Intelectuais famosos nem sempre são geniais. Cometem besteiras em troca de dinheiro, adotam ideologias da moda que se revelam loucura e escrevem coisas de que depois se arrependem. Erram principalmente quando jovens, o que é de esperar. Mas alguns insistem no erro até a velhice, sustentando toda a sua obra em equívocos fundamentais. Quando entram para a história, passam por uma triagem que ao longo dos anos retira imperfeições, feitos medíocres e detalhes bizarros. Nas biografias e nos verbetes de enciclopédias, ficam somente os cachos vistosos do bom-mocismo.
É uma pena. As frutas podres contam boas histórias sobre a época e a personalidade dos artistas - além de serem bem divertidas.
1. MACHADO DE ASSIS, CENSOR DO IMPÉRIO
Machado de Assis é um tipo incomum de gênio - aquele que alcançou a fama muito antes de publicar suas grandes obras, antes mesmo de publicar os primeiros romances. Na década de 1860, quando tinha vinte e poucos anos, era um jornalista cultural respeitado e temido. José de Alencar, uma década mais velho e já escritor conceituado, chamava-o de ”o primeiro crítico brasileiro”. Contrário ao teatro francês romântico e exagerado, feito para divertir as madames dos bulevares franceses, Machado pregava que o teatro tinha ”uma missão nacional, uma missão social e uma missão humana”, e que por isso os palcos precisavam de histórias mais realistas. Sua fama como crítico feroz lhe rendeu o cargo hoje em dia odiado: agente da censura.
Machado foi censor do Conservatório Dramático, o órgão da corte do imperador dom Pedro Segundo encarregado de julgar as peças que poderiam ser levadas ao público. Entre 1862 e 1863, avaliou dezessete peças, proibindo três delas. "A Mulher Que o Mundo Respeita" não ganhou a licença porque o censor achou a comédia ”um episódio imoral, sem princípio nem fim”, ”uma baboseira”. O drama "As Conveniências" foi reprovado com uma justificativa curta que zelava os bons costumes:
Não posso dar o meu voto de aprovação ao drama "As Conveniências". Tais doutrinas se proclamam nele, tal exaltação se faz da paixão diante do dever, tal é o assunto, e tais as conclusões, que é um serviço à moral proibir a representação desta peça. E se o pudor da cena ganha com essa interdição, não menos ganha o bom gosto, que não terá de ver à ilharga de boas composições esta que é um feixe de incongruências, e nada mais.
No artigo ”Machado de Assis, leitor e crítico de teatro”, o professor João Roberto Faria, da Universidade de São Paulo, detalha as regras que Machado de Assis tinha que seguir em seu trabalho de censor. O conservatório pedia aos censores que barrassem as peças baseados em dois motivos. Primeiro, se a história tivesse assuntos e expressões que ferissem o decoro, pois era preciso garantir que ”pudesse a Imperial Família honrar com a Sua Presença o espetáculo”, como regia uma norma do conservatório.
Segundo, deveria barrar as peças contrárias à religião e às autoridades brasileiras. Para Machado, isso era pouco. Numa crônica de 1860, ele defende que os censores deveriam ter o poder de ser ”uma muralha de inteligências às irrupções intempestivas que o capricho quisesse fazer no mundo da arte, às bacanais indecentes e parvas que ofendessem a dignidade do tablado”.
Como não tinha esse direito, o escritor foi obrigado a aprovar várias peças em que não viu mérito literário algum. Claro que não fez isso sem esbravejar contra os autores. O estilo de alguns de seus pareceres mostra que, se pudesse, Machado censuraria mais.
O melhor exemplo é a avaliação de Clermont ou "A Mulher do Artista". O escritor teve que dar ok à história, que não pecava ”contra os preceitos da lei”, apesar de considerá-la ”uma dessas banalidades literárias que constituem por aí o repertório quase exclusivo dos nossos teatros”.
