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O LABORATÓRIO DE PATOLOGIA DE AUSCHWITZ - TESTEMUNHO DE UM MÉDICO.

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O laboratório de Patologia fora instalado por ordem do meu superior, o Dr. Mengele, para satisfazer suas ambições na área da pesquisa médica. Tinha recebido os últimos retoques somente alguns dias antes. Tudo que estava faltando para que começasse a funcionar era um médico que assumisse a chefia. O KZ oferecia vastas possibilidades para a pesquisa, primeiro no campo da medicina legal, devido à alta taxa de suicídios, e também na área da patologia, graças à taxa relativamente alta de anões, gigantes e outras aberrações humanas. A abundância de cadáveres — sem igual em qualquer canto do mundo — e o fato de que se podia dispor livremente deles — abria largos horizontes.

Eu sabia, por experiência, que as clínicas das maiores cidades do mundo conseguiam fornecer a seus institutos médicos legais de 100 a 150 corpos para pesquisa. O KZ de Auschwitz estava capacitado a fornecer literalmente milhões. Qualquer um que tivesse transposto os portões do KZ era candidato à morte. Aquele que o destino colocara na coluna da esquerda seria transformado em cadáver em menos de uma hora após sua chegada. Menos afortunado aquele que ia para a coluna da direita. Ele ainda era candidato à morte, mas com uma diferença durante os três ou quatro meses, ou quanto mais tempo fosse que ele durasse, teria que se submeter a todos os horrores que o KZ tinha para oferecer, até que sucumbisse por exaustão extrema. Sangraria pelas centenas de ferimentos. Seu estômago se contorceria de fome, seus olhos ficariam esbugalhados e andaria a gemer como um demente. Iria arrastar seu corpo pelos campos gelados até que não pudesse mais. Cães treinados lhe morderiam o corpo esfrangalhado e descarnado: então quando até mesmo os piolhos abandonassem seu corpo esquelético, aí a hora do alívio, a hora da redenção estava perto. Quem, então, — de nossos pais, irmãos e filhos — era mais felizardo, aquele que ia para a esquerda ou o que ia para a direita?

Quando os trens chegavam, os soldados vasculhavam as fileiras formadas em frente aos vagões, à procura de gêmeos e anões. As mães, esperando que aquilo pudesse representar tratamento especial para seus filhos, imediatamente os entregavam aos guardas. Gêmeos adultos, sabendo que eram foco de interesse científico, ofereciam-se voluntariamente na esperança de um tratamento melhor. O mesmo acontecia com os anões. Eles eram separados do resto e mandados para a direita. Permitiam-lhes ficar com as roupas civis; os guardas conduziam-nos a barracões especiais, onde eram tratados com certas regalias. Sua alimentação era boa, suas camas confortáveis e as condições de higiene muito mais humanas.

Ficavam acomodados no Barracão 14 do Campo F e lá escoltados pela guarda, iam para os barracões de experiências do Campo Cigano, e ali submetidos a todo e qualquer exame que se possa fazer em seres humanos: exame de sangue, punções lombares, trocas de sangue entre irmãos gêmeos, assim como outros exames, todos fatigantes e deprimentes. Dina, a pintora de Fraga, fazia o estudo comparativo da estrutura craniana dos gêmeos, bem como das orelhas, ouvidos, bocas, mãos e pés. Cada desenho era classificado num arquivo feito para esse propósito, completado depois com todas as características individuais; desse arquivo também constaria o resultado final da pesquisa. O mesmo era feito com os anões.

As experiências, em linguagem médica chamadas in vivo, isto é experiências realizadas em seres humanos vivos, estavam longe de esgotar as possibilidades da pesquisa no estudo dos gêmeos Cheias de lacunas, só ofereciam resultados parciais O estudo m vivo era sucedido da fase mais importante do estudo dos gêmeos: o exame comparativo do ponto de vista anatômico e patológico. Aqui o problema era de examinar os órgãos sadios e compará-los com aqueles de funcionamento anormal, ou de comparar suas doenças. Para esse estudo, assim como para todos os estudos de natureza patológica, eram necessários cadáveres. Uma vez que era preciso proceder à dissecação para a avaliação simultânea das anomalias, os gêmeos tinham de morrer ao mesmo tempo. E assim, eles encontravam a morte na seção B, em um dos barracões de Auschwitz, pelas mãos do Dr. Mengele.

Esse fenômeno era único na história da ciência médica do mundo. Irmãos gêmeos morriam juntos, e era possível fazer a autópsia em ambos. Onde, em circunstâncias normais, poder-se-ia achar irmãos gêmeos que morressem no mesmo lugar e ao mesmo tempo? Pois os gêmeos, como qualquer um, são separados por circunstâncias diversas. Eles vivem afastados um do outro e rarissimamente morrem ao mesmo tempo. Um pode morrer com dez anos, outro com cinqüenta. Sob tais condições, a dissecação comparativa é impossível. No campo de Auschwitz, porém, havia centenas de pares de gêmeos e, assim, muitas possibilidades de dissecação. Por esse motivo, na chegada dos comboios, o Dr. Mengele sempre separava os gêmeos e anões dos demais prisioneiros. Por esse motivo, os dois grupos de especiais iam para a coluna da direita e dali para os barracões Por esse motivo, eles recebiam melhor alimentação e condições higiênicas mais favoráveis — para que não se contaminassem um ao outro e não morresse um antes do outro. Eles deveriam morrer juntos e com boa saúde.

O chefe do Sonderkommando veio me procurar dizendo que um soldado SS estava esperando por mim na porta do crematório com uma guarnição de transportadores de cadáveres. Saí à procura deles, pois eram proibidos de entrar no pátio. Peguei os documentos relativos aos corpos da mão do SS. Continham as fichas de dois pequenos gêmeos. A guarnição do kommando, formada inteiramente de mulheres, deixou o caixão tampado diante de mim. Levantei a tampa. Dentro estava um par de gêmeos de dois anos de idade. Ordenei a dois de meus homens que levassem os corpos para a mesa de dissecação.

Abri as fichas e examinei-as. Exames clínicos minuciosos, acompanhados de raios X, descrições e desenhos, indicavam os diferentes aspectos, do ponto de vista científico, desses dois pequenos seres. Somente o relatório patológico estava faltando, e era meu trabalho fornecê-lo. Os gêmeos haviam morrido ao mesmo tempo e estavam, agora, deitados um ao lado do outro na mesa de dissecação. Eram eles — ou seus pequenos corpos— que deveriam resolver o segredo da reprodução da raça. Dar um passo à frente para a revelação do segredo de multiplicar a raça dos seres superiores destinados a governar era uma meta nobre". No futuro, cada mãe alemã deveria carregar em seu ventre tantos gêmeos quantos fossem possíveis! Esse projeto concebido pelos teóricos do III Reich, era completamente louco. E ao Dr. Mengele, médico-chefe do KZ de Auschwitz, o notório "médico criminoso", é que essas experiências tinham sido confiadas. Entre os malfeitores e criminosos, o tipo mais perigoso é o médico criminoso", especialmente quando investido de tão grandes poderes, tais como os do Dr. Mengele. Ele enviou milhões para a morte, simplesmente porque, de acordo com sua teoria racial, eram seres inferiores e, portanto, conspurcadores da humanidade. Esse mesmo médico assassino passava horas ao meu lado, ora no microscópio ou nos fornos de desinfecção, ora nos tubos de ensaio ou de pé, com a mesma paciência, ao meu lado na mesa de dissecação, com seu avental todo manchado de sangue, suas mãos ensangüentadas, examinando e testando como um possesso. O objetivo imediato era a produção de alemães puros para substituir os tchecos, húngaros e poloneses, todos condenados à destruição, mas que, no momento, estavam vivendo em territórios ocupados e declarados vitais para o III Reich. Terminei a dissecação dos pequenos gêmeos e fiz um relatório minucioso da dissecação. Trabalhei bem e meu chefe parecia satisfeito comigo. Porém ele teve dificuldades para ler meu manuscrito, pois escrevi tudo em letras maiúsculas, um hábito que pegara na América 6. E então eu lhe disse que se ele quisesse uma cópia limpa e clara teria

O Dr. Nyiszli foi para os Estados Unidos no verão de 1939 e ficou até fevereiro de 1940, como membro da delegação romena para a Feira Mundial. Ele pretendia levar toda sua família e estabelecer-se nos Estados Unidos. Mas durante sua estada, estourou a guerra e teve de voltar para junto da família. Uma vez de volta, foi impossível deixar o país. Como resultado, Auschwitz. que me fornecer uma maquina de escrever, pois era assim que eu estava acostumado a trabalhar.

— Que marca você usava? — perguntou-me.

— Olympia Elite — respondi.

— Muito bem, vou enviar-lhe uma. Amanhã você a terá aqui. Quero uma copia limpa, porque esse material vai para o Instituto de Pesquisa Racial, Biológica e Evolutiva, em Berlim — Dahlem. Então, fiquei sabendo que as pesquisas feitas aqui eram checadas por altas autoridades médicas num dos mais avançados institutos científicos do mundo.

No dia seguinte, um SS trouxe uma "Olympia". Mais corpos de gêmeos me foram enviados. Recebi quatro pares do Campo Cigano; todos tinham menos de dez anos.

