shaw se inspirou em Wright para criar seu personagem estimulador de fagócitos, Sir Colenso Ridgeon, em Dilema de um médico. Sir Almroth saiu do teatro no meio da peça, na noite de estréia.
A guerra da África do Sul, de 1899-1902, o primeiro dobre de finados para o Império Britânico, não foi ganha com os rifles antiquados dos fazendeiros boers, mas pelo bacilo da febre tifóide. Em cada grupo de mil soldados enviados para a Cidade do Cabo, a febre tifóide matou 15, duas vezes mais do que o inimigo conseguiu matar. Sir Almroth Wright criou a vacina, injetando o bacilo do tifo atenuado para criar resistência ao bacilo verdadeiro. O exército zombou da invenção. Sir Almroth desistiu. Na I Guerra Mundial, o exército teve tempo para estudar a idéia e poucos morreram de febre tifóide, mesmo em Galipoli, assolada pela doença. O exército foi vacinado contra tétano também, causado pela terra que entrava nos ferimentos. Na II Guerra Mundial esse perigo praticamente não existia porque os tanques, ao contrário dos cavalos, não defecam.
O cavalo inoculado, com sua tradicional boa vontade, produz uma grande quantidade de anti-soro para combater os mesmos germes que estão dizimando seus donos. Essa inoculação passiva não funcionou contra a pneumonia lobar. Contra uma assassina de crianças, a difteria, funcionou. A difteria poderia ter sido abolida pela inoculação ativa, como a febre tifóide, no exército, depois de 1926. Mas ninguém se importou muito com o assunto até 1940, assim 50.000 civis, mais do que na blitz, morreram desnecessariamente por descaso.
Sir Almroth Wright, aos 80 anos, sofreu a humilhação de negar sua autoconfiança da juventude. Ele confessou, arrasado, para a Real Sociedade de Medicina, a “necessidade de ignorar muita coisa na imunologia, considerada como garantida”. As sulfas e a penicilina estavam massacrando os germes que ele tão engenhosamente havia voltado contra eles mesmos. Ele teria morrido mais feliz se tivesse visto a imunização desfechada contra os vírus do sarampo, da rubéola (que ameaça a gravidez), da coqueluche, da pólio, da hepatite e das mesmas doenças contra as quais ele lutou entre as guerras. A imunização está de volta. Os germes podem-se voltar astuta e selvagemente contra seus atacantes químicos, e o homem está interferindo com sua imunologia pela introdução dos transplantes.
O DESEJO DE MATAR
Rara nos aterrorizar, nossos agressores unicelulares podem recorrer a aliados poderosos. Os mosquitos são suas divisões voadoras. O rato, rápido e astuto, é seu portador pessoal, cheio de pulgas ágeis. Os piolhos, com suas garras tenazes, são os veículos blindados da infecção.
Nosso conhecido Hieronymus Frascatorius, de Verona foi o primeiro a reconhecer o tifo exantemático, “a febre pintada", súbita, devastadora, com uma erupção vermelha e um índice de morte de 20%. O americano Howard Taylor Ricketts (1817-1910) descobriu que era causado por um dos organismos semelhantes aos vírus que só existem no interior das células vivas e que foram denominados rickettsias, em sua honra — muito justamente, porque ele morreu de tifo exantemático, na Cidade do México, no mesmo ano da sua descoberta. A rickettsia prowazeki é o organismo específico causador do tifo — e Stanislaus Josef Mathias von Prowazeki (1875-1915), de Hamburgo, morreu dessa doença também. Os micróbios são sugados do homem infectado pelo piolho, que salta para outro hospedeiro humano e deposita suas fezes infectadas na pele, e o homem começa a coçar desesperadamente o local. O pobre piolho fica vermelho e morre também.
Ha! onde vais, pequeno rastejante!
Tua imprudência te protege muito pouco,
escreveu Robert Burns em “A um piolho”, com sua habitual e profunda simpatia por todas as pequenas criaturas, com sua gratidão por seu exemplo, e (para um inglês) com sua incapacidade de compreender.