A censura que Machado de Assis gostaria de praticar era ainda mais cruel do que aquela que lhe era permitida, já que submeteria autores aos julgamentos particulares do censor. (Se bem que, com tanta peça ruim nos teatros hoje em dia, até que um censor como Machado de Assis não seria
nada mal.)
2. JOSÉ DE ALENCAR CONTRA A ABOLIÇÃO
Em 1867, José de Alencar publicou a série "Ao Imperador: Novas Cartas Políticas de Erasmo". São sete cartas abertas dirigidas a dom Pedro Segundo, das quais três tratam abertamente da defesa da escravidão negra no Brasil. O escritor era então deputado no Rio de Janeiro, eleito pelo Ceará, e tentava convencer dom Pedro Segundo a deixar de insistir na abolição dos escravos. O imperador fazia uma grande pressão pelo fim do comércio humano — ameaçava até desistir do trono se os parlamentares não votassem pelo fim dos cativeiros. Depois que a liberdade dos escravos se tornou uma conquista obviamente justa, a série de cartas de Alencar desapareceu. Não entrou na obra completa do escritor, publicada em 1959 pela editora Nova Aguilar. Até serem redescobertas em 2008, pelo historiador paulista Tâmis Parron, ficaram 140 anos adormecidas.
O curioso é que os motivos de Alencar contra a abolição parecem mais simpáticos aos negros que os argumentos em favor da liberdade. Nos discursos pró e contra a escravidão do século 19, os parlamentares se baseavam em razões que hoje parecem loucura. Nenhum negro gostaria de ouvir, por exemplo, o argumento abolicionista de que os africanos formavam uma raça inferior e por isso era necessário parar imediatamente de traze-los ao Brasil, para que não prejudicassem o futuro do país. Já os defensores da escravidão tinham razões politicamente corretas.
O mais conhecido deles, o senador Bernardo de Vasconcelos, dizia que a África civilizava o Brasil, portanto a imigração de negros africanos enriquecia a cultura brasileira. A argumentação de José de Alencar vai nessa linha. Ele não defende o sistema escravocrata por achar que os negros tinham um cérebro pior ou eram menos dotados por Deus, mas porque vê neles um grande potencial de crescimento e auxílio no progresso do país. Chega a citar negros ilustres da história brasileira, como Henrique Dias, herói da expulsão dos holandeses em Pernambuco. ”Sem a escravidão africana e o tráfico que a realizou, a América seria hoje um vasto deserto”, diz Alencar na segunda carta ao imperador. ”Três séculos durante, a África despejou sobre a América a exuberância de sua população vigorosa.”
De acordo com José de Alencar, toda nova civilização da história floresceu por meio da escravidão de civilização decadente. O trabalho forçado seria uma ”educação pelo cativeiro”, ou seja, um modo de tirar indivíduos da selva e dar-lhes a acesso a instrução. O escravo, durante anos de servidão, iria adquirir qualidades morais suficientes para ser um novo membro da sociedade. Como mostra desse fenômeno, Alencar cita o alto número de escravos alforriados no Brasil que compravam a liberdade ou a ganhavam de presente. Ele afirma:
Se a escravidão não fosse inventada, a marcha da humanidade seria impossível, a menos que a necessidade não suprisse esse vínculo por outro igualmente poderoso. Desde que o interesse próprio de possuir o vencido não coibisse a fúria do vencedor, ele havia de imolar a vítima. Significara, portanto, a vitória na Antigüidade uma hecatombe; a conquista de um país, o extermínio da população indígena.
Desde as origens do mundo, o país centro de uma esplêndida civilização é, no seu apogeu, um mercado, na sua decadência, um produtor de escravos. O Oriente abasteceu de cativos a Grécia. Nessa terra augusta da liberdade, nas ágoras de Atenas, se proveram desse traste os orgulhosos patrícios de Roma. Por sua vez, o cidadão rei, o civis romanus, foi escravo dos godos e hunos.
