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IMAGENS DA CIDADE COLONIAL - SÉCULO XIX- RIO DE JANEIRO NO BRASIL PITORESCO

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    Resumo: partindo de uma reflexão sobre a memória social e sua construção no âmbito das relações entre Fotografia e História, este artigo procura analisar as “imagens” da cidade do Rio de Janeiro, no Brasil colonial, registradas e veiculadas pela produção fotográfica do século XIX, tomando como referência a obra paradigmática de Victor Frond e Charles Ribeyrolles intitulada Brasil pitoresco.




Fotografia e história: algumas considerações

Uma pesquisa sobre a fotografia e as exposições universais no século XIX, iniciada em 1990, fez com que identificássemos muitas outras questões relacionadas à presença da imagem fotográfica no universo cultural daquela época. Observando-se, através desse trabalho, as coleções fotográficas existentes nos arquivos públicos e instituições de pesquisa do Rio de Janeiro, bem como o material já publicado por estudiosos como Gilberto Ferrez, Boris Kossoy e Pedro Vásquez, chamou-nos a atenção a possibilidade de um estudo sobre a produção fotográfica do século XIX  e as imagens do Brasil colonial aí encontradas, com destaque para a cidade do Rio de Janeiro e a arquitetura remanescente dos séculos anteriores, registradas por fotógrafos como Victor Frond, George Leuzinger, Marc Ferrez e muitos outros. Um tema que certamente poderia trazer novos apontamentos para uma reflexão mais ampla sobre as relações entre a Fotografia como fenômeno cultural e a constituição da História como disciplina.1

      Com pouco mais de 150 anos de existência, desde o anúncio oficial de sua invenção, em 1839, a fotografia tem com a história uma relação que ainda está para ser melhor investigada. Preocupação que tem sentido nem tanto pela história da fotografia, uma vez que naquele mesmo ano essa história já começava a ser esmiuçada, ora conferindo a anterioridade de tal invento aos franceses, ora aos ingleses. Contudo, se pensarmos, por exemplo, na presença da história, como preocupação temática, na produção fotográfica de um autor ou de uma dada sociedade; ou ainda, se pensarmos na utilização da imagem fotográfica, a partir de determinada época, na construção da própria história, isto é, do conhecimento acerca dos homens e de suas relações no tempo e no espaço, então podemos afirmar com segurança que ainda temos muito o que investigar.

      O surgimento da fotografia em 1839, com sua rápida expansão pelo mundo, a partir de meados do século XIX, forneceu aos homens e mulheres daquela época uma nova percepção e uma nova vivência do tempo e do espaço de sua própria inserção social. A fotografia, empreendendo pela primeira vez por meios fotomecânicos uma certa exploração visual do espaço, estabeleceu também uma inédita relação com o tempo, categoria que se inscreve de modo inseparável na linguagem fotográfica.

      Os tempos da fotografia são muitos: tempo presente, passado e futuro; tempo de obtenção das imagens e de sua preservação; tempo apreendido e fixado pela câmara; tempo construído e resgatado através de imagens, etc. A invenção da fotografia tornou possível a captação precisa de um certo tempo que, no decorrer da segunda metade do século XIX, passou da longa exposição requerida pelo daquerreótipo à minúscula fração de um breve instantâneo. Registrando um mundo que se tornava dia a dia mais cosmopolita, com uma linguagem cada vez mais onipresente – na vida privada, na circulação de informações, nas aplicações as mais diversas –, a fotografia apresentou-se como um meio capaz de fixar o tempo para a posteridade. O que significa, como desdobramento, que a fotografia, além de revolucionar a memória individual, contribuiu de modo muito eficaz para uma certa construção da memória social, objeto da história.

     Para o historiador Jacques Le Goff, o documento deve ser encarado como “monumento” na medida em que “resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias” (grifo meu).2 Ora, no século XIX, que documento poderia atestar no futuro, melhor do que qualquer outro, a sucessão do tempo e a evolução da sociedade? A fotografia, sem dúvida. Por isto mesmo, pode-se afirmar que a força constatativa de suas imagens, preservando o passado pelo registro desse tempo na memória coletiva, passou a incidir também sobre o tempo-futuro, na medida em que a fotografia mostrava-se capaz de construir pela imagem um dado projeto de armazenamento do tempo-presente na memória coletiva das gerações futuras.