Comecei a dissecação de uma das crianças e registrei cada fase de meu trabalho. Removi a calota craniana. Depois procedi à abertura do tórax e à remoção do esterno. Em seguida, separei a língua por meio de uma incisão feita abaixo do queixo. Com a língua veio o esôfago, com as vias respiratórias vieram ambos os pulmões. Lavei os órgãos para examiná-los mais detalhadamente. A mais débil mancha ou a menor diferença na cor poderia fornecer informações valiosas. Fiz uma incisão transversal no pericárdio e removi o fluido. Tirei o coração e lavei-o. Com ele nas mãos, virei-o várias vezes para examiná-lo. No tampão exterior do ventrículo esquerdo via-se uma pequena mancha avermelhada, causada por uma injeção bipodérmica, que pouco diferia do tecido em volta. Não podia haver engano. A injeção fora dada com uma agulha muito pequena. Sem dúvida; uma agulha hipodérmica. Para que teria ele recebido uma injeção? Injeções no coração só podem ser dadas em casos extremamente sérios, quando ele começa a falhar. Eu logo saberia. Abri o coração, começando pelo ventrículo. Normalmente o sangue contido no ventrículo esquerdo é tirado e pesado. Esse método não podia ser empregado no presente caso porque o sangue estava coagulado numa massa compacta. Extraí o coágulo com um fórceps e cheirei-o. Fui atingido pelo odor característico do clorofórmio. A vítima tinha recebido uma injeção de clorofórmio no coração, de forma que o sangue no ventrículo, coagulando-se, iria se depositar nas válvulas e causaria a morte instantânea por colapso cardíaco. Minha descoberta do mais monstruoso segredo da ciência médica do III Reich fez meus joelhos fraquejarem. Não somente matavam com gás, como também com injeções de clorofórmio no coração. Um suor frio começou a brotar em minha testa. Felizmente eu estava sozinho. Se outros estivessem presentes seria muito difícil para mim dissimular meu estado. Terminei a dissecação e registrei as diferenças encontradas. Mas o clorofórmio, o sangue coagulado no ventrículo esquerdo, a perfuração visível na capa externa do coração não figuravam entre minhas descobertas. Era uma precaução útil de minha parte. Os registros do Dr. Mengele, no assunto dos gêmeos, estavam em minhas mãos. Eles continham exames precisos, chapas de raios X, desenhos da já mencionada pintora, mas nenhuma referência à causa da morte. Nem tampouco preenchi essa lacuna no relatório de dissecação. Não era de bom alvitre exceder as fronteiras autorizadas do conhecimento ou relatar tudo que se testemunhou. E aqui, menos do que em qualquer outro lugar. Eu não era temeroso por natureza e meus nervos eram bons. Durante minha prática médica, trouxera à luz as causas das mortes. Tinha visto cadáveres de pessoas assassinadas por vingança, por inveja ou para a obtenção de vantagens materiais, bem como de suicidas e de pessoas que morreram de morte natural. Estava acostumado ao estudo de obscuras causas de morte. Em várias ocasiões ficara chocado com as minhas descobertas, mas agora uma onda de medo tomava conta de mim. Se o Dr. Mengele descobrisse que eu sabia das injeções secretas, enviaria, em nome da política da SS, dez médicos para atestar a minha morte.

De acordo com as ordens que recebi, devolvi os corpos aos prisioneiros encarregados de queimá-los. Eles fizeram seu trabalho sem demora. Eu tinha que guardar quaisquer órgãos que por acaso tivessem interesse científico para que o Dr. Mengele os examinasse. Aqueles que pudessem interessar ao Instituto Antropológico de Berlim-Dahlem seriam conservados em álcool. Esses órgãos eram especialmente embalados para serem enviados pelo correio. Com a etiqueta de "Material de Guerra — Urgente", a eles era dada a prioridade máxima de trânsito. No transcurso do meu trabalho no crematório, despachei um número considerável desses pacotes. Recebia em resposta precisas informações científicas ou instruções. A fim de classificar essa correspondência, tive de organizar arquivos especiais Os diretores do Instituto Berlim-Dahlem sempre agradeciam calorosamente por esse raro e precioso material.

Terminei de dissecar os três outros pares de gêmeos e maquinalmente registrei as anomalias encontradas. Em todos os três casos, a causa da morte fora a mesma: uma injeção de clorofórmio no coração. Dos quatro pares de gêmeos, três tinham globos oculares de cor diferente entre si. Um olho era azul e outro castanho.

Esse fenômeno é bastante raro em não-gêmeos. Mas no caso presente, notei que em 8 gêmeos isso ocorria seis vezes. Uma coleção de anomalias extremamente interessantes. A ciência médica classifica-os como heterecromos, o que significa simplesmente de cores diferentes. Cortei os olhos e coloquei-os numa solução de formaldeído, anotando pormenorizadamente suas características, a fim de não misturá-las. Durante o exame dos quatro pares de gêmeos, descobri outro fenômeno ainda mais curioso: ao remover a pele do pescoço, notei imediatamente acima da extremidade do esterno um tumor do tamanho de uma pequena noz. Pressionando-o com o fórceps, vi que estava cheio de pus. Essa rara manifestação, conhecida na ciência médica com o nome de tumor de DuBois, indicava a presença de sífilis hereditária. Observando mais, vi que ele existia em todos os oito gêmeos. Seccionei o tumor, deixando-o cercado de tecido sadio, e mergulhei-o em outro vidro de formaldeido. Em dois pares de gêmeos descobri também a evidência de uma ativa e cavernosa tuberculose. Registrei meus achados, mas deixei a cláusula "causa da morte" em branco.

Durante a tarde fui visitado pelo Dr. Mengele. Fiz um relato detalhado do meu trabalho de manhã e entreguei-lhe o relatório. Ele sentou-se e começou a ler cada caso atenciosamente. Ficou muito interessado pela característica heterocromática dos olhos, porém ainda mais interessado na descoberta do tumor de DuBois. Deu-me instruções para despachar aqueles órgãos e incluir meu relatório na remessa. Ordenou-me também que preenchesse o item "causa da morte". A escolha das causas ficava a meu critério e discrição; a única recomendação era de que cada causa fosse diferente. Quase que se desculpando, quis fazer-me ver que aquelas crianças, como eu mesmo pudera notar, eram tuberculosas e sifilíticas, e morreriam mais cedo ou mais tarde... Não tocou mais no assunto. Aquela tinha sido sua explicação para a morte das crianças. Contive-me ao máximo para não fazer qualquer comentário. Mas aprendi mais uma coisa: aqui, tuberculose e sífilis não eram tratadas com remédios e, sim, com injeções de clorofórmio no coração.

Fiquei estarrecido só de pensar o quanto tinha aprendido durante a minha curta estada aqui, e o quanto ainda teria que testemunhar sem protestar, até que minha própria hora chegasse. No momento que entrara neste lugar tivera a exata sensação de que já era um morto-vivo. Mas agora, de posse de todos esses segredos fantásticos, estava certo de que nunca mais sairia vivo dali. Como era possível que o Dr. Mengele ou o Instituto Berlim-Dahlem fossem permitir que eu deixasse com vida este lugar?

Já era tarde e estava ficando escuro. O Dr. Mengele tinha saído e eu fiquei só com meus pensamentos. Mecanicamente, arrumei os instrumentos usados para as autópsias e depois de lavar as mãos fui para a sala de trabalho e acendi um cigarro, pensando em ter um minuto de paz. De repente, ouvi um grito que me deu calafrios na espinha. Imediatamente depois um baque que soou como um corpo caindo. Fiquei escutando, meus nervos ficaram tensos pelo que os próximos minutos trariam. Antes que o minuto seguinte tivesse passado, ouvi outro grito seguido de um estampido e de um baque surdo. Contei setenta gritos, estampidos e baques. Percebi o ruído de passadas pesadas se afastando e tudo ficou quieto.

A tragédia sangrenta que tinha acabado de acontecer passara-se no aposento contíguo à sala de dissecação. O corredor levava diretamente a ele. Era um lugar mal iluminado, de chão de concreto e janelas gradeadas que davam para o pátio dos fundos. Eu o usava para guardar os corpos, mantendo-os ali até que chegasse a vez de serem dissecados, devolvendo-os para lá até que fossem apanhados para serem queimados. Roupas surradas de mulher, sapatos gastos de madeira, óculos, pedaços de pão dormido — o conjunto costumeiro de artigos femininos das mulheres do KZ — estavam caídos no chão, empilhados na entrada do quarto. Depois do que tinha ouvido, estava preparado para qualquer coisa de extraordinário. Entrei no quarto e olhei rapidamente em volta. Uma cena dantesca gradualmente se descortinou: diante de mim estavam esparramados os corpos nus de setenta mulheres. Contorcidas, banhadas em seu próprio sangue e no das outras, elas se misturavam num conjunto diabólico.