Modernamente, os povos caminham pela indústria. São os transbordamentos das grandes nações civilizadas que se escoam para as regiões incultas, imersas na primitiva ignorância. O escravo deve ser, então, o homem selvagem que se instrui pelo trabalho. Eu o considero nesse período como o neófito da civilização.
Muita gente considera importante preservar os costumes nacionais contra a influência estrangeira. Alencar e seus colegas do Partido Conservador usam esse argumento para defender a exploração dos negros. A escravidão, para eles, fazia parte da tradição brasileira - era importante para a identidade nacional. Por essa razão, o país não deveria ceder às pressões abolicionistas da França e da Inglaterra, as duas grandes potências da época. Alencar pede a dom Pedro Segundo que pare de se preocupar com a opinião internacional e valorize as instituições brasileiras. ”São muitos os cortejos que já fez a coroa imperial à opinião europeia e Americana. Reclama sério estudo cada um destes atos, verdadeiros golpes e bem profundos, na integridade da nação brasileira.” Dom Pedro Segundo deveria ter respondido assim: deixar o patriotismo de lado e aceitar a influência estrangeira pode salvar um país de costumes bárbaros.
3. AS TRÊS PAIXÕES DE JORGE AMADO
Quando tinha 28 anos, o baiano Jorge Amado conseguiu defender, ao mesmo tempo, dois dos maiores tiranos do século 20: Adolf Hitler e Josef Stálin. O escritor da baianidade, do cacau e da morena subindo no telhado era comunista de carteirinha desde que foi ao Rio de Janeiro estudar direito. Ele fez propaganda do nazismo em 1940, meses depois de a Alemanha e a União Soviética fecharem um pacto de não agressão. Naquela época, quem não era bobo sabia dos planos de Hitler - a Alemanha já tinha invadido a Polônia e aos poucos conquistava Bélgica, Holanda, Dinamarca, Noruega e França. Mesmo assim, Amado virou redator da página de cultura do Meio-Dia, então jornal de propaganda nazista no Brasil. Não que o escritor se identificasse com a doutrina de Hitler - a questão provavelmente era financeira. Jorge Amado devia escrever o que lhe pagassem, fosse comunista, nazista ou Americano. Durante o emprego no jornal dos alemães, tentou convencer colegas para que trabalhassem para Hitler. No livro "Os Dentes do Dragão", Oswald de Andrade conta:
Em 1940 Jorge convidou-me no Rio para almoçar na Brahma com um alemão altamente situado na embaixada e na agência Transocean, para que esse alemão me oferecesse escrever um livro em defesa da Alemanha. Jorge, depois me informou que esse livro iria render-me 30 contos. Recusei, e Jorge ficou surpreendido, pois aceitara várias encomendas do mesmo alemão.
O escritor baiano logo pulou fora do nazismo, mas manteve a paixão pelo sorriso de Stálin uma década mais. Em 1951, escreveu "O Mundo da Paz", um livro inteirinho para adular Stálin e os países socialistas.
Nessa época, quem não era bobo já tinha ouvido falar dos expurgos e das execuções em massa cometidas pelo líder soviético. Mesmo assim, o escritor baiano chamou um dos ditadores mais cruéis do século 20, cuja truculência resultou na morte e no martírio de milhões de pessoas, de ”sábio dirigente dos povos do mundo na luta pela felicidade do homem sobre a Terra”. Décadas depois, em suas memórias, admitiu que fez vista grossa para os problemas soviéticos quando criou "O Mundo da Paz":
Tarefa política, de volta da União Soviética e dos países de democracia popular do Leste Europeu, escrevo livro de viagens, o elogio sem vacilações do que vi, tudo ou quase tudo parece-me positivo, stalinista incondicional silenciei o negativo como convinha. Para falar da Albânia plagiei titulo de Hemingway: A Albânia é uma festa.