     Entendida dessa forma, a imagem fotográfica, longe de ser apenas um “registro fiel” da realidade, configura-se sobretudo como elemento de sua própria construção, representando-a visualmente. Sobre este último aspecto, o pesquisador Arlindo Machado realizou um ensaio bastante interessante, intitulado A ilusão espetacular, onde questiona exatamente o “fetiche da objetividade” construído em torno da fotografia desde o seu aparecimento.3

      Com a sucessão de tempos perpetuados pelo obturador, a fotografia contribuiu para reforçar a idéia de tempo linear e sucessivo subjacente às teorias sociais do século XIX, onde se inclui a constituição da própria história enquanto disciplina. Uma história que, por sinal, passa a afirmar sua cientificidade, entre outros meios, pela “verdade absoluta” das fontes documentais.

      Diante da transformação dos suportes da memória coletiva em documentos com valor de “prova” do tempo passado na história das sociedades, a fotografia passou a ser encarada como “testemunho” por excelência da evolução do tempo e, por extensão, das sociedades. Este fenômeno foi tão abrangente e difundido no mundo, a partir de meados do século XIX, quanto o foram as próprias imagens produzidas pela fotografia a partir de então. Contudo, as relações entre fotografia e história, em cada época e lugar, manifestam-se em sua especificidade sempre em consonância com a dinâmica própria de cada sociedade.

      Partindo destas considerações, podemos então pensar numa “preocupação com a história” a partir da produção fotográfica realizada no Brasil durante o século XIX, particularmente se observarmos que essa época assinala também o florescimento de uma produção historiográfica “nacional” que não deixou de recorrer às imagens – palpáveis e também simbólicas – na construção de uma determinada “imagem” da nação brasileira e de seu processo histórico até então.

      Neste horizonte mais amplo (o nosso “pano de fundo”) é que se pretende focalizar o objeto deste ensaio: a cidade do Rio de Janeiro e seu passado colonial, tal como isto foi visto e apresentado na segunda metade do século XIX. Em outros termos, poder-se-ia indagar como os indivíduos dessa época viram as reminiscências daquela outra época (o Brasil colonial) no espaço da cidade e de que modo a fotografia contribuiu para a produção, em tal contexto, de uma “visão” particular da cidade e de sua história.




Rio de Janeiro: imagens da cidade colonial

   O Rio de Janeiro tem algumas características importantes para o exercício desta análise sobre o papel da fotografia na construção de uma “memória da cidade”. Tendo funcionado como sede da administração colonial (a partir de 1763) e, em seguida, dos governos imperial (1822-1889) e republicano (1889-1960), a cidade combinou a condição de centro político e administrativo do país por quase dois séculos, com a posição de eixo convergente e difusor da cultura brasileira. Daí sua importância, como síntese e emblema da vida nacional.

   Por outro lado, a enorme beleza natural do Rio, sempre decantada em prosa, verso e imagens por artistas e viajantes de todas as épocas, era (e ainda é) tema constante daqueles que se dispuseram a “registrar” a cidade, o seu cenário e a sua história, do descobrimento aos dias atuais.

   Mas, curiosa ironia, tanta beleza foi também motivo para um certo desencanto com a cidade, particularmente entre aqueles que a observaram no século passado. Pois, se o Rio dos panoramas – tomados à distância – provocada exclamações e grande deslumbramento com a paisagem que se descortinava, o cenário visto de perto (e de dentro) gerou relatos, crônicas e imagens de uma cidade “atrasada” e “insalubre”, em perversa contradição com seus dotes naturais.