À medida que meus olhos ficavam mais acostumados à escuridão do quarto, fui descobrindo, para meu horror, que nem todas as vítimas estavam mortas. Algumas ainda respiravam, movendo os braços e as pernas lentamente; com o olhar vidrado, tentavam levantar a cabeça ensangüentada. Ergui a cabeça de algumas delas, duas ou três, que ainda viviam, e percebi que, além da morte por gás e injeções de clorofórmio, havia uma terceira maneira de matar aqui: uma bala na nuca. O ferimento revelava que a bala era de 6 mm: não havia o buraco de saída. Dessas observações concluí que o material utilizado na bala foi chumbo macio, porque só esse tipo de bala iria se alojar na estrutura craniana. Infelizmente, eu conhecia alguma coisa sobre o assunto e pude caracterizar a situação em todo seu horror. Não havia nada de surpreendente que essas balas de pequeno calibre não causassem a morte instantânea em todos os casos, mesmo tendo sido o tiro desferido de uma distância de poucos centímetros da medula espinhal, e as queimaduras de pólvora na pele provocavam isso. Parecia que, em alguns casos, a bala tinha-se desviado ligeiramente do seu caminho; desta forma a morte não fora instantânea.

Registrei isso também, mas não pensei mais; temia ficar louco. Saindo para o pátio, perguntei a um membro do Sonderkommando de onde tinham vindo as mulheres.

— Foram trazidas da Seção C — respondeu. — Toda noite um caminhão traz setenta delas. Todas recebem uma bala na nuca. Com minha cabeça girando de terror, caminhei pelo caminho estreito que dividia o bem guardado gramado do pátio do crematório. Meu olhar perambulou pelo pátio onde estava sendo feita a chamada do Sonderkommando. Naquela noite não houve mudança de guarda. O crematório no. 1 não estava trabalhando. Olhei na direção dos nos. 2, 3 e 4: suas chaminés estavam cuspindo labaredas e fumaça — os negócios não podem parar.

Ainda era cedo para o jantar. Os homens do kommando organizaram uma partida de futebol. Os times formaram no gramado: "SS x SK". Num lado do campo os guardas SS do crematório, no outro os homens do Sonderkommando. Começou o jogo e gargalhadas sonoras encheram o pátio.

Os espectadores tornaram-se torcedores entusiasmados, gritavam e torciam pelo time de sua preferência, como se aquele fosse o campo de futebol de uma pacífica cidadezinha. Estupefato, também registrei isso mentalmente. Sem esperar o fim do jogo, voltei para o meu quarto. Depois do jantar, engoli duas pílulas para dormir e caí no sono. Eu precisava desesperadamente dormir, pois sentia que meus nervos estavam a ponto de estourar. Nesses casos, as pílulas para dormir eram o melhor remédio.

Na manhã seguinte, acordei com um tremendo mal-estar. Dirigi-me para o chuveiro no quarto ao lado e deixei as águas geladas do Vístula caírem sobre mim durante uma meia hora. Aquilo refrescou meus nervos cansados e dissipou a sononlência causada pelas pílulas. Como os alemães se preocupavam conosco! Construíram dez maravilhosos banheiros para uso exclusivo do Sonderkommando. Aqueles que lidam com cadáveres devem se lavar constantemente, por isso o banho de chuveiro era obrigatório duas vezes por dia, um regulamento ao qual todos nós nos submetíamos alegremente. Examinei o conteúdo de minha maleta médica. Encontrei um estetoscópio, aparelho de medir pressão, algumas boas seringas, um certo número de outros instrumentos, remédios e varias ampolas para injeções de emergência. Estava satisfeito em ter tudo aquilo porque sabia que seria necessário durante as minhas visitas". Aqui no Sonderkommando, «visitas" significavam fazer a ronda pelos quatro crematórios. Comecei em meu próprio crematório. Primeiro parei nos alojamentos SS planejando examinar a todos que se apresentassem, pois havia sempre alguém. Nos crematórios, todos simulavam doença de tempos em tempos a fim de conseguir um descanso breve daquele trabalho exaustivo e neurotizante. Surgiam também casos mais sérios algumas vezes, mas não havia problema para se cuidar deles quanto aos estoques de remédios estávamos tão bem abastecidos quanto a maior farmácia de Berlim.

A um kommando especial era dada a incumbência de checar todas as bagagens deixadas na ante-sala da morte pelos deportados e recolher todos os remédios antes que as roupas e bagagens fossem levadas. Esses remédios me eram entregues para que eu procedesse a uma classificação de acordo com o seu tipo e finalidade. Não era um trabalho fácil porque os remédios que chegavam a Auschwitz pertenciam a pessoas vindas de todos os lugares da Europa. Desta forma, havia rótulos em holandês, grego e polonês, e eu devia decifrar todos. Devo mencionar, de passagem, que, em geral, os remédios eram sedativos de diversas espécies. Sedativos para acalmar os nervos dos judeus perseguidos na Europa.

Após minha visita aos SS, subi para o alojamento do Sonderkommando. Enquanto estava lá, tratava de alguns cortes e arranhões comuns entre os motoristas. Os homens do kommando raramente sofriam de alguma enfermidade orgânica, pois eram muito bem alimentados, andavam muito limpos e a roupa de cama era sempre nova. Além disso, eram, na maioria, jovens, escolhidos a dedo por sua força e constituição física. No entanto, a quase totalidade tinha uma tendência para distúrbios nervosos, pois recebiam uma carga tremenda, sabendo que seus irmãos, esposas e pais — sua raça inteira — estavam sendo dizimados aqui. Dia após dia carregavam milhares e milhares de cadáveres para os crematórios onde, com suas próprias mãos, os atiravam nos incineradores. O resultado era uma aguda depressão nervosa e, freqüentemente, neurastenia. Todos aqui tinham um passado que relembrariam consternados e um futuro contemplado com desespero.

O futuro do Sonderkommando estava firmemente circunscrito ao tempo. A dolorosa experiência de quatro anos mostrava que esse tempo era de quatro meses. No fim desse período, uma companhia de SS chegava. O kommando inteiro era reunido no pátio dos fundos do crematório. Uma metralhadora espocava. Meia hora depois um novo esquadrão de Sonderkommando chegava. Eles tiravam a roupa de seus companheiros mortos, dos quais, alguns minutos depois, só cinzas restavam. A primeira tarefa de cada Sonderkommando era cremar seus predecessores. Durante as minhas visitas, havia sempre alguém que me implorava um veneno rápido e indolor. Eu invariavelmente recusava. Hoje me arrependo disso. Estão todos mortos. Sua morte era rápida, é verdade — não auto-administrada como eles teriam preferido, mas pelas mãos dos carrascos nazistas.

Minha visita seguinte foi ao Crematório no. 2, que estava separado do n.° 1 por um caminho através de alguns campos e pela mesma plataforma de desembarque. Ele fora construído segundo os mesmos padrões do número um. A única diferença que pude notar foi que a sala reservada para a dissecação no número 1 tinha sido ocupada por uma fundição de ouro. Fora isso, o desenho da ante-sala da morte, da câmara de gás, dos incineradores e dos alojamentos dos SS e dos Sonderkommandos eram exatamente iguais.

Era para essa fundição que todos os dentes, as pontes e obturações dos prisioneiros dos quatro crematórios eram levados. Também vinham todas as jóias, moedas de ouro, pedras preciosas, jóias de platina, relógios, cigarreiras de ouro e qualquer outro objeto de metal precioso achado nas malas, valises, roupas ou nos corpos das vítimas. Três ourives eram empregados lá. Primeiro eles desinfetavam as jóias, depois as separavam e classificavam. Removiam as pedras preciosas e enviavam os engastes para a fundição. Os dentes de ouro e as jóias fornecidas cada dia pelos quatro crematórios produziam, uma vez fundidas, entre 30 e 40 quilos de ouro.

A fundição era feita num crisol de grafita com aproximadamente 5 cm de diâmetro. O peso do cilindro de ouro era de 140 gramas. Eu sabia esse peso com exatidão porque pesei mais de um numa balança de precisão na sala de dissecação. Os dentistas que removiam os dentes de ouro não atiravam todo o metal precioso no vasilhame de ácido — uma parte ia para o bolso dos SK na hora que esses mórbidos tesouros estavam sendo recolhidos. O mesmo acontecia com as jóias e pedras costuradas nas barras das roupas e as moedas de ouro deixadas no vestiário. Em última instância, era o Sonderkommando encarregado de vasculhar a bagagem que lucrava. Aquilo era um jogo extremamente perigoso, pois os SS tinham a estranha faculdade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo e mantinham uma vigilância rigorosa sobre essa propriedade que, daí em diante, pertenceria ao III Reich. Nem é preciso dizer que eles mantinham um controle ainda mais rigoroso sobre as jóias.

A princípio eu não compreendia como é que, do ponto de vista judicial e moral, o Sonderkommando podia embolsar o ouro. Alguns dias mais tarde, quando consegui perceber toda a situação, inclinei-me a admitir que se alguém devesse ser o herdeiro único e legal de todos os tesouros que ali chegavam, era o Sonderkommando.

