O historiador John Waller, da Universidade Estadual de Michigan, resolveu escrever o livro "A Time to Dance, a Time to Die" quando pesquisava síndromes culturais e se deparou com referências a pragas de dança na era medieval.
HISTORIADOR DIZ QUE EPIDEMIA DE DANÇA DO SECULO XVI REVELA, OS EXTREMOS AOS QUAIS A CRENÇA E A ANGUSTIA PODEM NOS LEVAR.
Muito improvável. É assim que o historiador John Waller, da Universidade Estadual de Michigan, nos EUA, define seu próprio objeto de estudo. Em seu livro "A Time to Dance, a Time to Di e" (Tempo de Dançar, Tempo de Morrer), recém-lançado nos EUA e ainda sem tradução para o português, ele relata uma epidemia de dança ocorrida no ano de 1518, na França, que tirou a vida de dezenas de pessoas.
Improvável, mas real. A "praga" começou com uma mulher, Frau Troffea, que saiu de casa num dia qualquer e pôs-se a dançar freneticamente, sem demonstrar nenhum sinal de alegria. De vez em quando, desmoronava, exausta, apenas para retomar seu movimento sinistro algumas horas depois. Após alguns dias, a mulher foi levada à força a um templo, com os sapatos encharcados de sangue. Mas o problema só cresceu: em pouco tempo, mais de 30 pessoas haviam tomado as ruas perpetuando o transe dançarino. Em pouco mais de um mês, já eram 400. Apesar de não haver um registro exato, estima-se que pouco mais de uma centena de pessoas morreram de exaustão.
Pouco devastador, se compararmos a outras epidemias da Idade Média (a peste negra tirou a vida de cerca de 12 milhões de pessoas, quase um terço da população europeia da época). Mas muito mais bizarro.
GALILEU: Por que você decidiu escrever um livro sobre a epidemia de Estrasburgo?
JOHN WAUER: Estava pesquisando síndromes culturais, quando me deparei com referências a pragas de dança na era medieval. A princípio duvidei dos relatos: uma dança mortal parecia muito improvável. Mas, conforme cavava mais fundo, percebi que as evidências eram convincentes. Nesse ponto, já estava fisgado pela ideia de tentar explicar por que ela aconteceu.
Ficou claro que esses eram exemplos poderosos da maneira pela qual o contexto cultural pode moldar a expressão do sofrimento psicológico. Sua importância para o presente está no que elas revelam sobre os extremos aos quais a crença e a angústia podem nos levar. Mas eles também podem melhorar nosso entendimento sobre o quão diferentemente os membros de culturas distintas respondem ao medo e ao sofrimento.
GALILEU: Você escreve que químicos potentes como o esporão do centeio (fungo que ataca o cereal e pode provocar alucinações e a doença ergotismo) não poderiam causar um movimento de longa duração. Por que muitos autores defendem o esporão como a razão
das epidemias de dança?
WALLER: É curioso que a ideia ainda seja apresentada. Acho que isso acontece parcialmente devido a uma moda moderna de encontrar explicações biológicas simplórias. Especialistas consideram altamente improvável que, mesmo que o ergotismo fosse capaz de provocar a dança, as pessoas tenham respondido de maneira igual aos químicos psicotrópicos do esporão. De qualquer maneira, a manifestação mais comum do ergotismo é a restrição do fluxo sanguíneo nas extremidades, causando gangrena e morte. Se tivesse havido uma epidemia da doença em Estrasburgo, era de esperar que pelo menos uma parte significativa dos afetados morresse dessa maneira, mas não há nenhuma menção a esse fato.
GALILEU: Seu argumento é que a epidemia resultou de uma histeria devido à miséria, que se manifestou pela dança por causa do misticismo de uma sociedade que acreditava em conflitos cósmicos entre o bem e o mal. Qual o papel da dança nesse contexto?
WALLER: Os atingidos pela epidemia de 1518 ocupavam um ambiente de fé que aceitava a ameaça da praga divina, possessão ou feitiço. Eles não tinham a intenção de entrar em estados de transe, mas suas crenças sobrenaturais tornaram isso possível. Nessa área da Europa havia uma crença em uma praga de dança que podia ser enviada por São Vito. Apenas porque as pessoas já temiam esse santo foi possível que o seu estado histérico se manifestasse na forma de uma dança compulsiva e selvagem.
GALILEU: Você diz que o fim dessas epidemias está relacionado ao declínio da teologia medieval e ao início da modernidade. Mas você também afirma que a estrutura de nossos cérebros não mudou. Ainda estamos sujeitos a essas pragas?
WALLER: Erupções de histeria em massa continuam a acontecer até hoje. Na Europa, desde a metade dos anos 1700, esses eventos aconteceram em locais de administração "linha-dura" ou confinadores, como fábricas ou escolas. No presente, ainda há episódios dramáticos - embora raros e que não envolvam um estado de transe. Há também fenômenos aliados, que são abastecidos por medo e moldados por crenças populares. Nessa categoria eu colocaria epidemias de "koro", nas quais milhares de jovens se convencem de que seus pênis foram roubados ou retraídos para dentro de seus corpos sob o comando de agentes sobrenaturais malignos. Tem havido epidemias recorrentes de "koro" em partes da África e do Sudeste Asiático.
GALILEU: Você menciona o candomblé no Brasil como um exemplo de culto moderno relacionado ao transe. Como essa religião se aproxima das epidemias de dança, considerando suas diferenças?
WALLER: A maior diferença é que a praga foi involuntária. As pessoas em Estrasburgo não queriam ficar dançando, mas agiram de acordo com crenças internalizadas na fúria de uma divindade vingativa. Por isso esse fenômeno é descrito como uma histeria em massa, em vez de uma tradição religiosa cultural. Isso posto, os cultos modernos de possessão realmente lançam uma luz sobre o que aconteceu em 1518, já que estudos mostram que as pessoas estão mais propensas a experimentar um transe dissociativo se já acreditam em possessão espírita. As mentes podem ser preparadas, por meio do aprendizado ou exposição passiva, a transitar por estados alterados.
Entrevista de Juliana Tiraboschi publicada em "Galileu", Editora Globo. São Paulo, edição 211, fevereiro 2009, excertos pp. 16-17. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.