Famoso até no mundo soviético, onde suas obras comunistas tiveram mais de 10 milhões de cópias, Jorge Amado renegou, em 1956, a obra que adulou Stálin. Nesse ano, já estava difícil jogar os crimes do homem para baixo do tapete. Mas até o fim da vida insistiu no nacionalismo e no regionalismo. No livro "Navegação de Cabotagem", Jorge Amado mostra por que admirava o líder político baiano Antônio Carlos Magalhães:
No caso de Toninho, ele é a Bahia, cara e entranhas, ou seja, o sim e o não. No político e administrador duas coisas sobretudo me seduzem: a sua qualidade intrínseca de baiano. Toninho é baiano antes de tudo, e seu permanente interesse pela cultura, comprovado, verdadeiro.
4. O FRANGO DE GRACILIANO RAMOS
Bons colunistas de jornal costumam comentar tendências, avaliar episódios e fornecer aos leitores previsões coerentes sobre o futuro do país. O alagoano Graciliano Ramos não era hábil nessas tarefas. Numa crônica de 1921, o autor de Vidas Secas defendeu que o futebol era uma moda passageira que jamais pegaria no Brasil. Acreditava que o esporte combinava com a personalidade ”bronca” do brasileiro:
Mas por que o 'football'?
Não seria, porventura, melhor exercitar-se a mocidade em jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo? Não é que me repugne a introdução de coisas exóticas entre nós. Mas gosto de indagar se elas serão assimiláveis ou não.
No caso afirmativo, seja muito bem vinda a instituição alheia, fecundemo-la, arranjemos nela um filho híbrido que possa viver cá em casa. De outro modo, resignemo-nos às broncas tradições dos sertanejos e dos matutos. Ora, parece-nos que o football não se adapta a estas boas paragens do cangaço. É roupa de empréstimo, que não nos serve.
Quando Graciliano escreveu a crônica, já havia diversos clubes de futebol no país, mas o esporte ainda demoraria alguns anos para ganhar popularidade. A imagem do Brasil como terra do futebol surgiria só a partir da Copa de 1950, quando a seleção perdeu a final, no Maracanã, para o Uruguai. Na década de 1920, porém, o futebol ainda era uma atividade estrangeira e elitista como o turfe.
Para que um costume intruso possa estabelecer-se definitivamente em um país, é necessário não só que se harmonize com a índole do povo que o vai receber, mas que o lugar a ocupar não esteja tomado por outro mais antigo, de cunho indígena.
É preciso, pois, que vá preencher uma lacuna, como diz o chavão. [...]
Estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho. O football, o boxe, o turfe, nada pega.
Na mesma crônica, o escritor patriota ainda pediu aos jovens que esquecessem o esporte e resgatassem, em nome da cultura brasileira, atividades nacionais que andavam esquecidas, como a queda de braço e a rasteira. Isso mesmo, a rasteira. A sugestão de Graciliano produz involuntariamente um efeito irônico:
Reabilitem os esportes regionais que aí estão abandonados: o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada e, melhor que tudo, o cambapé, a rasteira.
A rasteira! Este, sim, é o esporte nacional por excelência!
5. GILBERTO FREYRE ADMIRAVA A KU KLUX KLAN
Quando publicou Casa-Grande e Senzala, em 1933, o escritor e antropólogo Gilberto Freyre provocou uma revolução: defendeu que os mestiços, até então considerados a causa dos problemas do país, eram na verdade uma agradável particularidade dos brasileiros. Foi uma reviravolta para ele próprio. Antes de publicar sua obra-prima, o pernambucano, assim como os colegas mais velhos, torcia pelo gradual embranquecimento dos brasileiros.