   Um desses observadores, o francês Charles Expilly, em sua obra Le Brésil tel qu’il est, de 1862, antes mesmo de ter se decepcionado com a falta de desembarcadouro na cidade, a “pobreza não esperada” e o “odor nauseabundo” “corrompendo” a atmosfera local, já exprimia, numa figura de linguagem, o desencanto com o contraste que dominava a paisagem local:

   Esse amontoado de campanários dourados, de torres, de tetos, de cúpulas sem caráter sério é, sem dúvida, atraente, mas não encanta o olhar. A moldura é bela demais, resplandecente demais, para que a tela tenha seu efeito.4

   Aqui é preciso destacar também o papel da arquitetura nesse contexto, entendida como elemento simbólico das relações que, ao mesmo tempo, cristalizam e renovam a interação dos homens com o espaço de sua inserção social: “mais do que só abrigar variadas funções da atividade humana, os edifícios, através de suas formas, caracterizam-se como símbolos dessas mesmas funções”5, observaram as autoras de um estudo exploratório sobre as relações entre arquitetura e fotografia, publicado na coletânea de textos organizada pela professora Annateresa Fabris e intitulada Fotografia: usos e funções no século XIX. No texto que apresentam, Maria Cristina W. de Carvalho e Silvia F.S. Wolff analisam o intercâmbio entre esses dois campos tão expressivos da vida social, numa época em que a novidade representada pela fotografia e suas variadas aplicações interagiu de modo particularmente intenso com o acelerado processo de mudanças e novas definições no campo da arquitetura.

   Nesse processo, fotografia e arquitetura tornaram-se aliadas, investigando o passado através de seus monumentos, documentando técnicas e construções do presente, explorando a paisagem natural e urbana.

   Num universo ilimitado de arquiteturas a serem fotografadas, o fotógrafo do século XIX trabalhou com diligência para construir suas imagens de acordo com o que entendia dever ressaltar: das vistas globais da paisagem, onde o edifício estava inserido, ao pequeno detalhe ornamental, é recorrente sua determinação em reproduzir e bem informar. Também no caráter dessas abordagens reside aquilo que distingue as fotografias de arquitetura do século XIX daquelas deste século. Nessas imagens mais recentes, uma mudança de sensibilidade e intenções, novas pesquisas e explorações visuais farão das formas arquitetônicas pretextos para aproximações que não visem, necessariamente, ao edifício em si .6

   No Brasil, e no Rio de Janeiro em particular, a arquitetura já estava presente na produção fotográfica desde 1840, no primeiro daguerreótipo realizado no país, pelo Abade Compte, onde o edifício do Paço Imperial aparecia como elemento central na composição da imagem.7

   Sediando o poder, recebendo estrangeiros, reunindo artistas, escritores e cientistas, a capital do Império concentrava também o maior número de fotógrafos atuantes no Brasil nos primeiros tempos da fotografia em nosso país. O que fez do Rio de Janeiro uma cidade privilegiada em matéria de quantidade, qualidade e sucessão de imagens retratando as transformações urbanas aqui verificadas.

   Em meados do século XIX, o fotógrafo francês Victor Frond, amigo do escritor Victor Hugo e igualmente proscrito pela monarquia francesa restaurada por Napoleão III, radicou-se no Rio de Janeiro. Foi quando concebeu e produziu, a partir de 1857, a edição de uma obra monumental intitulada Brasil pitoresco, apresentada como um “álbum de vistas, panoramas, paisagens, monumentos, costumes, etc., com retratos de sua majestade Imperial, photographiados por Victor Frond, litographiados pelos primeiros artistas de Paris – e acompanhados de três volumes in – 4º, sobre a história, as instituições, as cidades, as fazendas, a cultura, a colonização, etc. do Brasil...”.8

   Impressa primeiramente pela Typographia Nacional e, em seguida, numa edição primorosa, pela Imprimerie Lemercier de Paris (a oficina litográfica mais conceituada da época), os dois volumes que deixaram incompleto o grandioso projeto de Victor Frond contêm 4 retratos da Família Imperial e 74 vistas, intercaladas por minuciosas descrições da província do Rio de Janeiro e, em menor grau, da província da Bahia. A edição é bilingüe e, na versão para o português, trabalhou o jovem Machado de Assis, entre outros nomes contratados por Frond.

