OTIMISMO VERSUS PESSIMISMO
Platão - que entendeu possivelmente a formação da mente humana melhor do que alguns de nossos contemporâneos, que desejam suas crianças expostas apenas a pessoas e acontecimentos cotidianos "reais" - sabia o quanto as experiências intelectuais contribuem para a verdadeira humanidade. Ele sugeriu que os futuros cidadãos de sua república ideal começassem sua educação literária com a narração dos mitos, em vez de meros fatos ou os ditos ensinamentos racionais. Mesmo Aristóteles, mestre da razão pura, disse: "O amigo da sabedoria é também um amigo do mito".
Os pensadores modernos que estudaram os mitos e os contos de fadas de um ponto de vista filosófico ou psicológico chegaram à mesma conclusão, independente da sua persuasão original. Mircea Eliade, por exemplo, descreve estas estórias como "modelos para o comportamento humano (que), devido a este mesmo fato, dão significação e valor à vida". Traçando paralelos antropológicos, ele e outros sugerem que os mitos e contos de fadas se derivam de, ou dão expressão simbólica a, ritos de iniciação ou outros 'rites de passage' - tais como a morte metafórica de um velho e inadequado eu para renascer num plano mais elevado de existência. Ele sente que esta é a razão destes contos encontrarem uma necessidade sentida de modo intenso e serem transmissores de tanto significado profundo.
Outros investigadores, com uma orientação psicológica profunda, enfatizam as semelhanças entre os acontecimentos fantásticos dos mitos e contos de fadas e os dos sonhos e devaneios adultos - a realização de desejos, a vitória sobre todos os competidores, a destruição de inimigos - e concluem que um atrativo desta literatura é que ela exprime o que normalmente impedimos de chegar à consciência. 10
Há, de certo, diferenças bem significativas entre os contos de fadas e os sonhos. Por exemplo, nos sonhos, com maior frequência a satisfação de desejos é disfarçada, enquanto nos contos de fadas é expressa abertamente. Em um grau considerável, os sonhos são o resultado de pressões internas que não; encontraram alívio, de problemas que bloqueiam uma pessoa, para os quais ela não conhece nenhuma solução e para os quais os sonhos não encontram nenhuma. O conto de fadas faz o oposto: ele projeta o alívio de todas as pressões e não só oferece formas de resolver os problemas, mas promete uma solução "feliz" para eles.
Nós não podemos controlar o que se passa em nossos sonhos. Embora nossa censura interna influencie o que podemos sonhar, este controle ocorre num nível inconsciente. O conto de fadas, por outro lado, em grande parte resulta do conteúdo comum consciente e inconsciente tendo sido moldado pela mente consciente, não de uma pessoa em especial, mas do consenso de várias a respeito do que consideram problemas humanos universais, e o que aceitam como soluções desejáveis. Se todos estes elementos não estivessem presentes num conto de fadas, ele não seria recontado por gerações e gerações. Só quando um conto de fadas satisfazia as exigências conscientes e inconscientes de muitas pessoas ele era recontado repetidamente e ouvido com grande interesse. Nenhum sonho poderia despertar tal interesse persistente, a menos que fosse forjado em mito, como a estória dos sonhos do faraó interpretada por José na Bíblia.
Há uma concordância geral de que mitos e contos de fadas falam-nos na linguagem de símbolos representando conteúdos 'in sempre' traduzidos em termos iniciatórios. Ora, isto me parece de importância primordial: desde o tempo - que é tão difícil determinar - em que os contos de fadas tomaram forma enquanto tais, os homens, tanto primitivos como civilizados, escutaram-nos com um prazer suscetível de repetição indefinida. Isto equivale dizer que os cenários iniciatórios - mesmo camuflados como o são nos contos de fadas exprimem um psicodrama que responde,a uma necessidade profunda do ser humano. Todo homem deseja experimentar certas situações perigosas, confrontar-se com provas excepcionais, entrar à sua maneira no Outro Mundo - e ele experimenta tudo isto, no nível de sua vida imaginativa, ouvindo ou lendo contos de fadas" conscientes. Seu apelo é simultâneo à nossa mente consciente e inconsciente, a todos os seus três aspectos - id, ego e superego - e à nossa necessidade de ideais de ego também. Por isso é muito eficaz; e no conteúdo dos contos, os fenómenos internos psicológicos recebem corpo em forma simbólica.