O que traz piolho, traz tifo: guerra, seres humanos vivendo em promiscuidade, sujeira, falta de água e material de limpeza, falta de uma camisa limpa para vestir. Como “febre das prisões”, no século XVI, os piolhos mataram a metade dos prisioneiros e esportivamente liquidaram os juízes, saltando para suas cadeiras. Na prisão de Old Bailey, em 1750, executaram três juízes, o prefeito de Londres e oito jurados. Deve ter havido muita risada na Prisão de Newgate.
Em 430 a.C., o tifo em Atenas complicou a Guerra do Peloponeso e matou Péricles (pode ter sido a peste ou a varíola, não podemos confiar no diagnóstico de Tucídides). Na Antióquia, em 1098, o tifo e a disenteria dizimaram os cruzados, homens e cavalos. O medo generalizado da infecção fez maravilhas para o índice de conversão ao cristianismo, especialmente porque o único recurso da saúde pública era o exorcismo. Durante a Guerra dos Trinta Anos, os dois lados posicionaram-se para a batalha de Nurenberg, em 1632, mas o tifo matou tantos antes de começar a luta que tiveram de desistir.
O tifo atormentou os cavaleiros do Rei Charles, em Oxford, e em 1741 capturou Praga para Luís XV. Com o General Inverno e sua tenente, a disenteria, o tifo conseguiu a retirada dos franceses de Moscou. (Foi a disenteria que acabou com o cerco de Bagdá, em 1439, e o de Metz, em 1553, e o vitorioso de Agincourt morreu do “fluxo sangüíneo" em Vincennes, em 31 de agosto de 1422.) Lenin perdeu 3 milhões de novos camaradas com tifo, em 1918-22. O tifo reforçou as selvagerias da II Guerra Mundial nos campos de concentração, nos acampamentos de refugiados e nos postos do exército, embora os aliados tenham derrotado o piolho antes dos nazistas, acabando com a epidemia em Nápoles, em 1944, usando o DDT, um inseticida que hoje faz eriçar os cabelos dos Verdes como talos de centeio.
Uma epidemia de tifo entre os tecelões da Alta Silésia, em 1848, foi investigada para os prussianos por Rudolf Virchow (1821-1902), do Charité Hospital, de Berlim. Seu relatório denunciava tão detalhadamente as condições higiênicas e de vida em geral dos habitantes do local, e propunha com tanta clareza o estado generoso como único remédio, que os prussianos o despediram. Ele foi eleito para o Reichstag, tendo como opositor Bismarck, organizou o Serviço de Ambulâncias da Guerra Franco-Prussiana e fez dos esgotos de Berlim motivo de inveja de toda a Europa.
Esse pequeno professor, fanfarrão e vigoroso, tornou-se um proeminente médico europeu, o que primeiro descreveu a leucemia e era especialista em embolia pulmonar, lúpus da face, gota, tatuagem e arqueologia de Tróia. Ele criou a frase Ommis cellula e cellula — nenhuma doença cria as próprias células, todas são células comuns do corpo humano, mas alteradas pela doença. Ninguém havia pensado nisso antes. Quando Jean Louis Armand de Quatrefages (1810-92), do Museu de História Natural de Paris, escreveu um panfleto qualificando os prussianos como um bando de mongóis bárbaros (eles acabavam de bombardear seu museu), Virchow, com fúria solene, lembrou a cor do cabelo e o formato dos olhos dos 6 milhões de escolares alemães. Seu octagésimo aniversário foi declarado feriado nacional; portanto, no fim, os prussianos o amaram.
A MORTE NEGRA
Agora as pulgas.
Albert Camus, em 1947 começava La Peste falando sobre Oran:
Quando saía da cirurgia, na manhã de 16 de abril, o Dr. Bernard Rieux sentiu alguma coisa macia sob o pé. Era um rato morto bem no meio do patamar da escada. Num impulso de momento, ele o chutou para o lado e, sem pensar mais no caso, continuou a descer a escada. Só quando estava na rua lembrou que não deveria haver um rato morto no andar de sua cirurgia.
