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A BELA DOMITILA E SEU MARIDO FELÍCIO

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Quando d. Pedro assumiu a Regência, Silvestre Pinheiro manifestou o receio de que ele viesse a fazer ministros “alguns dos muitos depravados que o rodeavam e mais de uma vez tinham surpreendido a sua inexperta boa-fé”. Referia-se certamente a pessoas como Gordilho, o barbeiro Plácido e o Chalaça.

O mais célebre valido de d. Pedro foi Francisco Gomes da Silva, que passou à história como “o Chalaça”. Nascido em Lisboa, em 22 de setembro de 1791, o Chalaça era filho de Maria da Conceição Alves, empregada doméstica, e de seu patrão, o visconde de Vila Nova da Rainha. Ele esteve interno no seminário de Santarém até 1807, de onde saiu para acompanhar a família real em sua fuga para o Brasil. No Rio de Janeiro, em 1810, foi feito faxineiro do Palácio de São Cristóvão, sendo expulso de lá em 1816 por ter se envolvido com uma dama do Paço. Estabeleceu-se então com uma barbearia na rua do Piolho (hoje rua da Carioca), onde exercia também as funções de dentista e sangrador. Amancebou-se depois com Maria Pulquéria, a famosa “Maricota Corneta”, dona de uma hospedaria na rua das Violas (hoje Teófilo Otoni). Em 1818 já o vamos encontrar sócio de Sebastião Cauler em um botequim no Arco do Teles, ambiente festivo, marcado pela presença de boêmios, jogadores e cantores populares e que era também freqüentado por d. Pedro. Após a partida do rei, o Chalaça voltou ao serviço do Paço.

Segundo Armitage, o Chalaça “tinha um caráter bulhento, extravagante, insolente e dissipado; mas era franco em suas maneiras, gracioso na conversação, incansável em qualquer serviço a seu cargo e amigo sincero de d. Pedro”. Estava também sempre pronto a servir ao seu amo em todas as circunstâncias, sem escrúpulos, inclusive como pombo-correio das conquistas femininas. Grande gozador, conquistando com esse talento as graças do seu amo, Francisco Gomes bem merecia o apelido que lhe deu d. Pedro: Chalaça.

A tensão do primeiro ano da Regência e do ano seguinte, após o Fico, em que de alguma forma o poder esteve nas mãos de gente como o conde dos Arcos, o general Avilez e José Bonifácio, impediu que aquilo que Silvestre Pinheiro temia se tornasse realidade. Mas depois da dissolução da Assembléia Constituinte, d. Pedro havia finalmente, segundo Armitage, “obtido o gozo da autoridade livre e suprema, pela qual tanto anelara”. Essa aquisição, no entanto, diz o mesmo autor, tirara-lhe todo o estímulo para exercitar seus talentos ou para encobrir as suas imperfeições.

A permanente desconfiança que tinha de homens mais cultos ou educados que ele levou-o, gradativamente, a cercar-se de aduladores, afastando de si os homens probos. Diz Armitage que, depois de 1824, d. Pedro continuou “a freqüentar cordial e familiarmente indivíduos de todas as classes […] sua conversação era imprópria para o fazer respeitar quer pelo lado da moralidade, quer pelo dos talentos”. Do grupo que cercava o imperador fazia parte o alferes Francisco de Castro Canto e Melo, que o acompanhou na viagem a São Paulo. Na véspera de entrar naquela cidade, em 24 de agosto de 1822, d. Pedro visitou a Chácara dos Ingleses, no bairro da Glória, onde moravam os pais de Chico de Castro, numa casa próxima ao Ipiranga. Foi nessa ocasião que encontrou Domitila pela primeira vez.

Em 1822, Domitila de Castro tinha 25 anos incompletos e morava com os pais. Era irmã de Chico de Castro e filha de João de Castro e Melo, coronel reformado que fora nomeado inspetor das repartições de estradas da cidade de São Paulo e que vivia modestamente do soldo, mantendo família numerosa. Possuía umas tantas bestas, uma dúzia de escravos e completava sua renda fazendo transporte de cargas entre o planalto e o litoral. Tinha o apelido de “Quebra-vinténs”, segundo Alberto Rangel por ser capaz de quebrar entre os dedos da mão uma moeda de cobre. O biógrafo de d. Leopoldina, Oberacker, acha porém mais provável que “vinténs”, nesse apelido, era uma gíria da época que significava virgindade.

Casada em 13 de janeiro de 1813 com o alferes Felício Pinto Coelho, Domitila se separara do marido no começo de 1819. “Pasquins impressos babujando de aleives a honra da paulista”, nas palavras de Rangel, haviam sido o motivo que levara o marido a esfaquear a esposa no dia 7 de março daquele ano. Segundo os autos do processo, ele a encontrara “resvalada aos pés de um fauno” na bica de Santa Luzia. O pivô desse crime fora o belo coronel d. Francisco de Assis Lorena, de quem, em janeiro do ano seguinte, o marido ultrajado se queixava ao governo ao pedir a guarda dos três filhos. No processo que moveu contra d. Francisco e Domitila, Felício acusava o “fauno” de lhe ter violado a honra. Ao que tudo indica, depois de expulsa de casa, Domitila continuou o relacionamento com Francisco de Assis Lorena.