Os psicanalistas freudianos se preocupam em mostrar que tipo de material reprimido ou de outro modo inconsciente está subjacente nos mitos e contos de fadas, e como estes se relacionam aos sonhos e devaneios. 11
Os psicanalistas jungianos frisam, em acréscimo, que as figuras e os acontecimentos destas estórias estão de acordo com (e por conseguinte representam) fenómenos psicológicos arquetípicos, e simbolicamente sugerem a necessidade de ganhar um estado mais elevado de autoconfiança - uma renovação interna que é conseguida à medida que as forças pessoais e raciais inconscientes tornam-se disponíveis para a pessoa. 12
Não existem apenas semelhanças essenciais entre os mitos e os contos de fadas; há também diferenças inerentes. Embora as mesmas figuras exemplares e situações se encontrem em ambos, e acontecimentos igualmente miraculosos ocorram nos dois, há uma diferença crucial na maneira como são comunicados. Colocado de forma simples, o sentimento dominante que um mito transmite é: isto é absolutamente singular; não poderia acontecer com nenhuma outra pessoa, ou em qualquer outro quadro; os acontecimentos são grandiosos, inspiram admiração e não poderiam possivelmente acontecer a um mortal comum como você ou eu. A razão não é tanto que os eventos sejam miraculosos, mas porque são descritos assim. Em contraste, embora as situações nos contos de fada sejam com frequência inusitadas e improváveis, são apresentadas como comuns, algo que poderia acontecer a você ou a mim ou à pessoa do lado quando estivesse caminhando na floresta. Mesmo os mais notáveis encontros são relatados de maneira casual e cotidiana.
Uma diferença ainda mais significativa entre estas duas espécies de estória é o final, que nos mitos é quase sempre trágico, enquanto sempre feliz nos contos. Por esta razão, algumas das estórias mais conhecidas, encontradas nas coleções de contos de fadas, não pertencem realmente a esta categoria. Por exemplo, " A Menina dos Fósforos" e "O Soldadinho de Chumbo" de Hans Christian Andersen, são lindos mas extremamente tristes: eles não transmitem o sentimento de consolo final característico dos contos de fadas. "A Rainha de Neve" de Andersen, por outro lado, está perto de ser um verdadeiro conto de fadas.
ò mito é pessimista, enquanto a estória de fadas é otimista, mesmo que alguns traços sejam terrivelmente sérios. É esta diferença decisiva que separa o conto de fadas de outras estórias nas quais igualmente ocorrem coisas fantásticas, que o resultado seja feliz devido às virtudes do herói, à sorte, ou à interferência de figuras sobrenaturais.
Os mitos tipicamente envolvem solicitações de superego em conflito com uma ação motivada pelo id, e com os desejos autopreservadores do ego. Um mero mortal é muito frágil para enfrentar os desafios dos deuses. Paris, que satisfaz as ordens de Zeus da forma como foram transmitidas a ele por Hermes, e obedece à solicitação das três deusas escolhendo qual terá a maçã, é destruído por ter seguido estas ordens, como inúmeros outros mortais no despertar desta escolha fatídica.
Por mais arduamente que tentemos, não podemos viver integralmente de acordo com o que o superego, como representado nos mitos pelos deuses, parece solicitar-nos. Quanto mais tentamos agradá-lo, tanto mais implacáveis são suas solicitações. Mesmo quando o herói não sabe que cedeu aos aguilhões de seu id, ainda assim ele sofre horrivelmente por isto. Quando um mortal incorre no descontentamento de um deus sem ter feito qualquer coisa de errado, ele é destruído por estas supremas representações de superego. O pessimismo dos mitos é soberbamente exemplificado no paradigmático mito da psicanálise, a tragédia de Édipo.