Os homens do Sonderkommando também fundiam seu ouro. Apesar da estrita vigilância, havia sempre um jeito de levá-lo até os ourives e depois retomá-lo já em forma de "moedas" de 140 gramas. Mas botar esse ouro para trabalhar, quer dizer, trocá-lo por mercadoria útil, essa era uma tarefa bem mais difícil. Eles não sonhavam em acumular esse ouro, pois sabiam que dentro de quatro meses estariam mortos; embora, para nós, quatro meses fosse um longo tempo. Ser condenado à morte e ainda por cima obrigado a fazer trabalhos tais como os que fazíamos todos os dias era para arrebentar o corpo e a alma dos mais fortes, e levar muitos às raias da loucura. Era, pois, necessário tornar a vida mais fácil, mais suportável, ainda que fosse por algumas semanas. Com ouro isso era possível, mesmo nos crematórios. Assim foi criada, no tempo do primeiro Sonderkommando, uma unidade de troca: o cilindro de ouro de 140 gramas. Essa mesma unidade estava ainda sendo usada pelo décimo-segundo Sonderkommando. Os ourives não tinham nenhum crisol de diâmetro menor, assim não havia jeito de se fazer "moedas" menores. No crematório, um objeto não tinha "valor" no sentido ordinário da palavra. Qualquer um que pagasse alguma coisa com ouro já tinha pago com sua vida na hora em que entrara aqui. Mas a pessoa que dava algo em troca de ouro arriscava duplamente o pescoço; a primeira vez quando trazia os artigos que eram difíceis de passar, pois desde o lado de fora havia barreiras de SS onde todos que passavam eram minuciosamente revistados; e depois, ao sair levando seu pagamento em ouro, pois também passava por revista rigorosa.

Em seu caminho para fora, o ouro era carregado no bolso de um homem do Sonderkommando até o portão do crematório. Lá passava para outras mãos. O homem que o carregava aproximava-se do guarda e trocava umas palavras com ele. Esse último virava-se e afastava-se do portão. Na seção da via férrea que passava em frente ao "krema", um grupo de 20 a 25 poloneses trabalhava. A um sinal do homem do Sonderkommando, o seu chefe se aproximava com um saco dobrado e pegava o ouro, que estava embrulhado em papel. Assim, o saco contendo os artigos desejados passava em segurança para dentro do crematório.

O homem do Sonderkommando entrava na casa da guarda, que ficava perto do portão, tirava cerca de cem cigarros e uma garrafa de brandy do saco. O soldado SS entrava e imediatamente escondia os cigarros e a bebida. Evidente que ele ficava muitíssimo satisfeito, pois os SS recebiam apenas dois cigarros por dia e nenhuma bebida alcoólica. E, no entanto, ambos eram indispensáveis aqui. Os SS bebiam e fumavam com sofreguidão, como também o faziam os homens do Sonderkommando.

Outros artigos indispensáveis tais como manteiga, ovos, bacon e cebolas eram contrabandeados por esse mesmo método. Porém, com os deportados comuns nada disso acontecia. Uma vez que o ouro era obtido através de um esforço coletivo, a distribuição da mercadoria conseguida em sua troca era feita também coletivamente. Assim, não só o pessoal do Sonderkommando como os soldados SS recebiam uma provisão considerável de alimentos, cigarros e bebidas. Todos fechavam os olhos àquele tráfico, pois era vantajoso para todos que ele continuasse. Tomado individualmente, qualquer SS do crematório era subornável. Só não confiavam neles próprios, pois sabiam que o Sonderkommando nunca traíra ninguém e nem nunca trairia. Por isso é que a comida, a bebida e os cigarros eram entregues aos SS por um "homem de confiança" do Sonderkommando.

Pelo mesmo caminho "subterrâneo", o órgão oficial do III Reich, o Võotkischer Beobachter, era levado todos os dias ao crematório, cada vez por um trabalhador diferente. Uma assinatura mensal custava um cilindro de 140 gramas. Qualquer um que arriscasse a vida trinta dias por mês, para trazer o jornal aos prisioneiros, merecia o preço pago. Desde minha chegada ao crematório, fui o primeiro a receber um exemplar. Li-o num lugar escondido e seguro, e depois relatei os principais acontecimentos do dia a um dos prisioneiros-funcionários, que então passava a outro as notícias e assim sucessivamente, até que todos ficassem a par das ultimas notícias.

O Sonderkommando era um grupo de elite; suas vantagens e privilégios já foram contados. Em contraste com os prisioneiros do campo propriamente dito, que minguavam em barracos infectos, lutando furiosamente por um naco de pão ou um pedaço de tomate, seu tratamento era relativamente bom. Consciente dessa situação de desequilíbrio, o Sonderkommando distribuía comida e roupas aos seus companheiros menos afortunados sempre que podia.

Durante os últimos dias, um kommando feminino de cerca de 500 operárias esteve trabalhando duro, não muito longe dos portões do crematório. Eram vigiadas por dois SS e quatro cães pastores. Alguns homens do Sonderkommando, com permissão dos seus superiores, aproximaram-se dos dois SS que guardavam as prisioneiras e deram um maço de cigarros a cada um. Com isso o acordo estava selado. O trabalho das mulheres era carregar pedras para a construção de uma estrada. Então, algumas delas, carregadas de pedras, aproximaram-se do nosso portão como se seu trabalho as tivesse levado lá, e imediatamente apanharam todas as roupas que tinham sido juntadas para elas. Levaram também pão, bacon e cigarros. Depois saíram e vieram outras do kommando até que cada uma tivesse recebido sua parte. Não havia nunca favoritismo por parte do Sonderkommando, pois nenhum de nós conhecia qualquer das mulheres pessoalmente. Radiantes com os presentes, elas voltaram ao trabalho. No dia seguinte, outro grupo substituía o anterior e a mesma cena se repetia. Os imensos armazéns dos crematórios possuíam uma quantidade enorme de roupas e sapatos, aguardando o embarque, e creio que vários milhares de mulheres foram ajudadas pelo Sonderkommando dessa maneira. Eu também tentava dar a minha contribuição: enchia meus bolsos com vitaminas, tabletes de sulfa, vidros de iodo, esparadrapo e tudo que considerava pudesse ser de utilidade, entregava às mulheres que passavam.

Quando meu estoque chegava ao fim, voltava ao quarto e enchia novamente os bolsos; para aqueles que recebiam esses medicamentos eles freqüentemente representavam a diferença entre a vida e a morte. Pelo menos por algum tempo. Depois de visitar o número 2, passei para o no. 3 e o no. 4

Enquanto o número 3 era composto, em sua grande maioria, de gregos e poloneses (notei também cerca de cem húngaros), o número 4 era quase que totalmente de poloneses e franceses. Em todas essas fábricas da morte, o trabalho estava a todo vapor. Da plataforma de desembarque de judeus, que era dividida em quatro grandes divisões (como dedos de uma mão), similares ao delta de algum rio, as vítimas eram despejadas para a morte com uma fúria insana. Notei, horrorizado, com que ordem e automatismo os assassinos agiam, como se aquelas fabricas estivessem ali para durar toda a eternidade. Se por um milagre eu conseguir sair vivo desse lugar pensei comigo mesmo, e tiver uma chance de contar tudo que testemunhei e pelo qual passei, quem acreditará em mim? Palavras, descrições são totalmente impotentes para dar a quem quer que seja uma idéia exata do que seja isso aqui. Então meu esforço desesperado para tudo gravar e registrar em minha mente e em vão.

Com esse pensamento desencorajador na cabeça, completei meu primeiro dia de ronda pelos quatro crematórios.

Consegui um volume do dicionário francês Petit Larousse. Com a ajuda de seus mapas, tentei localizar os nomes dos vários lugares mencionados nos jornais que lia. Sozinho em meu quarto, estudei a situação militar ao longo das frentes oriental e sul. Passos pesados ressoaram no corredor. Imediatamente escondi o dicionário e fiquei olhando impaciente para a porta. O comandante do crematório entrou para informar-me que uma importante comissão chegaria às duas horas da tarde, e que eu deveria estar com a sala de dissecação pronta para recebê-la.

Antes da comissão chegar, entrou um caixão fechado, completamente enrolado em tecido negro. Dentro estava o corpo de um capitão SS. Coloquei-o sobre a mesa de dissecação assim como me foi entregue.

A comissão, constituída de altos oficiais trajados impecavelmente, chegou com pontualidade: um coronel SS do Corpo Médico, um juiz, dois funcionários da Gestapo e um relator da corte marcial. Alguns minutos depois, entrou o Dr. Mengele. Pedi-lhes que se sentassem. Teve lugar, então, uma pequena conferência, onde os dois homens da Gestapo relataram com alguns detalhes as circunstâncias da morte de seu colega.

Os ferimentos, causados por arma de fogo, apontavam ou para assassinato premeditado ou crime comum; a hipótese do suicídio foi logo afastada, pois o revólver do capitão ainda estava no coldre quando o cadáver foi encontrado. Pela hipótese do crime comum achavam que podia ter sido cometido por outro oficial ou então por algum subalterno que tivesse algo contra ele. Mas a possibilidade do assassinato premeditado era mais aceitável: era comum haver crimes de morte na cidade polonesa de Gleiwitz, onde havia atividade constante de grupos da Resistência.