Quando voltou para casa, naquela noite, o Dr. Rieux encontrou um rato quase morto, expelindo sangue pela boca. O animal deu um grito agudo e morreu. No dia seguinte havia três ratos mortos no seu corredor. Logo dezenas deles foram encontrados nas latas de lixo de Oran. Depois, milhares, por toda a parte. No fim de duas semanas, num só dia 6.231 ratos haviam sido queimados pelo serviço sanitário. Dois dias depois, foram 8.000. O povo começou a ficar preocupado.
Assim como os ratos abandonam o navio que está naufragando, a pulga abandona o rato que está morrendo. Se o rato morre de peste, então o micróbio Pasteurella pestis, pequeno, gordo, que forma uma cadeia e que infesta o sangue da última refeição da pulga, fica nauseado — que nojo! — quando a pulga pica o seguinte, quase sempre um homem. Daí a Morte Negra de 1348.
A Morte Negra começou nas praias do montanhoso Lago Issyk-Kul, a leste do Mar de Arai, além de Tashkent, no canto entre a Rússia e a China, ao norte do Himalaia. Em 1346, a Morte Negra estava matando indianos, armênios, tártaros e curdos, o que não preocupou muito pessoa alguma na Europa. No ano seguinte ela chegou á Criméia, depois a Messina, na Sicília, levada pelos ratos das galeras genovesas. Em seguida, Gênova, Pisa e Veneza. Depois disso, nada mais podia contê-la. No Natal de 1348 foi importada para a Inglaterra, através de Bristol, e um ano depois tinha varrido as Terras Altas da Escócia. Os médicos armaram-se com longos aventais de couro, luvas e protótipos das máscaras contra gases do ano de 1939, com óculos de aviador e anti-sépticos aromáticos no tubo de ar. Os pacientes queimavam ervas e cantavam salmos. A mortalidade entre os religiosos que atendiam os doentes foi heróica.
Foi chamada Morte Negra porque os mortos ficavam pretos. Sangravam horrivelmente ao nível da pele. Havia dois tipos, a bubônica, com os glânglios da virilha e das axilas intumescidos como laranjas podres, os terríveis "bubos”, ou a pneumônica, transmitida pela respiração, uma pneumonia hemorrágica, com morte certa e rápida. Boccaccio observa:
Quantos homens valentes, quantas damas graciosas, tomavam o desjejum com a família e naquela mesma noite jantavam com seus ancestrais no outro mundo.
Em covas abertas apressadamente eram enterrados os corpos putrefatos, malcheirosos e ameaçadores, 25 milhões deles na Europa, um quarto da população. Metade de Londres pereceu, talvez umas 50.000 pessoas. Ninguém sabia o que causava a peste, mas acreditavam que os judeus estavam envenenando os poços de água.
Teria sido tão horrível assim? Em 1988, dois cemitérios de emergência cavados em 1348 foram encontrados em Londres, perto da Torre e em Smithfield. Eram longas valas em camadas sensatamente cobertas de terra, para não enterrar corpo sobre corpo. Os corpos eram cuidadosamente arrumados e cobertos com uma fina camada de terra, com sepulturas separadas para as crianças. Esses cemitérios demonstram um admirável senso de previsão dos responsáveis pela cidade, quando a peste começava a chegar, vinda do oeste do país. Os 12.400 ocupantes das valas — possivelmente a maior parte das vítimas de Londres — indicam que a tragédia foi menor do que conta a tradição.
Durante a década de 1330, a Europa já estava em recessão econômica, o comércio praticamente estava parado e os preços caindo, guerras e desordens urbanas prejudicavam o comércio, a colheita era precária e o preço dos alimentos subia como um foguete. Veio a fome, e os pobres comiam os cachorros. Pelo menos, a Morte Negra resolveu o problema de superpopulação da Europa.