Conta Alberto Rangel que durante a temporada em São Paulo d. Pedro e sua escolta encontraram Domitila uma vez no caminho, sendo transportada em sua cadeirinha por dois negros. O príncipe, que já a conhecera na casa dos pais — aonde ela fora pedir proteção no caso de divórcio que lhe movia o marido —, apeou-se, abriu a cortina da cadeirinha e ficou conversando com ela. Logo depois, conta Rangel, viram-no tomar os varais e experimentar o peso reunido do continente e do conteúdo. A dama ensaiava protestar, mas preferiu mostrar-se admirada da força e destreza de tão nobre e galante cavalheiro: “Como é forte Vossa Alteza!”. Toda a guarda de honra apressou-se a ajudar e imitar d. Pedro, que já montado dava guarda à beldade, transportada pelos guapos homens da escolta cavalgando ao seu lado. Os negros, espantados, seguiam a comitiva, e o príncipe dizia que nunca ela tivera negrinhos de tal jaez.

Aquele encontro que mudaria a vida dos dois foi logo um encontro íntimo. Em 29 de agosto de 1822, numa noite chuvosa, cortada por relâmpagos, Domitila era recebida por d. Pedro reservadamente em seus aposentos na rua do Ouvidor, em São Paulo. Durante sete anos a paixão não teve limites; as cartas de d. Pedro para a marquesa dão testemunho da intensidade erótica e também do profundo sentimento que uniu d. Pedro a Domitila. Mas de Domitila, quais eram os sentimentos? Desta não há cartas, ou há muito poucas, apenas aquelas em que ela, já no fim de sua ligação, responde com maus modos e muitos erros de português aos apelos de d. Pedro para que deixe a corte do Rio de Janeiro, pois a nova imperatriz estava para chegar.

O que mais impressiona na trajetória dessa personagem singular é o seu incrível poder de sedução. Sobre sua aparência física, divergem os contemporâneos. Condy Raguet, representante diplomático dos Estados Unidos, diz que ela conseguira fascinar d. Pedro “sem possuir grande beleza que a recomendasse”. Para Carl Seidler, admirador das graças da imperatriz, “a marquesa absolutamente não era bonita, e era de uma corpulência fora do comum”. Outro alemão, Schlichthorst, também diz que “não lhe falta bastante gordura, o que corresponde ao gosto geral”, mas a considera francamente bela e destaca o rosto regular e formoso e a desusada alvura da tez. O conde de Gestas afirma que Domitila tinha “um exterior agradável, que pode passar por beleza num país onde ela é rara”. Segundo o visconde de Barbacena, ela era “mediocremente bonita”. Isabel Burton, que a conheceu já idosa, diz que a marquesa “tinha belos olhos negros, cheios de simpatia e conhecimento do mundo”. Schlichthorst, ao final de um encontro de negócios, comenta que ela “agradeceu o champanhe com aquela condescendente amabilidade que encanta a todos os que dela se aproximam”, o que sugere que talvez o encanto de Domitila estivesse mais na sua simpatia e no seu charme.

A ligação com d. Pedro era já estreita em novembro de 1822, quando ele escrevia para sua “cara Titília”, insistindo para que ela e a família fossem se estabelecer no Rio de Janeiro, que ela não haveria “cá de morrer de fome”, e declarava estar pronto a fazer sacrifícios pelo seu amor. No começo do ano seguinte Domitila já estava na corte e, sob a proteção de d. Pedro, obteve o divórcio, acusando o marido de sevícias e infidelidade. Felício, aliás, deixou correr à revelia o processo, porque em 10 de março de 1824 fora nomeado administrador da feitoria imperial do Periperi e para lá se mudara, “insuficientemente resignado com os emolumentos e mais vantagens do novo cargo”.

Em 23 de maio de 1824, dois dias após a sentença separativa do tribunal eclesiástico, que deu ganho de causa a Domitila, nasceu sua primeira filha com o imperador. Mais tarde, Felício, já divorciado e devidamente empregado por d. Pedro, receberia uns bofetões dos punhos imperiais por causa de uma carta ofensiva à honra da ex-mulher. Mareschal, que tudo sabia e de tudo dava conta em seus relatórios a Metternich, escreveu em 25 de outubro de 1825 sobre o episódio:

Este homem parece estar não pouco disposto a aproveitar-se da boa sorte da mulher […] faz alguns meses, escreveu uma carta a seu cunhado Boaventura, camarista e diretor-geral das fazendas da Coroa, onde se queixava do comportamento desregrado de sua esposa. D. Domitila, a quem ele a mostrou, teve o cuidado de fazer uma cena diante do seu augusto amante; S. A. R. enfureceu-se tanto que partiu na mesma noite durante uma chuva torrencial, acompanhado por um dos seus confidentes, e, chegado a Piripiri, esbofeteou o pobre marido e fê-lo assinar uma declaração pela qual se obrigou, sob sua honra e o castigo de receber uma surra, uma boa sova, a jamais se permitir o menor ato ou a menor observação contra a ilma. e exma. sra. d. Domitila de Castro etc. S. A. R. escarneceu o pobre homem, o que eu sei de seu próprio companheiro de aventura, dizendo-lhe que era insolente ter ainda pretensões, e que sua mulher agora lhe pertencia e que se serviria dela quando e como quisesse, ao que o outro lhe respondeu que ela sempre fora une catin e que disso ele um dia também se convenceria, ficando dela tão farto como ele mesmo.

Parece que os bofetões e a declaração assinada não lhe afetaram os brios. Em 5 de setembro de 1826, Felício escrevia a Domitila rogando-lhe humildemente que ela interviesse junto ao imperador a fim de que ele fosse elevado a sargento-mor do corpo em que servia em Pilar da Serra. Segundo consta na correspondência de d. Pedro para Domitila, procurara até mesmo o imperador pedindo vantagens: “O Felício foi me pedir o ser meu criado, e eu lhe disse que não, quanto antes fosse para o distrito, o que passa a executar logo que tire a patente” (sic).

Texto de Isabel Lustosa em "D. Pedro I", Companhia das Letras, 2007, excertos parte 6 capítulo 3. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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