O objetivo da autópsia era determinar se o tiro fora desferido pela frente ou pelas costas, qual o calibre e as características da arma usada e a distância aproximada entre o atirador e a vítima. No momento não havia nenhum médico qualificado em Gleiwitz, que ficava a apenas quarenta quilômetros de Auschwitz, sendo este o ponto mais próximo onde uma autópsia podia ser efetuada em condições satisfatórias. No meu papel de observador, permaneci a uma distância respeitosa do grupo enquanto a conversa prosseguia e aguardei no paciente mutismo que é esperado de todo prisioneiro do KZ, que o Dr. Mengele desse as ordens.

Nunca podia imaginar que a um judeu prisioneiro do KZ, como eu, fosse permitido sujar, com meu contato, o corpo de um oficial SS. Quanto a caber a mim fazer a autópsia, nunca nem mesmo sonhara com isso, especialmente levando em conta, mesmo sendo chamado de cidadão livre, que as leis raciais me impediam de prestar qualquer assistência médica aos cristãos, ou, mais exatamente, aos arianos. Por isso fiquei surpreso quando o Dr. Mengele me ordenou que prosseguisse com a autópsia.

A primeira tarefa, que não era nada fácil, foi tirar a roupa do morto. Somente para retirar as botas seriam necessários dois homens. Solicitei, ao Dr. Mengele permissão para chamar dois assistentes. Enquanto o cadáver estava sendo despido, os membros da comissão empenharam-se numa discussão acalorada e praticamente não prestaram atenção em mim e em meus auxiliares. Ao fazer a primeira incisão comecei a defrontar-me com um ataque de medo e um absurdo sentimento de inferioridade. Cortei a pele do crânio e, com um movimento rápido e preciso, puxei metade da pele do rosto e a outra metade até a nuca. O passo seguinte seria mais difícil: tratava-se de serrar o crânio e remover a calota craniana. Quase mecanicamente procedi a essas operações.

Chegara a vez agora de examinar os dois ferimentos causados pela bala. Se ela tivesse atravessado o corpo, deveria haver naturalmente dois furos, um na entrada e outro na saída . Na maioria dos casos, o médico não tem problema para apontar qual é qual: o ponto por onde a bala entra é sempre menor do que aquele por onde sai. Neste caso, porém, havia dois orifícios exatamente do mesmo tamanho, um abaixo do mamilo esquerdo e o outro perto da face superior da omoplata.

O caso não estava nada claro e, por conseguinte, muito mais interessante. O que poderia ter causado a uniformidade desses dois ferimentos? O Dr. Mengele era de opinião que tinha havido dois tiros, um pela frente e outro por trás. Esse poderia muito bem ser o caso, se o oficial tivesse caído após o primeiro tiro e levado o segundo quando já estivesse no chão. Nenhuma das duas balas atravessara todo o corpo, e isso explicaria os dois ferimentos idênticos. Essa teoria parecia bastante plausível, mas faltava ser verificada. Para tanto, eu teria de acompanhar o caminho que as balas haviam percorrido. Ao fazer isso, descobri que a bala que entrara no corpo pelo mamilo esquerdo perfurara o coração, batera na extremidade esquerda da coluna vertebral e continuara a subir num ângulo de 35° até alcançar a extremidade de cima da omoplata, onde batera e saíra do corpo. Não podia haver dúvidas quanto a isso; somente uma bala havia sido disparada pela frente, pois o caminho por ela percorrido era ascendente, da frente para trás, num ângulo de 35°. A razão da existência de dois buracos do mesmo tamanho era que a bala havia raspado a coluna vertebral e tirado um pedaço da omoplata; consideravelmente atenuada por esses obstáculos, a bala deixara o corpo depois de grande parte de seu impulso ter-se perdido. Alem disso, é bastante duvidoso que alguém apontasse para baixo num ângulo de 35° ao atirar. Para fazer tal coisa, seria necessário que o assassino erguesse seu braço bem acima da cabeça. Assim, parecia-me óbvio que a bala havia sido disparada de frente, e que a arma fora apontada um pouco acima da linha horizontal no momento do tiro, que foi desferido de perto. Provavelmente o assassino fora impedido por algum obstáculo imprevisto de erguer um pouco mais a arma. Mas essa era uma questão para o inquérito decidir. Notei que minhas observações satisfizeram os membros da comissão, pois me comunicaram que, no futuro, todos os casos que exigissem autópsia seriam enviados para cá. Eles acharam esse arranjo bastante satisfatório. Assim eu me tornei, com essa única autópsia, o médico-legista do KZ encarregado de todos os assuntos pertinentes à medicina legal no distrito de Gleiwitz.

Na madrugada recebi um telefonema ordenando-me que fosse imediatamente à "pira" para trazer de volta ao crematório no. 1 todos os remédios e óculos que haviam sido recolhidos lá. Depois de classificados, seriam remetidos para vários pontos da Alemanha. A pira ficava localizada a uns quatrocentos ou quinhentos metros do crematório no. 4, bem atrás da pequena floresta de vidoeiros de Birkenau, numa clareira cercada de pinheiros. Ficava do lado de fora da cerca eletrificada de arame farpado do KZ, entre a primeira e a segunda linha de guardas. Uma vez que eu não estava autorizado a me afastar além dos limites do confinamento, requisitei permissão por escrito. Eles me forneceram um salvo-conduto para três pessoas, pois eu planejava levar dois homens para que me ajudassem a carregar o material para fora do crematório.

Caminhamos em direção aos rolos espirais de fumaça grossa. Todos os infelizes que eram levados para lá viam aquelas colunas de fumaça, visíveis de qualquer ponto do KZ. A qualquer hora do dia ou da noite podia-se vê-las, e desde o momento em que os prisioneiros eram despejados dos vagões de carga, aquela era uma das visões para a qual tinha o olhar atraído. Durante o dia ela cobria o céu de Birkenau com uma nuvem espessa; à noite, toda a área ficava iluminada com aquela resplandescência infernal.

Nosso caminho nos levou para além dos crematórios. Após mostrarmos aos guardas SS o salvo-conduto, passamos por uma abertura no arame farpado e alcançamos uma estrada aberta. Os arredores — um terreno todo coberto de grama verdejante — espelhavam tranqüilidade. Porém, meus olhos observadores logo descobriram, a cerca de uns cem metros, os guardas da segunda linha descansando sobre a grama ou sentados ao lado de suas metralhadoras e cães pastores.

Atravessamos a clareira e chegamos a uma pequena floresta de pinheiros. Novamente nosso caminho foi barrado por uma cerca e portão de arame farpado. Uma grande tabuleta, igual às dos portões dos crematórios, estava pendurada lá:

A ENTRADA É ESTRITAMENTE PROIBIDA PARA TODOS QUE NÃO TRABALHAM AQUI. INCLUSIVE PARA O PESSOAL DA SS NÃO AUTORIZADO POR ESSE COMANDO.

Apesar do aviso, entramos sem que os guardas nos pedissem o passe. A razão era simples: os guardas SS de serviço eram do crematório e os sessenta homens do Sonderkommando que trabalhavam na pira eram também do crematório no. 2; no momento, a troca do dia já tinha sido feita. Eles trabalhavam de 7 da manhã às 7 da noite, quando eram substituídos pelo pessoal do turno da noite, que também se compunha de sessenta homens do crematório no. 4.

Depois de passar pelo portão, alcançamos um lugar aberto que parecia um pátio no meio do qual havia uma casa de telhado de palha, cujo reboco estava soltando. Seu estilo era das típicas casas de campo alemãs e suas pequenas janelas estavam cobertas com tábuas. Aliás, não havia dúvida de que havia sido casa de campo durante pelo menos cento e cinqüenta anos, a julgar pelo telhado de palha, que há muito tornara-se enegrecido, e pelas paredes várias vezes remendadas. O Estado alemão havia expropriado toda a aldeia de Birkenau, perto de Auschwitz, a fim de estabelecer lá o KZ. Todas as casas, com exceção dessa, haviam sido demolidas e a população removida. Em que esta casa deveria estar sendo usada? Teria sido destinada a servir de habitação? Nesse caso, seu interior deveria ter sido dividido em quartos. Ou teria sido ela originalmente um único e espaçoso aposento sem divisões, idealizada para ser usada como depósito? Eram as perguntas que fazia a mim mesmo e não conseguia me dar uma resposta satisfatória. De qualquer modo, ela era agora usada como quarto de despir para aqueles que iam para a pira. Era aqui que depositavam suas roupas surradas, seus óculos e seus sapatos.

Era para cá que vinha o "excedente" da "rampa dos judeus isto é, aqueles para quem não havia lugar nos quatro crematórios. A pior espécie de morte os aguardava. Aqui não havia mangueiras d'água para saciar a sede de uma viagem de vários dias nem tabuletas mentirosas que alimentavam suas esperanças, nem câmara de gás, com a qual os alemães pudessem enganá-los, fazendo-a passar por sala de desinfecção. Era somente uma casa de camponeses, algum dia pintada de amarelo e coberta de palha, cujas janelas haviam sido fechadas com tábuas.