O mito de Édipo, particularmente quando bem desempenhado no palco, desperta poderosas reações intelectuais e emocionais no adulto - de tal forma que pode provocar uma catarse, como ensinou Aristóteles sobre o que uma tragédia faz. Depois de ver Édipo, um espectador pode-se espantar quanto à razão de estar tão profundamente comovido; e respondendo ao que observa como sua reação emocional, ruminando sobre os eventos míticos e sobre o que estes significam para uma pessoa poder chegar a tornar claros seus pensamentos e sentimentos. Com isto, certas tensões internas, que são a consequência de situações passadas há muito, podem ser aliviadas; um material previamente inconsciente pode então entrar na consciência da pessoa e tornar-se acessível a uma elaboração consciente. Isto pode acontecer se o observador é profundamente mobilizado emocionalmente pelo mito, e ao mesmo tempo está motivado intelectualmente de modo intenso para entendê-lo.
O fato de vivenciar de modo vicarial o que aconteceu a Édipo, o que ele disse e o que sofreu, pode permitir ao adulto trazer sua compreensão madura àquilo que até então permaneciam ansiedades infantis, preservadas intactas sob forma infantil na mente inconsciente. Mas esta possibilidade existe apenas porque o mito se refere a situações que ocorreram nas épocas mais distantes, já que os anseios e ansiedades edípicas do adulto pertencem ao passado mais obscuro de sua vida. Se o significado subjacente de um mito fosse decifrado e apresentado como um fato que poderia ter acontecido na vida consciente de uma pessoa adulta, então isto aumentaria muito as velhas ansiedades, e resultaria em repressão mais profunda.
Um mito não é um conto admonitório como uma fábula, que despertando ansiedade impede-nos de agir segundo formas que são descritas como danificantes para nós. O mito de Édipo nunca é vivenciado como uma advertência para não nos prendermos a uma constelação edípica. Se a gente nasceu e foi criado como filho de dois pais, os conflitos edípicos são inevitáveis.
O complexo de Édipo é o problema crucial da infância - a menos que a criança permaneça fixada num estágio mais primário de desenvolvimento, tal como o estágio oral. Uma criancinha fica completamente envolvida num conflito edípico enquanto realidade inevitável de sua vida. Uma criança mais velha, de cerca de cinco anos para diante, está lutando para desembaraçar-se disso, em parte reprimindo o conflito, em parte resolvendo-o através de ligações emocionais com outras pessoas e, em parte, sublimando-o. O que uma criança menos necessita é ter seus conflitos edipicos ativados por um tal mito. Suponhamos que a criança ainda deseja ativamente, ou mal reprimiu o desejo de livrar-se de um dos pais de modo a ter o outro exclusivamente; se ela é exposta - mesmo que seja apenas de uma forma simbólica - à idéia de que por destino, sem saber, uma pessoa pode matar um dos pais e casar-se com o outro, então aquilo com que a criança brincou apenas em fantasia assume subitamente uma realidade pavorosa. A consequência desta exposição só pode ser a de aumentar a ansiedade sobre si mesmo e sobre o mundo.
Uma criança não sonha apenas em desposar o pai do outro sexo, mas ativamente entrelaça fantasias em torno disso. O mito de Édipo conta o que acontece quando este sonho se torna realidade - e a criança ainda não pode abandonar fantasias de desejo de desposar um dos pais em algum tempo futuro. Depois de ouvir o mito de Édipo, a conclusão na mente da criança só poderia ser a de que semelhantes coisas horríveis - a morte de um dos pais e a própria mutilação - acontecerão a ela.
Nesta idade, desde os quatro até a puberdade, o que a criança mais necessita é que lhe sejam apresentadas imagens simbólicas que a reassegurem da existência de uma solução feliz para seus problemas edípicos - embora ela possa achar difícil acreditar nisso - desde que ela lentamente trabalhe no sentido de sair deles. Mas o reasseguramento acerca de uma saída tem que vir primeiro, porque somente então a criança terá a coragem de lutar confiantemente para se desembaraçar de sua situação edípica.