O antropólogo afirmou, por exemplo, que o Brasil deveria seguir a Argentina e clarear a população. ”Temos muito que aprender com os vizinhos do Sul”, escreveu ao resenhar o livro "Na Argentina", de Oliveira Viana, um dos grandes defensores da eugenia no Brasil. ”Parece que neste ponto a República do Prata leva decidida vantagem sobre os demais países americanos. Em futuro não remoto sua população será praticamente branca.” Ele também reclama, num artigo escrito para o "Diário de Pernambuco" em 1925, das regiões ”contaminadas pelo sangue negro”, onde ”o mata-borrão ariano dificilmente chupa, apenas atenua, o colorido das muitas manchas escuras”. E torce para que o sangue ”da raça superior” predomine no país.
Em "Vida Social no Brasil nos Meados do Século 19", sua dissertação de mestrado apresentada na Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos, em 1922, há afirmações ainda mais comprometedoras. No trabalho acadêmico, o brasileiro elogiou o esforço dos ”cavalheiros da Ku Klux Klan Americana” — grupo que naquela época já executava negros -, chamando-os de ”uma espécie de maçonaria guerreira” criada pelos sulistas americanos contra a humilhação imposta pelo norte. Em 1964, quando a dissertação foi republicada, os trechos condescendentes à KKK foram retirados. Nessa ocasião, Freyre divulgou o estudo como o embrião de "Casa-Grande e Senzala".
O elogio à Ku Klux Klan não é, na verdade, tão incoerente com "Casa-Grande e Senzala". Gilberto Freyre tinha saudade do modo aristocrático de viver. Para a historiadora Maria Lúcia Pallares-Burke, autora de Gilberto Freyre, um "Vitoriano nos Trópicos", o elogio à Ku Klux Klan era mais uma defesa da cultura tradicional do Sul dos Estados Unidos.
O antropólogo lamentava a decadência dos hábitos sulistas, para ele uma ”coisa deliciosa”, onde ”havia lazer, havia fausto, havia escravos e havia maneiras gentis” antes de ser destruído pelo Norte industrial. Aqueles que defendiam a cultura tradicional, afirma a historiadora, ”se solidarizavam com instituições ou atitudes que se apresentavam como regeneradoras de um passado valioso, não questionando, muitas vezes, os métodos execráveis utilizados para essa regeneração”. Gilberto Freyre tinha uma melancolia similar quando pensava no desaparecimento das tradições de Pernambuco - o que preocupa muitos pernambucanos ainda hoje. Achava que o estado vivia ”o triste fim de uma aristocracia” reinante numa época em que os negros eram ”fiéis”. A saudade dos velhos costumes foi fundamental para ele enxergar a escravidão brasileira como um regime mais ”adocicado” que o de outros países - o que teria feito do Brasil um lugar mais propenso à mestiçagem.
6. GREGÓRIO DE MATOS ERA UM DEDO-DURO
O poeta barroco Gregório de Matos e Guerra, o ”Boca do Inferno”, é conhecido pelos poemas satíricos com que esbravejava contra líderes e políticos da Bahia. Ele publicava folhas volantes, tipo de panfletos do século 17, repletas de ofensas e palavrões. Para o governador Antônio Luís, por exemplo, ele escreveu:
"Sal, cal, e alho
caiam no teu maldito caralho. Amém.
O fogo de Sodoma e de Gomorra
em cinza te reduzam essa porra. Amém.
Tudo em fogo arda,
Tu, e teus filhos, e o Capitão da Guarda".
Peças como essa renderam a Gregório de Matos a imagem de um artista libertino. A fama que ele tem hoje, sobretudo na Bahia, lembra a de um escritor beatnik, um revolucionário que transgrediu padrões morais da época e teve coragem de remexer nos segredos da elite baiana. Atribui-se a Gregório de Matos a defesa dos negros e pobres, o que fica muito perto de considerá-lo um herói nacional-popular, um ícone da ”baianidade”.
Ninguém sabe se as peças atribuídas a Gregório de Matos são mesmo de sua autoria. Nos anos seiscentos, o conceito de indivíduo criador não estava bem assentado. A arte barroca era um estilo coletivo: plágios eram comuns e aceitáveis, e os artistas ligavam pouco para assinar as obras. A autoria, assim como a inovação introduzida pelo artista, só ganharia importância mais de um século depois, com os poetas românticos. É provável que, quando seus textos foram compilados, no século 18, boa parte da sátira baiana tenha sido considerada obra sua.