Atrás da casa, enormes colunas de fumaça subiam ao céu. espalhando o cheiro de carne queimada e cabelo chamuscado. No pátio, uma multidão aterrorizada de cerca de 5.000 almas; por todos os lados, fileiras compactas de SS, segurando cães furiosos. Os prisioneiros eram levados em grupos de 300 ou 400 de cada vez para se despirem. Lá, sob uma chuva de cacetadas, largavam suas roupas e saíam pela porta do lado dos fundos da casa, dando lugar aos que se seguiam. Uma vez do lado de fora da porta, não tinham tempo nem mesmo de olhar em volta ou de perceber o horror de sua situação. O Sonder-kommando puxavaos pelos braços, conduzindo-os diante de uma fileira dupla de SS, alinhados no caminho serpenteante que era ladeado por uma floresta. A pira, até então escondida pelas arvores, surgia à vista. A pira era uma vala de uns quarenta metros de comprimento, cinco metros de largura e três de profundidade, uma caldeira de queimar corpos. Os soldados SS, formados em intervalos de quatro metros uns dos outros, ao longo da vala, aguardavam suas vítimas. Eles usavam armas de pequeno calibre (seis milímetros) que, no KZ, eram utilizadas para administrar uma bala na nuca dos condenados. No fim do caminho, dois homens do Sonderkommando arrastavam as vítimas pelo braço por uns vinte metros até diante dos SS. Seus gritos de terror abafavam o estampido dos tiros. Um tiro e, imediatamente depois, mesmo antes de morrer, a vítima era atirada nas chamas. Quatro metros adiante a mesma cena se repetia O Oberschmrführer Molle era o comandante desses carniceiros. Como médico, e como testemunha ocular, juro que era o mais abjeto, diabólico e empedernido assassino do III Reich. Mesmo o Dr. Mengele mostrara uma vez ou outra sinais de que era humano. Durante as seleções na rampa de desembarque, quando notava uma mulher jovem e saudável que se esforçava por juntar-se à sua mãe na coluna da esquerda, ele gritava e a xingava com violência, ordenando que voltasse para a coluna da direita. Mesmo o animal do crematório no.1, o Oberschaarführer Mussfeld, dava um segundo tiro naqueles a quem o primeiro não havia liquidado. Molle, no entanto, não perdia tempo com essas banalidades. Aqui, a maior parte dos homens era jogada com vida nas labaredas. E pobre de qualquer Sonderkommando que, por qualquer motivo, interrompesse a corrente viva que se estendia da sala de despir até a pira, deixando algum membro do esquadrão de fuzilamento parado por alguns segundos à espera de nova vitima.

Molle estava em todos os lugares ao mesmo tempo. Corria incansável de uma pira para outra, de lá para a casa e novamente para as piras. A maior parte das vezes os condenados se deixavam levar sem resistência, o terror paralisava-os de tal modo que não percebiam o que estava prestes a lhes acontecer. Quase todos os velhos e as crianças reagiam dessa forma. Havia, no entanto, muitos adolescentes que instintivamente tentavam resistir, com uma força nascida do desespero. Se acontecia de Molle testemunhar uma tal cena, ele tirava sua arma do coldre. Um tiro, uma bala disparada geralmente a quarenta ou cinqüenta metros de distância, e a vítima, que se debatia nos braços do Sonderkommando, caía morta.

Suas balas freqüentemente atravessavam os braços dos homens do Sonderkommando quando se mostrava insatisfeito com o trabalho deles. Nesses casos, apontava para os braços sem, no entanto, manifestar sua insatisfação, mas também sem dar nenhum aviso prévio.

Quando duas piras estavam operando simultaneamente, a produção variava de quinhentos ou seiscentos mortos por dia. Ligeiramente melhor do que os crematórios, mas aqui a morte era um milhão de vezes mais terrível, pois se morria duas vezes, primeiro de um tiro na nuca e depois pelo fogo.

Depois da morte por gás, por injeções de clorofórmio no coração e por uma bala na nuca, eu tinha agora visto esse quarto método "combinado".

Juntei os remédios e óculos abandonados pelas vítimas. Apavorado, com os joelhos ainda tremendo de emoção, voltei para casa, isto é, para o crematório no.1 que, no dizer do Dr. Mengele, "não era um hospital, mas um lugar onde se podia viver de maneira decente". Depois de ter visto as piras, estava inclinado a concordar com ele.

Uma vez em casa, entrei em meu quarto, mas ao invés de arrumar os remédios e óculos, tomei um sedativo e caí na cama. A dose de hoje era de trinta centigramas, suficiente para combater os efeitos das náuseas causadas pela pira funerária. Pelo menos, eu esperava. XIV

Na manhã seguinte acordei imaginando que nova revelação esse dia traria, pois aqui cada dia tinha sua revelação, cada uma mais horripilante que qualquer ser humano jamais pensou existir. Soube através do Sonder, que invariavelmente conseguia ficar a par de todas as últimas informações, que o KZ estava em rigorosa prontidão. Isso significava que ninguém podia deixar os barracões. Os soldados SS e seus cães estavam com toda corda. Hoje eles iriam liquidar o Campo Tcheco.

O Campo Tcheco era constituído de 15.000 deportados trazidos do gueto de Theresienstadt. Assim como o Campo Cigano, ele tinha um certo ar familiar. Os deportados não haviam sido selecionados na hora da chegada, sendo enviados intactos para seus "aposentos". Todos, independente da idade ou compleição física, tiveram permissão para viver juntos e continuar com sua própria roupa. Seu tratamento era duro, mas não insuportável. Ao contrário das outras seções, os prisioneiros tchecos não trabalhavam.

Assim eles viveram por dois anos, até que a hora do extermínio chegou, como cedo ou tarde chegava para todos no KZ. Em Auschwitz não era nunca uma questão de se você iria viver ou não, mas simplesmente uma questão de tempo, de quando você iria morrer. Ninguém escapava. Os trens de deportados húngaros, ou como se costumava dizer no KZ — os fretes — chegavam num fluxo constante, às vezes até dois num mesmo dia, e despejavam no campo seus infelizes ocupantes Para todos, o incansável Dr. Mengele dispensava o mesmo tratamento de seleção. Ele permanecia lá, como uma estátua, seu braço sempre apontando numa direção: a esquerda. Assim, comboios inteiros eram enviados para as câmaras de gás e para as piras.

O campo de quarentena, o Campo C, o Campo D e a seção F estavam superlotados, embora os prisioneiros fossem embarcados, as centenas, diariamente, para campos mais distantes . NO Campo 1 checo, as crianças e os velhos estavam bastante enfraquecidos pelos dois anos de subalimentação: as crianças estavam praticamente em pele e osso, e os prisioneiros mais velhos tão fracos que mal podiam caminhar. Ambos deveriam ceder lugar para os recém-chegados, que ainda tinham forças e podiam trabalhar.

Mas algumas semanas antes a situação deles havia piorado ainda mais. Quando os primeiros trens húngaros começaram a chegar suas rações foram radicalmente reduzidas. Depois alguns dias mais tarde, o fluxo da chegada de comboios atingiu o máximo e as autoridades do campo se defrontaram com o problema da escassez de comida. Como sempre, a solução foi drástica e eficiente: praticamente foram suprimidas por completo as rações do Campo Tcheco. A fome, então, reduziu os prisioneiros a uma multidão de loucos famintos. Em poucos dias, seus organismos enfraquecidos se desintegravam totalmente. Disenterias, diarréias e tifo começaram a fazer seu trabalho mortal. Cinqüenta ou sessenta mortes por dia era normal. Seus últimos dias eram transcorridos num sofrimento indescritível, até que, finalmente, vinha a morte para libertá-los. O fechamento de todos os barracões foi ordenado ainda de madrugada. Centenas de SS cercaram a área e ordenaram que os cadáveres ambulantes se reunissem. Seus gritos de terror ao serem embarcados nos caminhões eram tenebrosos de se ouvir, pois após dois anos de permanência no KZ, eles não tinham mais ilusões sobre o destino que os aguardava. O "Dia do Extermínio" veio encontrar 12.000 prisioneiros no Campo Tcheco. Desse número, uns 1.500 homens e mulheres em condições físicas razoáveis e oito médicos foram poupados. O resto foi enviado para os crematórios 2 e 3. No dia seguinte, o Campo Tcheco estava silencioso e deserto. Vi um caminhão carregado de cinzas deixar o campo em direção às águas do Vístula.

Desta forma as folhas de chamada de Auschwitz ficaram reduzidas em mais de 12.000 "unidades", e mais uma página sangrenta foi adicionada aos arquivos do KZ. A página continha somente uma breve inscrição: "A seção tcheca do Campo de Concentração de Auschwitz foi liquidada nessa data devido a um surto de tifo entre os prisioneiros. Assinado: Dr. Mengele, Hauptsturmführer I Lageratz. Os oito médicos do Campo Tcheco, que, graças à intervenção do Dr. Epstein, tinham sido poupados, foram enviados para os barracões hospitais do Campo F, devido ao fato de estarem física e mentalmente exaustos depois do esforço sobre-humano de cuidar de seus companheiros ou por estarem com tifo.

No dia que se seguiu ao extermínio do Campo Tcheco, fiz uma visita oficial ao Campo F. Ali encontrei os oito médicos que haviam escapado da morte e tive oportunidade de conversar com eles, em particular com o Dr. Heller, cujo nome era bem conhecido nos círculos médicos. De seus lábios trêmulos, ouvi a história do sofrimento e da morte da elite judaica da Tcheco-Eslováquia. Desde aquela época, os oito já morreram. Eram médicos de verdade. Guardo a memória deles numa profunda estima e consideração.