   As descrições apresentadas na obra são antecedidas de um tomo inteiramente dedicado à “história do Brasil”, isto é, das “primeiras velas” ao “governo constitucional” de D. Pedro II. Já o segundo tomo descreve detalhadamente a cidade e a província do Rio de Janeiro; o terceiro trata do território, população e instituições do país, com ênfase na situação das colônias e no papel da imprensa; o quarto tomo integraria o terceiro volume da publicação que, no entanto, não chegou a ser lançada.

   Num dos raros informes biográficos existentes a respeito de Victor Frond, o historiador Afonso d’ Escragnole Taunay, prefaciando a primeira reedição do livro em 1941, indica-nos que “muito se citavam outrora as páginas do seu Le Brésil pittoresque, impresso com textos em confronto, em francês e português e acompanhado pelo volumoso álbum de reproduções litografadas das excelentes fotografias de Victor Frond”.9

   De fato, o “livro-álbum” Brasil pitoresco, por sua concepção, abrangência e riqueza visual, pode ser considerado no gênero a obra mais importante realizada no Brasil na segunda metade do século XIX, só encontrando algum paralelo – quanto à ambição do projeto – no Album de vues du Brésil, realizado muitos anos mais tarde pela Imprimerie Lahure, por encomenda do Barão do Rio Branco, encarregado de divulgar na Europa (mais precisamente na Exposição Universal de Paris de 1889) imagens do Brasil produzidas por alguns dos nossos fotógrafos mais talentosos.10

   O encarregado do texto de Brasil pitoresco, convidado por Victor Frond para escrevê-lo, era o não menos proscrito escritor francês de nome Charles Ribeyrolles, “repuplicano irredutível” e “abolicionista ferventíssimo”, nas palavras de Taunay.11 A associação entre Frond, que se autodefinia “editor” da obra, e Charles Ribeyrolles, apresentado como seu “autor”, foi antes resultado de afinidades no plano pessoal e político do que motivada exclusivamente por relações profissionais e financeiras. A propósito, escreveu  o fotógrafo Victor Frond, depois da morte de seu colaborador (em junho de 1860), ter estado “desde muito associado aos trabalhos de Ribeyrolles, companheiro de suas excursões, confidente habitual de seus pensamentos”.12

   Considerados todos esses dados, não seria válido, então, estabelecermos uma correspondência entre as imagens do Rio de Janeiro criadas por Victor Frond e aquelas registradas com a pena de Charles Ribeyrolles? Não teria uma inspirado a outra, e vice-versa? Acredito que sim.

   Dentre as 74 fotografias que formam o conjunto de vistas litografadas no Brasil pitoresco, encontramos quinze imagens do Rio de Janeiro, sendo que todas elas são panoramas e vistas globais da cidade. Da Ilha das Cobras, a câmara de Victor Frond sacou o maior número de imagens: “panoramas” da entrada da baía; do morro do Castelo e Hospital Militar; da Alfândega e cais (dois); do mosteiro de São Bento; do porto na Saúde. Há também panorâmicas do Aqueduto da cidade (Arcos da Lapa), Hospital da Misericórdia, Outeiro da Glória, Quinta da Boa Vista, Hospital Dom Pedro II e ainda a entrada da barra, vista a partir do Corcovado, onde o Pão de Açúcar pode ser visto num ângulo pouco convencional e o elemento de destaque é a presença de um fotógrafo carregando sua câmera. Por fim, três cenas da cidade, registrando o Largo do Paço, a Lagoa e uma pedreira (vistas de São Cristóvão) contém alguns tipos humanos num plano mais próximo. Possivelmente esses passantes foram acrescentados ou retocados na composição da imagem com os recursos da litografia, já que o longo tempo de exposição requerido pelo processo fotográfico empregado por Frond impediam-no de tomá-los em movimento.