Na infância, mais do que em qualquer outra idade, tudo está em transformação. Enquanto não conseguirmos considerável segurança dentro de nós mesmos, não podemos nos comprometer em lutas psicológicas difíceis, a menos que uma saída positiva nos pareça segura, quaisquer que sejam as oportunidades que para isto a realidade apresente. O conto de fadas oferece materiais de fantasia que sugerem à criança sob forma simbólica o significado de toda batalha para conseguir uma auto-realização, e garante um final feliz.
Os heróis míticos oferecem excelentes imagens para o desenvolvimento do superego, mas as exigências que eles incorporam são tão rigorosas que desencorajam a criança nos seus esforços inexperientes para adquirir uma integração da personalidade. Enquanto o herói mítico vivencia uma transfiguração para a vida eterna no céu, exatamente como o resto da humanidade, alguns contos de fadas concluem com a informação de que, se por um acaso não morreu, o herói ainda deve estar vivo. Assim, uma existência feliz embora comum é projetada pelos contos de fadas como o resultado das provações e tirbulações envolvidas nos processos normais de crescimento.
Na verdade, estas crises psicossociais de crescimento são enfeitadas imaginativamente, e simbolicamente representadas nos contos de fadas como encontros com fadas, bruxas, animais ferozes ou figuras de inteligência e astúcia sobre-humanas - mas a humanidade essencial do herói, apesar de suas estranhas experiências, é afirmada pela lembrança de que ele terá que morrer como qualquer um de nós. Quaisquer que sejam os acontecimentos estranhos que o herói do conto de fadas, vivencie, eles não o tornam sobre-humano, como ocorre com o herói mítico. Esta humanidade real sugere à criança que, seja qual for o conteúdo do conto de fadas, não são mais que elaborações fantasiosas e exageradas das tarefas com que ele tem que se defrontar, dos seus medos e esperanças.
Embora o conto de fadas ofereça imagens simbólicas fantásticas para a solução de problemas, a problemática apresentada é comum: uma criança sofrendo ciúmes e discriminação de seus irmãos, como Borralheira; uma criança que é considerada incompetente por um de seus pais, como acontece em vários contos de fadas - por exemplo, na estória dos Irmãos Grimm, "O gênio da garrafa". Além disso, o herói do conto de fadas vence estes problemas exatamente aqui na terra, e não por alguma recompensa colhida no céu.
A sabedoria psicológica dos tempos responde pelo fato de cada mito ser a estória de um herói particular: Teseu, Hércules, Beoulfo, Brunhilda. Não só estes personagens míticos têm nomes, mas também nos são ditos os nomes de seus pais e de outras figuras principais no mito. Não funcionaria chamar o mito de Teseu de "O homem que imolou o touro" ou o de Niobe como "A mãe que teve sete filhas e sete filhos".
O conto de fadas, em contraste, torna claro que fala de cada homem, pessoas muito parecidas conosco. Os títulos típicos são "A bela e a fera", "O conto de fada de alguém que partiu para conhecer o medo". Mesmo estórias inventadas recentemente seguem este padrão - por exemplo, "O pequeno príncipe", "O patinho feio", "O soldadinho de chumbo". Os protagonistas dos contos de fadas são referidos como "uma moça", por exemplo, ou "o irmão mais novo". Se aparecem nomes, fica bem claro que não são nomes próprios, mas nomes gerais ou descritivos. Sabemos que "Porque ela sempre parecia acinzentada e suja, chamavam-na de Borralheira", ou: "Um capuzinho vermelho lhe caía tão bem que ela era sempre chamada de 'Chapeuzinho Vermelho'." Mesmo quando o herói recebe um nome, como nas estórias de João, ou em "João e Maria", o uso de nomes bem comuns os torna genéricos, valendo para qualquer menino ou menina.