O Campo C, que ficava perto do Campo Tcheco, era composto de mulheres judias húngaras, freqüentemente uma média de 60 000, apesar dos embarques diários para outros campos mais distantes. Foi nesse super povoado campo que os médicos descobriram entre as prisioneiras sintomas de escarlatina. Por ordem do Dr. Mengele, os barracões afetados e os em sua proximidade foram postos em quarentena que, por sinal, não durou muito: de manhã à noite, cerca de doze horas. A noitinha, os caminhões chegaram para carregar as esqueléticas prisioneiras para os crematórios. Tais eram os métodos eficazes utilizados pelo Dr. Mengele para evitar o surto de moléstias contagiosas. O Campo Tcheco e o Campo C já haviam sentido na pele os efeitos da batalha do Dr. Mengele contra as epidemias. Felizmente os médicos dos barracões aprenderam logo o método do Dr. Mengele e, daí por diante, não revelaram nenhum caso de doença infecto-contagiosa às autoridades médicas SS. Sempre que possível, isolavam a pessoa doente num canto do barracão e cuidavam dela o melhor que podiam com os ínfimos recursos de que dispunham. Evitavam a todo custo enviar os doentes para os hospitais, pois os médicos SS examinavam os pacientes que ali chegavam e o sinal de uma moléstia contagiosa significava a destruição não só do barracão de onde provinha o doente como também dos barracões vizinhos. Na linguagem médica dos SS. isso era "a luta intensa contra o surto de infecções". O resultado dessa luta era um ou dois caminhões cheios de cinzas...

Depois dessas considerações, recebi dois cadáveres de mulheres, trazidos do hospital do Campo B, com ordens do Dr. Mengele para que procedesse à autópsia. Como sempre, recebi as fichas contendo detalhadas informações sobre as mortas Na coluna reservada ao diagnóstico, notei respectivamente febre tifóide" e "colapso cardíaco". As duas expressões eram seguidas de pontos de interrogação. Não sou muito dado a pesar os prós e os contras antes de agir. Decido e ajo rapidamente, sobretudo quando se trata de tomar uma decisão importante. Os resultados desse comportamento nem sempre eram brilhantes. O fato de ter acabado nesse crematório foi conseqüência de uma decisão instantânea.

Novamente decidi-me rapidamente. Não podia enviar meu diagnóstico ao Dr. Mengele, confirmando a febre tifóide. A descrição da enfermidade da vítima estava cheia de lacunas. O diagnóstico estava seguido de um ponto de interrogação. O médico provavelmente ficara inseguro no assunto. A autópsia determinaria se seu julgamento tinha sido ou não correto. Por essa razão os dois corpos me foram enviados. Procedi à autópsia. O intestino delgado em ambos os corpos estava num estado de ulceração característico de uma tifóide de três semanas. O baço apresentava-se também inchado. Sem nenhuma sombra de dúvida, ambas as mortas tinham sido vítimas de febre tifóide.

O Dr Mengele chegou, como de costume, às cinco da tarde. Estava de bom humor. Entrou e perguntou-me, cheio de curiosidade, sobre o resultado da autópsia. Os dois cadáveres jaziam abertos sobre a mesa. Os intestinos grosso e delgado de ambos já haviam sido lavados e colocados num vidro, prontos para serem examinados.

Eu lhe dei o meu diagnóstico: inflamação do intestino delgado, com extensa ulceração. Expliquei-lhe como era o estado ulcerado dos intestinos delgados durante uma terceira semana de febre tifóide e comparei-o com as ulcerações surgidas em conseqüência da inflamação desse órgão. Chamei a sua atenção para o fato de que a inchação do baço freqüentemente acompanha uma inflamação do intestino e, conseqüentemente, isso não era um caso de febre tifóide e sim uma séria inflamação do intestino delgado, causada por envenenamento alimentar.

O Dr. Mengele era um biólogo racial e não um patologista. Assim, não foi difícil convencê-lo da exatidão de meu diagnóstico. No entanto, ser enganado aborrecia-o; ele virou-se para mim e disse:
— Se quer saber a minha opinião, pessoas capazes de cometer erros tão crassos seriam mais úteis ao KZ como trabalhadores braçais do que como médicos. Diagnósticos falhos como estes podem causar um bom número de mortes desnecessárias.

Ele apanhou os atestados e as fichas, mas antes de colocá-los na pasta, anotou a seguinte frase na margem de um atestado:

"Responsabilizar as médicas", que li por cima de seu ombro. Fiquei profundamente arrependido de ter agido dessa forma com as minhas colegas, pois seus diagnósticos estavam certíssimos. Talvez agora perdessem seus cargos e acabariam indo fazer trabalho pesado; se o Dr. Mengele cumprisse sua ameaça, eu teria sido o culpado.

Segundo o costume médico vigente do outro lado do arame farpado, eu agira totalmente contra a ética, e estava com plena consciência de minha culpa. Errei contra dois ou três inocentes. Mas até onde teria o Dr. Mengele ido em sua luta contra as epidemias, e qual teria sido o número de vítimas se tivesse agido de outra forma?

No dia seguinte recebi notícias animadoras com relação ao destino de minhas colegas. O Dr. Mengele as havia repreendido severamente, mas tinha deixado as coisas como estavam. As médicas permaneceram em seu trabalho. Depois disso, muitos outros cadáveres me foram enviados juntamente com suas respectivas fichas, mas a cláusula "diagnóstico" estava sempre em branco. Eu preferia assim. A indignação do Dr. Mengele em relação ao erro de diagnóstico continuou a martelar na minha cabeça por vários dias. Tanto cinismo misturado a tanta maldade em um médico me surpreendia, mesmo estando no KZ. Ele não era um médico comum, era um criminoso, ou melhor, um "médico criminoso".

Um dia o Dr. Mengele ordenou-me que fosse falar imediatamente com o comandante do Campo F. Naturalmente, fiquei muito feliz com isso, porque assim poderia escapar um pouco do ambiente deprimente dos crematórios, nem que fosse por algumas horas. Eu sabia que andar me faria bem porque tinha pouca oportunidade de me exercitar. E depois do cheiro constante da sala de dissecação e das fornalhas, estava realmente precisando de um pouco de ar puro. Além disso, a visita me daria o ensejo de conversar com meus colegas do Campo F, que me haviam recebido tão calorosamente quando eu chegara ao KZ. Preparei-me para a "viagem", enchendo meus bolsos com remédios valiosos e vários maços de cigarros, pois não queria voltar de mãos vazias para a minha antiga "casa", isto é, o hospital-barracão 12.

Saí pelo portão de ferro do crematório, onde os guardas anotaram meu número. Depois dirigi-me para o Campo F, sem pressa, para melhor saborear este pequeno passeio. Passei ao lado da cerca de arame farpado do campo das mulheres, o "FKL", onde milhares e milhares de prisioneiras andavam para cá e para lá no meio daqueles miseráveis barracões. Todas elas se pareciam, e todas, com suas cabeças raspadas e roupas surradas, eram repulsivas. Pensei na minha mulher e na minha filha, com aqueles seus cabelos cacheados, suas roupas elegantes e sua maneira graciosa de se vestir, e todas aquelas horas que elas passavam discutindo os tão importantes problemas femininos. Já se haviam passado três meses desde a nossa separação na plataforma de desembarque. O que teria acontecido com elas?

Estariam vivas? Juntas? Será que ainda estavam na seção de mulheres do KZ ou foram, talvez, enviadas para algum campo mais distante no III Reich? Três meses é um bocado de tempo, principalmente no KZ. No entanto, eu tinha o pressentimento de que elas ainda se achavam em Auschwitz. Mas onde? Nesse complicado labirinto de arame farpado, qual seria a cerca delas? Para qualquer lugar que olhasse, só via uma vasta rede de arame farpado, torres de concreto e tabuletas proibindo a saída ou a entrada. O KZ era somente arame farpado; toda a Alemanha estava cercada de arame farpado, o III Reich era, ele próprio, um enorme KZ. Cheguei ao portão do Campo F. A entrada era guardada pelo Blockführerstube. Um soldado e um suboficial SS com cara de gorila estavam de serviço. Aproximei-me da janela da casinhola, puxei a manga de meu paletó e, de acordo com o regulamento, anunciei meu número: A 8450. Quando puxei a manga do paletó, o relógio de pulso que o Dr. Mengele me autorizara a usar tornou-se visível. Possuir um tal objeto era uma das mais hediondas ofensas no KZ. Com a velocidade e a fúria de um tigre raivoso, o SS ergueu-se e saiu correndo da casinhola.

— Que diabo pensa que é para usar relógio de pulso? — gritou com uma voz de possesso. — E o que veio fazer no Campo F?

Três meses de permanência nos crematórios foram para mim uma escola que havia deixado sua marca. Sem perder a calma, sem nem mesmo piscar, respondi numa voz suave:

— Estou aqui porque o Dr. Mengele me enviou, mas se é impossível para mim chegar ao Campo F, então é melhor retornar ao crematório e avisar o Dr. Mengele pelo telefone.