   Nesse conjunto de imagens, a arquitetura, herdada ou não do período colonial, aparece tão-somente “inserida” numa cidade que se expande emoldurada pelo mar e pela montanha. Os prédios não foram fotografados isoladamente, com exceção do Hospital Dom Pedro II, de fachada em estilo neoclássico, vista em perspectiva. Os demais, notadamente as igrejas que despontavam como os edifícios de maior envergadura na paisagem urbana, foram apenas enquadrados na moldura natural da cidade. Na imagem do antigo convento do Carmo – então sede do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – e prédios vizinhos (antiga Sé, Igreja da Ordem Terceira do Carmo, Hotel de France e Arco do Teles), a legenda é “Palácio Imperial do Rio de Janeiro”. Mas o Paço da cidade, propriamente dito, só aparece circunstancialmente na imagem, em uma posição (distorcida pelo litógrafo) que o edifício mal pode ser reconhecido. O chafariz do Mestre Valentim que, àquela altura, era o local onde se reuniam hordas de escravos incumbidos de cuidar do abastecimento e limpeza das casas dos senhores da cidade, não consta da imagem, embora ficasse bem perto do Paço.

   Em que pesem as limitações técnicas dos processos fotográficos da época, nas quinze imagens do Rio de Janeiro nota-se a ausência de cenas da vida urbana, particularmente quando constatamos que o mesmo Frond produziu em sua obra um dos mais belos e expressivos registros do cotidiano dos escravos nas fazendas, “uma abordagem da escravatura sem similar na história da fotografia”, como apontou o pesquisador Pedro Vazquez.13 O autor de Fotógrafos pioneiros no Rio de Janeiro ainda destaca o fato de que Victor Frond, com suas imagens, “definiu os paradigmas da fotografia de paisagem no Rio de Janeiro que seriam retomados por todos os fotógrafos que o sucederam no século XIX”.14

   Por outro lado, a visão do Rio de Janeiro compartilhada por diversos estrangeiros que aqui estiveram no século passado e tão bem retratada por Charles Ribeyrolles no Brasil pitoresco serviu igualmente como paradigma para o discurso sobre a cidade e seus problemas, questão privilegiada por muitos intelectuais da época. Por décadas, o tema da cidade apareceu inserido num discurso centrado na dicotomia “progresso x atraso” que se exacerbou, particularmente, no início do século XX, com a destruição do “atraso” representado pela cidade colonial e a edificação do “progresso”, tão bem encarnado pela metrópole afrancesada em que se transformou o Rio, com seus novos edifícios e grandes avenidas ajardinadas.

  Ribeyrolles dedicou um capítulo para “o mar”, outro para a “baía do Rio de Janeiro” e um terceiro para a “cidade”, onde então dividiu o tema nos seguintes assuntos: “edilidade pública”, “as águas”, “os esgotos”, “iluminação – circulação”, “banhos – praças – jardins públicos”; “igrejas – hospitais – palácios – teatros – monumentos”; “população”; “usos e costumes”. O deslumbramento com a natureza é lugar comum no texto. Nem é preciso insistir nesta tecla. Vejamos então a cidade propriamente dita. A primeira referência, logo no terceiro parágrafo, já é desfavorável:

   De longe em longe, nessa espécie de quadrado central que é o coração da cidade, as ruas formam ângulo reto. São estreitas, mal calçadas, em sua mor parte, e os acanhados passeios que as cercam pertencem menos aos pedestres que aos muares.15

   Se o traçado é estreito e acanhado, o paisagismo da cidade, castigada pelo calor, é igualmente precário:

    Onde achar o fresco, a brisa, a sombra? Não há árvores, não há galerias nas grandes praças. O largo do Paço, que se estende ao longo da baía, não passa de um lugar árido, calcinante, sem um arbusto, sem uma simples cobertura. Apenas o chafariz dá a sombra de um homem e o refrigério de suas águas.16

  A oposição “progresso x atraso” aparece claramente indicada ao longo de todo o capítulo sobre a cidade. Progresso – por sinal, mais reclamado do que constatado – é, por exemplo, a iluminação a gás que invade tudo: na capital do Império, o “bico irradia; o candieiro agoniza”.17
   Já o atraso... Esse aparece por todo o lado: no “esgoto que mata a cidade”, na presença da escravidão e no serviço dos “tigres” (escravos encarregados do despejo dos barris de águas servidas e matérias fecais), no serviço médico, na ausência de jardins públicos e monumentos etc. Atraso, também, é a tradição portuguesa e a arquitetura herdada do período colonial. O tom é irônico:

     Aqui, as antigas ruas conservam a sua fisionomia primitiva, até o nome profissional. São como arquivos de memória. A pedra fala, e as legendas são quase todas em português. (...) Estudai os habitos, as tradições, os costumes e, diga o que disser a Constituição, achareis por toda parte o mesmo cunho, a mesma lei. O brasileiro reina. O português governa.18

   Mais adiante, contudo, para tratar das igrejas, hospitais, palácios, teatros e monumentos, o tom é de menosprezo pela arquitetura mais expressiva da cidade:

     Por onde começar? Oratórios, capelas, igrejas. Aqui abundam os sinos. Contam-se mesmo, o que é razoável, templos protestantes. Como arquitetura, escultura, obras de arte, que haverá que estudar nessas basílicas? Elas são em geral carregadas de ouro, faustosas, ricamente dotadas. Mas nenhuma delas apresenta as grandes formas monumentais. Não se depara nelas, em pleno viço, nem a ogiva nem a linha grega.

    Nesses edifícios, a disposição e a divisão são as mesmas; e graças a essa uniformidade de plano, pode-se dizer que no Brasil – filho de Portugal – só existe uma igreja: a igreja barrominicana. Uma fachada com pequeno frontal e pórtico algumas vezes esculpido. Por cima, duas torres quadradas, demasiado baixas, que não falam ao céu, nem pela flecha, nem pelas cúpulas. Depois, ao longo da construção, a nave, que segue em varias curvas até a ábside. De um e outro lado, as capelas, sem profundeza, apenas interrompendo a linha mestra. Eis a igreja.19

   Depois de mencionar as oito freguesias do Rio e suas igrejas, sem grandes admirações, Ribeyrolles exclama um único elogio: “que esplêndido pedestal esse outeiro da Glória!”.20 Justamente a igreja que aparece centralizando uma das vistas de Victor Frond, denominada “A Glória” (há ainda um “panorama do Rio de Janeiro” onde o mosteiro de São Bento centraliza a imagem). E só.

   Com o seu conhecido anti-clericalismo, o seu menosprezo pela tradição portuguesa e pela arquitetura barroca, bem como aquele apego típico de sua época às formas neo-clássicas e ao gosto parisiense, não era difícil para Ribeyrolles concluir que “a arte não floresce no Brasil”21 e que o Rio “adormece em sua mole ociosidade de capital”.22 Por isso mesmo ele compara:

O Rio não está aberto, alargado, reformado como o velho Paris, onde os bairros históricos desaparecem e cada ano surgem novas avenidas e praças.23

   A cidade do Rio de Janeiro comparada à cidade de Paris, tal como nos é apresentada no Brasil pitoresco de Ribeyrolles e Frond, é uma imagem particularmente interessante, pois sugere, e com isto antecipa, a referência simbólica preferida pelas elites republicanas na virada do século. Com sua fúria demolidora que “botou abaixo” boa parte da herança colonial do Rio de Janeiro, transformando a capital do país numa reprodução a mais “fiel” possível da capital francesa, não foram poucos os que se utilizaram de imagens do passado para construir uma nova “versão” da cidade e de sua história que legitimasse a nova ordem estabelecida.

   O historiador Afonso Arinos de Melo Franco, escrevendo já no século XX, em uma obra que se tornaria famosa e cujo título é Desenvolvimento da civilização material no Brasil, publicada em 1944, resumiria com uma frase a imagem da cidade do Rio de Janeiro que também pode ser encontrada nos mais diversos registros produzidos desde o século passado: “uma cidade que cresceu muito e progrediu pouco”.24  Para Afonso Arinos e toda uma geração de historiadores, o Rio não deixava de ser, “como cidade higiênica e moderna, uma realização republicana”.25 Afonso Arinos referia-se, naturalmente, ao intenso processo de transformações urbanas encenado no Rio de Janeiro com a administração do prefeito Francisco Pereira Passos (1902-1906). Daí resultara o “bota-abaixo” daquela cidade de feição colonial que havia sobrevivido ao século XIX e que fora em grande parte rejeitada pelas elites republicanas, após a derrocada do regime monárquico. Daí resultara também o cenário afrancesado em que se transformara o Rio de Janeiro como capital da república oligárquica.