De qualquer modo, os poemas satíricos atribuídos a Gregório de Matos têm muito pouco de libertino. Em 1989, o crítico literário João Adolfo Hansen, da Universidade de São Paulo, defendeu que essa fama do Boca do Inferno diz mais sobre a Bahia de hoje que a do século 17. No livro "A Sátira e o Engenho", o crítico mostra que o poeta odiava negros, pobres, índios e judeus - o que era esperado de um fidalgo do reino português daquela época. Escreveu o pesquisador:
Ao contrário do que algumas interpretações contemporâneas vêm propondo, a sátira barroca produzida na Bahia não é oposição aos poderes constituídos, ainda que ataque violentamente membros particulares desses poderes, muito menos transgressão libertadora de interditos morais e sexuais.
Entre os poemas atribuídos a Gregório de Matos, vários atacam judeus e negros. Em "Milagres do Brasil São", ele afirma que ser mulato é ”ter sangue de carrapato”. Em outra peça, diz que ”de mulata sai mula, como de mula mulata”. Um dos seus alvos preferidos são os falsos cristãos-novos. Trata-se dos judeus que por força da perseguição religiosa se converteram ao catolicismo só na aparência, seguindo com os costumes judaicos dentro de casa. Como neste trecho de ”O burgo”:
"Quantos com capa cristã
professam o judaísmo
mostrando hipocritamente
devoção às leis de Cristo".
Outro poema trata o "Galileu requerente" como um cão que merece levar pedradas:
"Latis, e cuidais, que eu morro
de ouvir o vosso latir,
e eu zombo de vê-lo ouvir,
porque quem late, é cachorro:
vós latis, e eu me desforro
dando-vos estas pedradas,
que quando um cão nas estradas
late ao manso caminheiro,
assentando-lhe o cacheiro
deixa as partes sossegadas."
O crítico João Adolfo Hansen comparou a sátira atribuída a Gregório de Matos às denúncias secretas à Inquisição, muito comuns naquela época. Desde 1591, a Bahia abrigou agentes do Santo Ofício, incumbidos de condenar bruxas, homossexuais, judeus e hereges em geral.
Na Europa, a condenação incluía ser queimado nas enormes fogueiras que marcaram o fim da Idade Média. Mesmo sem ordenar fogueiras humanas no Brasil, os padres inquisidores espalhavam o terror. Quando apareciam, os cidadãos corriam até eles para fazer denúncias contra hereges, na tentativa de parecer bons católicos e livrar a própria barra. Qualquer atitude incomum era motivo para delação, como usar azeite para fritar comida. Os católicos do século 16 também viam com maus olhos tomar banho na sexta-feira, cruzar as pernas na igreja e ler a Bíblia em espanhol - coisa dos luteranos, já que os católicos só tinham o livro sagrado em latim.
As delações à Inquisição eram anônimas, mas tinham uma contrapartida pública: os poemas satíricos. Assim como as denúncias religiosas, os textos ao estilo Gregório de Matos atacavam desvios de conduta, procuravam punir pecadores, conter vícios e proteger a tradição católica dos rituais pagãos. Uma mostra disso é que os autores denunciam também mulheres que consideram promíscuas. Um poema critica uma tal de Luzia por causa de seus desejos sexuais: a moça quer que um amigo lhe dê ”quatro investidas - duas de dia e duas de noite”. Outro fala de Brazia de Calvário, ”outra mulata meretriz” que foi pega fazendo sexo com um frade. Beatos muito fofoqueiros esses poetas que ganharam o nome de Gregório de Matos.
Texto de Leandro Narloch em "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil", Editora Leya, São Paulo, 2009, excertos pp. 70-86. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.