Depois da batalha de Bosworth, em 1485, a coroação de Henrique VII foi impedida pela doença do suor. Foi a única coroação adiada por causa de doença, até a de Eduardo VII no verão de 1901. Sudor Anglicus era uma doença misteriosa. Os doentes suavam e tremiam de frio, exalavam um cheiro estranho e desagradável e morriam em urn dia. Foi registrada por John Caius (1510-73), o médico que transformou o Gonville Hall, em Cambridge, em Gonville e Caius College, praticamente fazendo de|e um colégio de medicina. Caius foi médico da corte desde o reinado de Henrique VIII até o de Elizabeth I, mas um apóstata da Reforma. Os colegas de Caius descobriram seus trajes católicos e os queimaram em praça pública, e então ele levou seus colegas para a praça pública, presos ao tronco. Seu túmulo na capela do colégio diz apenas: Fui Caius. Ele escreveu também Of English Dogges.
Os sinos da praga soaram outra vez em Londres, em 1563, dizimando um quinto dos seus 93.000 habitantes, e em 1575, 1593, 1603, 1625 e 1636, cada vez diminuindo de 20.000 a população de Londres. A epidemia da Morte Negra mais comentada na literatura é a Grande Peste de Londres.
Em 1661 a peste voltou à Turquia, em 1664 matou um quinto da população de Amsterdã e chegou a Flandres. No mês de dezembro, dois franceses morreram em Drury Lane, e no mês de junho do ano seguinte, Samuel Pepys escrevia:
Em Drury Lane eu vi duas ou três casas marcadas com uma cruz vermelha na porta, e a frase "O Senhor tenha piedade de nós"— um triste espetáculo para mim, que o via pela primeira vez.
Ele comprou tabaco e mascou, para acalmar os nervos.
A cruz vermelha regulamentar tinha 30 centímetros de altura, a casa era selada e vigiada por 40 dias, doentes e sãos aprisionados juntos, comida e medicamentos deixados medrosamente na frente da porta. Os únicos visitantes eram os bravos médicos que não haviam fugido de Londres com o rei, mulheres velhas, “examinadoras”, cuja função consistia em descobrir os "sinais” nos corpos dos mortos — manchas vermelhas na pele — para determinar do que tinham morrido, e os enfermeiros que roubavam dos corpos e às vezes, impacientes, os estrangulavam ou passavam o pus das suas feridas nas pessoas sãs para matá-las depois.
Nathaniel Hodges (1629-88), um médico que descrevia com jovialidade situações mais trágicas, conta com humor o caso da enfermeira que, depois da morte de toda a família que ela tratava, saiu da casa carregando os objetos roubados e caiu morta na rua. Outra enfermeira roubou a roupa do paciente agonizante. Mas ele se recuperou e voltou à vida completamente nu.
O Dr. Hodges tornou-se imune à doença chupando pedaços de canela, enquanto examinava os pacientes, comendo grandes quantidades de carne assada e picles (“na verdade, naquele tempo melancólico havia na cidade grande abundância de todas as coisas boas dessa natureza”) e tomando um copo de vinho branco, seco e forte, da Espanha, antes do jantar, mais alguns copos durante a refeição e depois do dia de trabalho “tomando com prazer minha bebida predileta, que me ajudava a dormir e proporcionava a respiração fácil dos poros durante toda a noite. A gratidão me obriga a fazer justiça às virtudes do vinho branco e sua merecida classificação entre os principais antídotos”. Para ele, o melhor vinho era o de meia-idade — limpo, fino, claro, vigoroso e com um leve sabor de nozes.
Nathaniel Hodges tratava seus pacientes com raízes de serpentaria da Virgínia, sapo seco e doses da água da peste, do Colégio dos Médicos, uma mistura absurda de 21 medicamentos. Quando a peste terminou ele ficou sem pacientes, empobreceu, foi preso em Ludgate por dívidas e morreu na prisão, em 1688. Um exemplo dos perigos da especialização radical.