Isto é frisado ainda mais pelo fato de que nas estórias de fadas mais ninguém tem nome; os pais das figuras principais permanecem anônimos. São "madrasta", embora possam referidos como "pai", "mãe", ser descritos como "um pobre pescador", ou "um pobre lenhador". Se são "um rei" e "uma rainha", são disfarces leves para pai e mãe, assim como o são "príncipe" e "princesa" para menino e menina.
As fadas e feiticeiras, gigantes e fadas-madrinhas permanecem da mesma forma sem nome, facilitando assim as projeções e identificações.
Os heróis míticos são obviamente de dimensões sobre-humanas, um aspecto que não ajuda a tornar estórias aceitáveis para a criança. De outra forma a criança seria sobrepujada pela exigência implícita de imitar o herói em sua própria vida. Òs mitos não são úteis na formação da personalidade total, apenas na do superego. A criança sabe que não pode possivelmente pôr em prática a virtude do herói, ou igualar seus feitos; tudo o que pode ser esperado dela é que imite o herói em algum grau; por conseguinte, a criança não é derrotada pela discrepância entre seu ideal e sua própria pequenez.
Os heróis reais da história, todavia, tendo sido gente como nós, impressionam a criança com sua própria insignificância quando comparada com eles. Tentar ser guiada e inspirada por um ideal que nenhum ser humano pode alcançar plenamente pelo menos não traz o sentimento de derrota - mas empenhar-nos em copiar os feitos de grandes pessoas reais parece pouco esperançoso para a criança e cria sentimentos de inferioridade: primeiro, porque sabe-se que uma pessoa não pode fazê-lo, e em segundo lugar, porque se teme que outros o possam.
Os mitos projetam uma personalidade ideal agindo na base das exigências do superego, enquanto os contos de fadas descrevem uma integração do ego que permite uma satisfação apropriada dos desejos do id. Esta diferença responde pelo contraste entre o pessimismo penetrante dos mitos e o otimismo essencial dos contos de fadas.
"OS TRÊS PORQUINHOS"
O PRINCÍPIO DO PRAZER VERSUS O PRINCÍPIO DA REALIDADE
O mito de Hércules enfrenta a escolha entre seguir o princípio do prazer ou o princípio da realidade na vida. De forma semelhante o faz o conto de fadas "Os três porquinhos". 13 Estórias como "Os três porquinhos" são muito apreciadas pe-"as crianças acima de todos os contos "realistas", particularmente se são apresentadas com sentimento pelo contador da estória. As crianças ficam fascinadas quando o bufar do lobo na porta do porquinho é representado para elas. "Os três porquinhos" ensinam à criança pequenina, da forma mais deliciosa e dramática, que não devemos ser preguiçosos e levar as coisas na flauta, porque se o fizermos poderemos perecer. Um planejamento e previsão inteligentes combinados a um trabalho árduo nos fará vitoriosos até mesmo sobre nosso inimigo mais feroz - o lobo! A estória também mostra as vantagens de crescer, dado que o terceiro e mais sábio dos porquinhos é normalmente retratado como o maior e o mais velho.
As casas que os três porquinhos constroem são simbólicas do progresso do homem na história: de uma choça desajeitada para uma casa de madeira, finalmente para uma casa de tijolos. Internamente, as ações dos porquinhos mostram o progresso da personalidade dominada pelo id para a personalidade influenciada pelo superego, mas essencialmente controlada pelo ego.
O menor dos porquinhos constrói sua casa com o menor dos cuidados - de palha; o segundo usa paus; ambos dispõem seus abrigos tão rapidamente e sem esforço quanto podem, de modo a poder brincar o resto do dia. Vivendo de acordo com o princípio do prazer, os porquinhos; mais novos buscam gratificação imediata, sem pensar no futuro e nos perigos da realidade, embora o porquinho do meio mostre algum amadurecimento ao tenta: construir uma casa um pouco mais substancial do que o mais novo. Só o terceiro e mais velho dos porquinhos aprendeu a viver de acordo com o princípio da realidade: ele é capaz de adiar seu desejo de brincar, e de acordo com sua habilidade de prever o que pode acontecer no futuro. É até mesmo capaz de predizer corretamente o comportamento do lobo — o inimigo, ou estrangeiro de dentro, que o tenta seduzir e fazer cair na armadilha; e por conseguinte o terceiro porquinho é capaz de derrotar os poderes mais fortes e mais ferozes que ele. O lobo feroz e destrutivo vale por todos os poderes não sociais, inconscientes e devoradores, contra os quais a gente deve aprender a se proteger, e se pode derrotar através da força do próprio ego.