O nome "Dr. Mengele" funcionou como mágica. Somente a sua menção era suficiente para fazer a maioria das pessoas tremer. O meu suboficial ficou mansinho em frações de segundo. De uma maneira quase amável, perguntou-me quanto tempo eu pretendia ficar no campo.

— Você sabe, não é, eu tenho que registrar a informação — ele falou, quase se desculpando. Olhei para o meu relógio. Eram dez horas.

— Devo ficar até duas da tarde — respondi. — A essa hora meu negócio com o Dr. Mengele já terá certamente acabado.

Para acentuar minha frase, tirei um maço de cigarros do bolso e ofereci ao meu interlocutor. Obviamente satisfeito com o presente, ele falou comigo num tom quase amigável, e chegou ao extremo de dizer que ficaria contente em ver-me da próxima vez que eu aqui viesse. Não havia como negar, o nome "Dr. Mengele", o fato de haver mencionado o crematório e a ostentação dos cigarros impressionaram fortemente o escravo SS. Agora tinha certeza de poder passar pelo menos uma hora ou duas com meus velhos amigos. Mas primeiro deveria descobrir por que o Dr. Mengele havia me enviado. Entrei no barracão do comandante do campo e esperei no hall que um funcionário viesse me perguntar o que desejava. Disse-lhe. Ele apontou para a porta do lado oposto do aposento. Dirigi-me para lá e entrei num escritório muito bem mobiliado. As paredes eram cobertas de gráficos e mapas que mostravam as variações da população e a composição do campo durante os vários períodos de sua existência. Ostensivamente colocado numa moldura ornada, notei uma enorme fotografia de Himmler, com seu pince-nez colocado delicadamente sobre o nariz.

Três pessoas estavam sentadas no aposento. O Dr. Mengele, o Hauptsturmführer Thilo, cirurgião-chefe do KZ, e o Obersturmführer Wolff, diretor do Serviço Médico Geral. O Dr. Mengele informou ao Dr. Wolff, a quem eu não conhecia pessoalmente, que era eu que fazia as autópsias no crematório.

— Muito interessante — disse o Dr. Wolff, coçando o queixo. — O Dr. Mengele me falou de seu trabalho. Estou especialmente interessado em patologia, doutor, e já teria dedicado alguma atenção a um de seus casos mais delicados se a falta de tempo não me tivesse impedido. Esperei pelo que estava para vir.

— No momento, estou me dedicando a um estudo científico de alguma importância. Mas para resumir, devo dizer que vou precisar de sua ajuda. Foi por isso que pedi ao Dr. Mengele que o enviasse aqui hoje — fez uma pausa e continuou: — Como o senhor sabe, a diarréia é extremamente comum no campo e em noventa por cento dos casos ela é fatal. Eu conheço tudo que há para saber sobre a evolução da doença, pois já fiz milhares de exames e tenho tudo minuciosamente anotado. Mas meu trabalho está incompleto porque além da observação clínica, um estudo científico requer relatórios patológicos de um número suficiente de casos de disenteria para que seja conclusivo. Comecei a compreender do que se tratava. O Dr. Wolff também estava se dedicando à pesquisa. No meio do fedor e da fumaça dos crematórios, ele também desejava ter o seu quinhão nas centenas de milhares de cobaias disponíveis no KZ, a maioria das quais reduzida pela disenteria a um peso inacreditável. Através da dissecação de um número considerável de cadáveres, ele desejava descobrir as manifestações internas de disenteria ainda desconhecidas da ciência médica.

O Dr. Mengele queria resolver o problema da multiplicação da raça pelo estudo do material humano — ou melhor, dos gêmeos — que ele tinha à sua disposição na quantidade e à hora que desejasse. O Dr. Wolff procurava as causas da disenteria. No momento tais causas não eram difíceis de apontar, até mesmo um camponês saberia dizer. A disenteria é causada pela aplicação da seguinte fórmula: pegue qualquer indivíduo — homem, mulher ou criança inocente — arranqueo de seu lar, ponha-o junto com centenas de outros num vagão fechado no qual um balde de água foi anteriormente colocado de maneira estratégica, e os remeta, depois de terem passado seis semanas num gueto, para Auschwitz. Ali empilhe-os aos milhares em barracões que não serviriam nem de estábulos. Como comida, dê-lhes uma ração de pão dormido feito de castanha silvestre, uma espécie de margarina cujo ingrediente básico é linhita, trinta gramas de chouriço feito de carne de cavalo doente que, no total, não excederá a setecentas calorias. Para ajudar a descer essa ração, meio litro de sopa feita de urtiga e ervas daninhas, sem nenhum sal, nenhuma gordura e nenhum cereal. Em quatro semanas a disenteria invariavelmente aparecerá. Três ou quatro semanas mais tarde o paciente estará "curado", porque morrerá, apesar de qualquer tratamento que possa receber dos médicos do campo. Segundo o Dr. Wolff, seriam necessários pelo menos cento e cinqüenta cadáveres para o capítulo de seu estudo devotado ao aspecto patológico da questão. O Dr. Mengele interrompeu a conversa:

— Fazendo sete autópsias por dia, você conseguirá acabar o número requisitado pelo Dr. Wolff em apenas três semanas. Não concordei.

— Desculpem-me, cavalheiros, mas se querem um trabalho sério e bem feito, o que não tenho dúvida, então só poderei fazer três autópsias por dia.

Depois de alguma discussão, todos concordaram com meu ponto de vista e, com um sumário aceno de cabeça, fui dispensado. Fiz uma visita aos meus colegas residentes no hospital-barracão no. 2. Exultaram ao receber os remédios que eu trouxe e com ar de satisfação fumaram os cigarros que distribui. Seus rostos e palavras traíram o sentimento de extrema fadiga e o desânimo que se apossaram deles. O fim trágico e repentino do campo tcheco teve um efeito bastante forte sobre eles. Pouco a pouco, desesperançados com a sua situação, iam-se entregando ao desespero. Eu também estava totalmente desesperançado, mas com uma diferença: esse sentimento em mim não veio pouco a pouco, mas sim abruptamente, no momento em que cruzara os portões do crematório.

No entanto, fiz o melhor que pude para encorajá-los, exortandoos a perseverar. Descrevi-lhes o quadro da situação militar e mostrei como dia a dia a situação estava caminhando para um fim que nos fosse favorável. Uma vez que eu lia o jornal todo dia, estava apto a respaldar as minhas afirmações em fatos concretos. Nós nos despedimos com um caloroso aperto de mão. No KZ, a expressão "deixar um amigo é morrer um pouco" tinha uma segunda conotação. Deixei-os com a sensação de que poderia dizer, sem medo de estar fazendo demagogia, que tenho um espírito forte, pois mesmo na situação em que me encontrava, ainda conseguia encorajar outros a perseverar...

O Obersturmführer Wolff mandou todos os seus antigos pacientes, vitimas de disenteria, para serem autopsiados. Já tinha acabado as primeiras trinta autópsias e estava anotando os resultados de minhas observações. Em todos os casos a mucosa estomacal estava inflamada, o que resultava numa queima, ou melhor, num ressecamento das glândulas que secretam ácido clórico no estômago. A ausência de sucos gástricos torna a digestão impossível mas, por outro lado, aumenta proporcionalmente a fermentação.

Minha segunda observação dizia respeito às condições inflamatórias em que se encontrava o intestino delgado, o que era acompanhado por um adelgaçamento das paredes intestinais. Minha terceira observação concernia ao suco digestivo mais importante do intestino delgado, a bílis, que é indispensável para a assimilação das gorduras. Abrindo o fígado, encontrei, ao invés da normal secreção amarelo-esverdeada, um líquido quase incolor, que mal afetava o material que ia parar no intestino e que, de qualquer forma, era totalmente incapaz de realizar sua função digestiva.

Minha quarta observação dizia respeito à inflamação do intestino grosso, que resultou num ressecamento, num adelgaçamento e numa excessiva fragilidade das paredes intestinais, que se apresentavam tão grossas e tão fortes quanto um papel de cigarro. Na verdade, não eram mais tubos digestivos e, sim, esgotos através dos quais tudo fluía de um extremo a outro num espaço de poucos minutos.

Tais observações, em linhas gerais e reduzidas a uma linguagem que qualquer leigo entenda, foram as principais conclusões das autópsias. O trabalho que me foi encomendado era, na realidade, bastante monótono e desprovido de qualquer interesse. Os testes bacteriológicos provavelmente estavam sendo efetuados na aldeia de Risgau, situada a três quilômetros do crematório, no "Instituto do Exército SS de Higiene e Bacteriologia". Lá, o renomado professor Mansfeld, catedrático da cadeira de Bacteriologia da Faculdade de Medicina de Pecs, estava encarregado do trabalho.

Texto de Dr. Miklos Nyiszli  em "Auschwitz, O Testemunho De Um Médico", (AUSCHWITZ: A DOCTORS EYEWITNESS ACCOUNT- Tradução de Roberto Goldkorn), Editora Record, Rio de Janeiro, 1974, capitulo VIII. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.


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