“Tragam seus mortos!” soava a voz nas ruas, acompanhada pelo dobre dos sinos, quando as ofertas eram atiradas aos montes nas valas. Os cães, suspeitos de transmitir a peste, foram massacrados. Os ratos tiveram mais sorte. No úmido mês de setembro de 1665, quando em Londres morriam 12.000 pessoas por semana, os patriarcas da cidade mandaram acender fogueiras nas ruas durante três dias seguidos, para purificar o ar. Mas o céu, chorando seus mortos, as extinguiu. Os médicos não haviam concordado com essa idéia, que consideravam supérflua, teatral e dispendiosa. Exatamente um ano depois, o Grande Incêndio levou exatamente o mesmo tempo para provar que os médicos estavam errados.
O relato de Daniel Defoe, Diário do ano da peste, publicado cm 1722, era uma artística obra de ficção, como Robinson Crusoe.
A FORMA DAS PESTES DO FUTURO
For mais de um século a peste bubônica matou indiscriminadamente em Malta, Viena, Praga, Varsóvia e Copenhague. I.m 1720 dizimou quase metade da população de Marselha. Na década de 1930 estava matando ainda em Uganda, onde haviam plantado algodão e a semente armazenada aumentou sensivelmente o número de ratos na região.
A peste começou a diminuir, mas houve quatro graves epidemias de gripe na Grã-Bretanha, no século XVII, 10 no século XVIII, seis no século XIX e, no século XX, a pandemia de 1918, que matou 0,5% da população da Grã-Bretanha e dos EUA e 25 milhões de pessoas no mundo todo. A guerra, há pouco terminada, havia matado 8.538.313 soldados, portanto o vírus da gripe matou três vezes mais em um quarto do tempo que durou a guerra. Então esse tipo de vírus mortal da gripe desapareceu. Talvez tenha recuado para os porcos, de onde pode voltar de modo alarmante, como voltaram os vencidos da Grande Guerra.
Nada cura a gripe. Porém, hoje, os antibióticos podem evitar a pneumonia, assim como podem deter o tifo, a disenteria e a peste bubônica. Na nossa parte confortável do mundo, onde estamos acostumados com a limpeza e com os médicos, e onde os bacteriologistas subiram de posto para se tornar “microbiologistas”, os vírus atacam especialmente os computadores. Podemos olhar com complacência para a peste.
Podemos?
Em 1967 o mundo se espantou com o aparecimento de uma nova doença. Era trazida pelos macacos verdes importados para experiências de laboratório num instituto de pesquisa em Marburg, na Alemanha Ocidental. Sete seres humanos morreram, entre o pessoal do laboratório e as enfermeiras que trataram deles. Os macacos trouxeram um vírus desconhecido da África Central, de algum lugar ao norte do Lago Vitória, provavelmente originário da aranha de teia de túnel, um inseto que, evidentemente, deve ser evitado. Dessa área — onde, infelizmente, o sexo não é feito exclusivamente em colchões Terra dos Sonhos e atrás das cortinas de Laura Ashley, quando terminam os programas da televisão — veio o vírus da AIDS Não há cura para nenhum desses vírus importados. Nem vai haver cura para outro, e mais outro, que aparecerão misteriosamente para nos dar mais uma forma de morte...
H.G. Wells, um século mais tarde, confortavelmente instalado na máquina do tempo, está muito ocupado com a série sobre os marcianos.
Existem algumas bactérias bondosas. Elas ajudam o crescimento dos legumes que os homens comem, e da relva do pasto que o gado come. Sem as bactérias, talvez jamais pudéssemos ter o prazer de comer ervilhas, feijão, nem o assado dos domingos.
Texto de Richard Gordon em "A Assustadora História da Medicina" (tradução de Aulyde Soares Rodrigues), Ediouro, Rio de Janeiro, 1996, excerto capitulo 2. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.