"Os três porquinhos" impressiona muito mais as crianças do que a fábula paralela mas manifestamente moralista de Esopo, "A cigarra e a formiga". Nesta fábula a cigarra, morrendo de fome no inverno, implora à formiga que lhe dê um pouco da comida que acumulou arduamente durante o verão. A formiga pergunta o que a cigarra esteve fazendo durante o verão. Ao saber que a cigarra cantava e não trabalhava, a formiga rejeita seu pedido dizendo: "Como você pôde cantar todo o verão, pode dançar todo o inverno".
Esse final é típico das fábulas, que são também contos populares transmitidos de geração a geração. "Uma fábula parece ser, no seu esta: genuíno, uma narrativa na qual seres irracionais, e algumas vezes inanima-dos, com a finalidade de dar instrução moral, simulam agir e falar com interesses e paixões humanas" (Samuel Johnson). Muitas vezes santimonial, algumas vezes divertidas, explicitamente uma verdade moral não há deixado à nossa imaginação.
O conto de fadas, em contraste, deixa todas as decisões a nossa encargo, incluindo a opção de querermos ou não chegar a decisões. Cabenos decidir se desejamos fazer qualquer aplicação à nossa vida a partir de um conto de fadas, ou simplesmente apreciar as situações fantásticas de que ele: fala. Nosso prazer é o que nos induz a reagir segundo o tempo que estamos vivendo aos significados ocultos, na medida em que podemse relacionar à nossa experiência de vida e atual estado de desenvolvimento pessoal. Uma comparação de "Os três porquinhos" com "A cigarra e a formiga" acentua a diferença entre um conto de fadas e uma fábula A cigarra, à semelhança dos porquinhos e da própria criança, está inclinada a brincar, com pouca preocupação pelo futuro. Em uma fábula sempre afirma significado oculto, nada é bas as estórias a criança identifica-se com os animais (embora só um pedante hipócrita possa identificar-se com a formiga sórdida, e só uma criança mentalmente doente com o lobo); mas depois de ter-se identificado com a cigarra, não sobra esperança para a criança, de acordo com a fábula. Para a cigarra dominada pelo princípio do prazer, não há o que esperar a não ser a condenação: é uma situação do tipo "ou/ ou", onde tendo feito uma escolha uma vez, estabelecem-se as coisas para sempre.
Mas a identificação com os porquinhos do conto de fadas ensina que há desenvolvimentos – possibilidades de progresso do princípio do prazer para o princípio da realidade, o que, afinal de contas, não é senão uma modificação do primeiro. A estória dos três porquinhos sugere uma transformação na qual muito do prazer é retido, porque agora a satisfação é buscada com verdadeiro respeito pelas exigências da realidade. O terceiro porquinho, esperto e brincalhão, vence o lobo em astúcia várias vezes: primeiro, quando o lobo tenta três vezes atrair o porquinho para fora da segurança do lar apelando para sua voracidade oral, propondo expedições onde os dois conseguiriam uma comida deliciosa, O lobo procura tentar o porquinho com nabos que podem ser roubados, depois com maçãs e finalmente com uma visita a uma feira.
Só depois que estes esforços malogram é que o lobo se move para a matança. Mas ele tem que entrar na casa do porquinho para regá-lo, e uma vez mais o porquinho vence, pois o lobo cai pela chaminé dentro da água fervendo e termina como carne cozida para o porquinho. Uma justiça retribuidora é feita: o lobo que devorou os outros dois porquinhos e desejava devorar o terceiro, termina como carne para o porquinho.
