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A LITERATURA DOS RELATOS DE VIAGEM

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      Para compreender o regime de observação da literatura de relatos de viagem é preciso buscar as técnicas constitutivas da arte de viajar: técnicas que, curiosamente, e não por acaso, podem ser detectadas no arcabouço dos museus tradicionais, em seu modelo clássico.

      O conjunto desses relatos de viagem descrevem o planeta como era então conhecido; já não se confunde mais com os compêndios do saber cosmográfico, produzidos na Idade Média. Nesses compêndios, a prática científica era essencialmente uma atividade de sistematização. Como o eram também, à sua maneira, os gabinetes de curiosidades dos príncipes renascentistas, e os primeiros museus.

      A partir das viagens de descoberta, é a viagem em si mesma que constitui uma prática, uma instituição científica. A viagem não é mais o meio de se chegar ao terreno de um saber possível – ela é o suporte de um saber, seu motor, o lugar de levantamentos sistemáticos, de observações celestes e marítimas e de recolhimento de amostras da flora, da fauna e da humanidade; o modo de escrituração dessas amostragens é a descrição e a crônica circunstanciada, cujo registro funciona como ato notarial, observa Defert (1982:18). Não seria difícil aplicar essa definição à trajetória dos museus até os dias de hoje.

      O capitão, o médico de bordo, o padre e o notário, os missionários lingüistas e naturalistas, todos elaboram seus diários e registros. Para se prepararem para sua missão, eram especialmente treinados para a viagem – o que era chamado de prudentia peregrinandi. E aprendiam especialmente as linguae peregrinae: línguas necessárias à atividade de viajar, e de se comunicar com povos desconhecidos – como por exemplo, o latim, língua peregrina para um japonês convertido; o japonês, ou o guarani, linguae peregrinae para um missionário jesuíta. A questão da comunicação coloca-se então como requisito primeiro para o cumprimento da missão que orienta a viagem.
     
      Coleta-se o mundo e coletam-se as gentes, com uma intenção e uma metodologia precisas – quase museológicas, poderíamos dizer. Jean de Lery descreve com a mesma minúcia a travessia do Atlântico como a sua estada entre os tupinambás, na Guanabara, e os dois acontecimentos têm para ele a mesma importância e o mesmo significado antropológico e teológico (id.82:18). Cristóvão Colombo decifra ao mesmo tempo as algas boiando nas ondas como indícios de profundidade das águas e de aproximação da terra, as constelações no céu como indicadores de posição, as cicatrizes nos corpos dos índios como sinais de sua belicosidade e os anéis de ouro que eles trazem como indícios da existência das minas.

      A atividade de decifração dos sinais e índices, na semiologia da navegação, não se faz por mera curiosidade. Corresponde e obedece a uma intenção, a um cronograma e a um planejamento estratégico. Que intenções, que estratégias determinam essas práticas?

      Quando o rei de Portugal determina o empreendimento da circunavegação da África em direção ao Oriente, não o faz por mero capricho ou lance de ousadia – a expedição marítima se torna uma aventura política.

      A investigação e a coleta, a observação e o registro minucioso, em fichários sistematizados, a conservação das coleções, nos grandes museus que se estabelecem a partir do século XVIII, não estão longe de obedecer às mesmas intenções, às mesmas estratégias. As grandes viagens de descoberta se encarregaram de deixar-lhes um grande legado de coisas, espécimes, idéias e práticas.

      A imago mundi que passa a ser construída nos museus é um reflexo da imago mundi que começa a ser delineada pelos mapas e relatos das navegações e seus troféus de conquista – do mundo e dos homens. Imagens fragmentadas e particularizadas, intercaladas de terras incógnitas, mas definidas a partir daquilo que se vê e do que se recolhe, e que é considerado, em princípio, a verdade, ou uma forma particular de verdade. “Vejo”, logo “existe”, parece ser o lema pré-positivista dessas empresas, pensando aquilo que existe de acordo com seus modos particulares de ver o mundo.

      Os armadores privados participam da empresa, mas o suporte logístico dos governos é imprescindível. Os relatos de viagem têm quase sempre a função de documento dirigido ao cliente – “itinerário de uma descoberta, iniciação à conquista, reivindicação de apanágio”, comenta Defert em seu estudo, colocando a viagem de descoberta em algum ponto entre as cruzadas medievais e a organização do laboratório – uma maneira possível de entendermos hoje as missões jesuítico-guaranis, cruzadas de salvação dos gentios contra o fogo do inferno e a cobiça dos vizinhos, laboratórios de observação e de experimentação administrativa e social. Utopia também sonhada por muitos museus, que se tomam por salvadores da pátria das culturas ameaçadas, e laboratórios de estudo de seus resíduos, salvos graças a nós do desaparecimento, após a morte inevitável daquelas culturas (...sobre o que lamentamos, nada podemos fazer...).

Texto de Maria de Lurdes Parreiras Horta, excerto de “A Aventura dos Museus”, publicado na "Revista Porto/Vírgula" nº 25. Secretaria Municipal da Cultura - Porto Alegre. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.


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