   Entre esses dois momentos – meados do século XIX e início do século XX – podem ser encontradas referências muito expressivas de uma certa “imagem” do Rio colonial fortemente identificada com aquelas imagens produzidas no Brasil pitoresco. Referências que se complementam, se explicam e de certo modo nos ajudam a refletir sobre o papel da fotografia, ao lado das crônicas e outros registros, na construção da história e de determinadas versões sobre a cidade e seus dilemas.


NOTAS E BIBLIOGRAFIA CITADA

1. Sobre as relações entre fotografia e história, as idéias aqui apresentadas encontram-se mais detalhadas no livro projeto de pesquisa realizado entre 1990-92 com o auxílio de uma Bolsa de Artes da Fundação Vitae (SP), posteriormente publicado com o título de Poses e trejeitos; a fotografia e as exposições na era do espetáculo (1839-1889). Rio de Janeiro: Funarte e Rocco, 1995.
2. LE GOFF, Jacques. “Documento /Monumento”. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Porto: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1984, v.1, p.103.
3. Ver MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: introdução à fotografia. Rio de Janeiro: Funarte; São Paulo: Brasiliense, 1984.
4. EXPILLY, Charles. Le Brésil tel qu’il est. Paris, 1862, p. 52. Apud MAURO, Frédéric. O Brasil no tempo de Dom Pedro II. São Paulo: Cia das Letras / Círculo do Livro, 1991, p. 14.
5. CARVALHO, M. Cristina W. de e WOLFF, Sílvia F.S. “Arquitetura e fotografia no século XIX”. In: FABRIS, Annateresa. Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: EDUSP, 1991, p. 159.
6. Idem. p. 144
7. Idem. p. 161.
8. FROND, Victor. Brasil pitoresco [texto de Charles Ribeyrolles]. Paris: Lemercier Imprimeur – Lithographe, 1861.
9. Transcrito (p. 16) na última edição do Brasil pitoresco que tem a seguinte catalogação: RIBEYROLLES, Charles. Brasil pitoresco; história, descrição, viagens, colonização, instituições; ilustrado com gravuras de vistas, panoramas, paisagens, costumes, etc. por Victor Frond; tradução e notas de Gastão Penalva; prefácio de Afonso d’E. Taunay. Belo Horizonte, Itatiaia / EDUSP, 1980, 2v. As citações de Brasil pitoresco transcritas neste trabalho foram extraídas dessa edição contemporânea.
10. ALBUM de vues du Brésil. Exécuté sous la direction de J. M. da Silva Paranhos, Baron de Rio Branco. Paris: Imprimerie A. Lahure, 1889.
11. TAUNAY, Afonso d’Escragnole – “Charles Ribeyrolles”. In: RIBEYROLLES, Charles. Op. Cit., v. 1, p. 21.
12. FROND, Victor. “Nota B”. In: RIBEYROLLES, Charles. Op. Cit., v. 2, p. 211.
13. VÁSQUEZ, Pedro. Fotógrafos pioneiros no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Dazibao: 1990, s/paginação.
14. Idem
15. RIBEYROLLES, Charles, Op. cit., v. 1, p. 183.
16. Idem, p. 190.
17. Idem, p. 189.
18. Idem, p. 207 e p. 188, respectivamente.
19. Idem, p. 194.
20. Idem, p. 195.
21. Idem, p. 195.
22. Idem, p. 185.
23. Idem, p. 207.
24. FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Desenvolvimento da civilização material no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde / SPHAN, 1944, nº 11, p. 110.
25. Idem.

Texto de Maria Inês Turazzi in "Acervo: Revista do Arquivo Nacional", vol.6, nº1-2, jan/dez 1993, p.87-98. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa


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