A criança, que através da estória foi convidada a identificar-se com um de seus protagonistas, não só recebe esperança, mas também lhe é dito que através do desenvolvimento de sua inteligência ela pode sair-se vitoriosa mesmo sobre um oponente muito mais forte.
De acordo com o primitivo senso de justiça (e o da criança) só aqueles que fizeram algo realmente mau são destruídos, a fábula parece ensinar que é errado apreciar a vida quando na verdade é bom. como no verão. Ainda pior, a formiga nesta fábula é um animal sórdido, sem nenhuma compaixão pelo sofrimento da cigarra – e é esta figura que se pede à criança que tome como exemplo.
O lobo, ao contrário, é obviamente um animal malvado, porque deseja destruir. A maldade do lobo é alguma coisa que a criancinha reconhece dentro de si: seu desejo de devorar e a consequência: – sua ansiedade de sofrer possivelmente, ela mesma, um tal destino. Assim o lobo é uma externalização, uma projeção da maldade
da criança – e a estória conta como se pode lidar com ela construtivamente.
As várias excursões nas quais o mais velho dos porquinhos consegue comida por bons meios são facilmente negligenciadas, mas são partes significativas da estória porque mostram que há um mundo de diferenças entre comer e devorar. A criança subconscientemente entende-o como a diferença entre o princípio do prazer descontrolado, quando alguém deseja devorar tudo imediatamente, ignorando as consequências, e o princípio da realidade, de acordo com o qual uma pessoa sai inteligentemente buscando comida. O porquinho maduro consegue a tempo trazer as provisões para casa antes que o lobo apareça em cena. Que melhor demonstração do valor de atuar na base do princípio da realidade, e em que isto consiste, do que o fato do porquinho se levantar bem cedinho de manhã para assegurar a comida deliciosa, e, ao fazê-lo, burlar as malvadas intenções do lobo?
Nos contos de fadas é tipicamente a criança mais jovem que, embora de início menosprezada ou escarnecida, torna-se vitoriosa no final. "Os três porquinhos" desvia-se deste padrão, pois é o mais velho dos porquinhos quem é sempre superior aos outros dois. Uma explicação pode ser encontrada no fato de que todos os três porquinhos são "pequenos", e portanto imaturos, como a própria criança. A criança, por sua vez, se identifica com cada um deles e reconhece a progressão de identidade. "Os três porquinhos"é um conto de fadas devido a seu final feliz, e porque o lobo recebe o que merece.
Enquanto o senso de justiça da criança é ofendido pela pobre cigarra tendo que morrer de fome embora não tenha feito nada de errado, seu sentimento de equidade é satisfeito pela punição do lobo. Como os três porquinhos representam estágios no desenvolvimento do homem, o desaparecimento dos primeiros dois porquinhos não é traumático; a criança compreende inconscientemente que temos que nos desprender de formas primárias de existência se quisermos passar para elevadas. Falando com criancinhas sobre "Os três encontramos apenas regozijo pela merecida punição do lobo e a esperta vitória do mais velho dos porquinhos - e não pesar pela sorte dos dois menores. Mesmo uma criancinha parece compreender que todos os três são na realidade um único e mesmo em diferentes estágios - o que é sugerido pelo fato de responderem ao lobo exatamente com as mesmas palavras: "Não, não, não pelos pêlos de minha bar-bar-ba!"
"Os três porquinhos" dirige o pensamento da criança sobre seu próprio desenvolvimento sem nunca dizer o que deveria ser, permitindo à criança extrair suas próprias conclusões. Este processo sozinho provê um verdadeiro amadurecimento, enquanto dizer para a criança o que fazer apenas substitui a servidão de sua própria imaturidade pelo cativeiro da servidão aos ditames dos adultos.
Notas
10. Podemos encontrar uma coleção de artigos que discutem os contos de fadas numa base psicológica profunda que tem o mérito de representar adequadamente as várias escolas de pensamento em Wilhelm Laiblin, Märchenfoschung und Tiefenpsychologie (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1969) Contém também uma bibliografia razoavelmente completa.
11. Há uma discussão não sistemática de contos de fadas partindo de um ponto de vista psicanalítico. Freud publicou doisv artigos breves em 1913 tratando desta questão: "A Ocorrência nos sonhos de Assuntos de Contos de Fadas" e "O Tema dos Três Cofres". "Chapeuzinho Vermelho" dos Irmãos Grimm e "O Lobo e as Sete Criancinhas" têm um papel importante na famosa "História de uma Neurose Infantil" de Freud, conhecida como "O Homem-Lobo". Sigmund Freud, The Standard Edition ofthe Complete Psychological Works (Londres: Hogarth Press, 1953 ff.), volume 12,17. Muitos outros escritos psicanalíticos, por demais numerosos para que os enumeremos, referem-se aos contos de fadas, mas quase sempre só de uma forma superficial, como em '"The Ego and the Mecanism of Defense, de Anna Freud (Nova York: International Universities Press, 1946). Dentre os vários artigos que lidam especificamente com os contos de fadas sob um ponto de vista freudiano, mencionamos os seguintes: Otto Rank, Psychoanalytische Beitrãge zur Mythenfoschung (Vienna: Deuticke, 1919); Alfred Winterstein, "Die Pubertatsriten der Mädchen und ihre Spuren im Marchen", Imago, Vol. 14 (1928). Em acréscimo, alguns contos de fadas são discutidos psicanaliticamente -por exemplo em Steff Bronstein, "A Bela Adormecida", Imago, Vol. 19 (1933); J. F.-Grani Duff, "Branca de Neve", ibid., vol 20 (1934); Lilla Veszy-Wagner, "Chapeuzinho Vermelho na Cama", The Psychoanalytic - Forum, vol. (1966); Beryl Sandford, "Borralheira", ibid., vol. 2 (1967). Erich Fromm, The Forgotten Language (Nova York: Rinahart, 1951), faz algumas referências aos contos de fadas, especialmente a "Chapeuzinho Vermelho".
12. Os contos de fadas são tratados de uma forma muito mais extensa nos escritos de Jung e dos analistas Jungianos. Infelizmente, pouco desta literatura foi traduzida para o Inglês. Uma abordagem típica de psicanalistas jungianos aos contos de fadas é a de Marie Louise on Franz, Interpretation of Fairy Tales (Nova York: Spring Publications, 1970). Provavelmente o melhor exemplo da análise de um conto de fada famoso, partindo do ponto de vista Jungiano é a de Erich Neumann, Amor and Psyche (Nova York: Pantheon, 1956). A discussão mais completa de contos de fadas sob o ponto de vista Jungiano encontra-se nos três volumes de Hedwig von Beit, Symbolik des Märchans e Gegansatz und Erneurung im Märchen (Bern: A. Francke, 1952 e 1956).
13.Uma posição intermediária encontra-se em Julius E. Heuscher, - A Psychiatric Study of Fairy Tales (Springfíeld: Charles Thomas, 1963). 3. Para versões diferentes de "Os Três Porquinhos" veja-se Briggs, op. cit. A discussão deste conto baseia-se nas formas iniciais publicadas, impressas em J. O. Halliwell, Nursery Rhymes and Nursery Tales (Londres, c. 1843). Só em alguns relatos posteriores da estória os três porquinhos sobrevivem, o que tira muito do impacto do conto. Em algumas versões os porquinhos têm nomes, interferindo com a capacidade da criança vê-los como representações dos três estágios de desenvolvimento. Por outro lado, alguns relatos explicitam que a busca de prazer foi o que impediu os menores de construírem casas mais sólidas e por conseguinte mais seguras, já que o menorzinho constrói sua casa de lama porque gosta muito de remexer-se nela, e o segundo usa repolhos para construir sua habitação porque gosta de comê-los.
Texto de Bruno Bettelheim em "A Psicanálise dos Contos de Fadas", (traduzido por Arlene Caetano do original em inglês "The Uses of Enchantment: the Meaning and Importance of Fairy Tales"), Paz e Terra,São Paulo, 2002, excertos do primeiro capítulo. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.