No convento carmelita de Ávila, alguns sacerdotes conversam com uma freira de gestos suaves mas decididos. A cena parece estranha num meio religioso da Espanha do século XVI: os sacerdotes ouvem e a freira, Teresa de Jesus, fala com bastante desembaraço, fluentemente e pior com erudição.
Os padres se entreolham. Um deles exclama: "É homem!" Espantava-os (e até os irritava) o profundo conhecimento de Teresa de Jesus num campo onde, pensava-se, apenas a privilegiado mente masculina tinha condições de vaguear com desenvoltura: a teologia. Agora, quatro séculos depois, o Papa Paulo VI resolveu conceder a Santa Teresa de Ávila (canonizada em 1622) e a Santa Catarina de Siena o título de doutoras da Igreja, reservado durante toda a história da Igreja Católica Romana somente aos homens.
A decisão de Paulo VI não representa apenas uma homenagem ao valor intelectual das duas santas, mas sendo interpretada também como um passo a mais na luta pela emancipação da mulher na Igreja. As formas radicais desse movimento foram definidas na última reunião do Conselho Pastoral holandês (assembleia de leigos e religiosos): a mulher deve ter os mesmos direitos concedidos ao homem, inclusive o de ser uma mulher-padre - com acesso ao bispado, cardinalato e papado.
A culpa de Eva
Embora tenha demonstrado em quase todos os setores de atividade suas aptidões para enfrentar em igualdade de condições os concorrentes masculinos, a verdade é que, aos olhos da Igreja, ainda não se desfez totalmente a imagem bíblica da mulher "auxiliadora do homem" e permanecem vestígios do trágico deslize de Eva no Paraíso - evidentemente sem o exagero do Papa Tertuliano, a bradar nos primeiros séculos da Igreja: "Não sabeis que sois Eva? Sois a porta do inferno. Fostes vós que profanastes a Árvore da Vida, que arrastastes convosco aquele que o demônio não ousou atacar diretamente. Fostes vós que desfigurastes a imagem de Deus, que é o homem".
Numa pesquisa recente, a francesa Marlene Tuininga, colaboradora da revista "Informations Catholiques Internationales", chega a uma conclusão: ainda hoje a Igreja só reconhece como "plenamente mulheres"dois tipos - "a mãe de família, se possível numerosa, a render glória ao homem. e a virgem consagrada, a precisar de proteção masculina. A atividade da mulher, ou melhor, seu ativismo, é considerado até indispensável, mas em domínios bem delimitados, apropriados à sua 'natureza': junto às crianças (catecismo) e junto aos velhos e homens doentes. Raramente numa profissão que requeira uma relação direta e ativa com Deus (estudos teológicos, por exemplo) ou com os homens".
A mulher-padre
Até que ponto o desejo de emancipação da mulher a leva a querer uma paróquia para dirigir ou os altos cargos da hierarquia na Igreja? Por enquanto, apenas na Holanda e na França (com a Aliança Internacional Joana d'Arc) estão organizados para reivindicar o privilégio. Mas em qualquer parte, anonimas, existem vocações esperando apenas a abertura de uma brecha nas aparentemente indestrutíveis muralhas da tradição.
No Recife, por exemplo, mora Maria do Carmo Maia Amorim, que, quando criança, enquanto suas amiguinhas se agarravam às bonecas, brincava de celebrar missa. Até hoje solteira (está com sessenta anos), vê no celibato "uma missão tão importante quanto a vida conjugal". Comunga todos os dias antes de ir à Assembleia Legislativa, onde é chefe das taquigrafas.
Os sábados e domingos ela os reserva para suas atividades na Confederação das Filhas de Maria. "Tenho um encantamento especial pela Santa Missa e a esperança de um dia poder celebrar uma. Do jeito que as coisas vão evoluindo, acho que a Santa Sé acabará concordando com o sacerdócio feminino." e uma vocação tão forte como a de Piera, uma jovem italiana ouvida numa pesquisa.
A vocação de Piera
"Eu não existo, eu não sou eu, se não puder ser padre." Quando disse isso, a bonita moça de 24 anos usava um minivestido de malha vermelho. Nascida na Sicília, formada em Filosofia, está agora em Roma estudando Teologia, jogando todo o seu futuro na esperança de que o Vaticano venha a aceitá-la um dia como a primeira mulher-padre. Aos treze anos Piera havia pensado em entrar para o convento, mas descobriu que lá as suas exigências de viver na comunidade "não seriam atendidas completamente. Na vida das religiosas não existe o reconhecimento do carisma sacerdotal, da 'chamada' que sinto dentro de mim e que só poderá se realizar quando me for permitido celebrar a Eucaristia".
A visão do pecado
Mas quando moças como Piera começam a desejar o sacerdócio surge a primeira grande barreira, lembrada por velho sacerdote italiano numa entrevista à revista "L'Europeo":"Quem pode me assegurar que nunca, por nenhum motivo, a feminilidade da mulher possa distrair o espírito do homem durante a Eucaristia ou prejudicar-lhe a sinceridade na hora da confissão? "
O senhor poderia me dar essa garantia somente supondo a imagem de uma mulher-sacerdote totalmente assexuada e tolhida de suas características tentadoras, próprias da mulher". Parcial ou não, essa posição é frequente dentro da Igreja e considera a mulher como fonte (embora involuntária) do pecado".
O obstáculo, entretanto, é incomparavelmente menor diante do problema levantado por uma outra tradição: "Cristo não escolheu nenhuma mulher para ser seu apóstolo. Isso está escrito no Evangelho e acabou-se a discussão". O que Frei Antônio, o mais antigo religioso da paróquia de Santo Antônio, em Porto Alegre, resume tão secamente é melhor explicado pelo Cônego Amaury Castanho, diretor do Centro de Informações Ecclesia, em São Paulo: as principais atribuições do sacerdócio (dizer a missa, conceder a absolvição dos pecados) pertencem à tradição divino-apostólica, isto é, foram ordenadas por Jesus Cristo diretamente aos apóstolos e portanto são difíceis de sofrerem modificações. Não é uma tradição criada pela Igreja, como, por exemplo, o celibato. Diante disso, conclui-se ser mais fácil a Igreja permitir o casamento dos padres do que abrir as portas ao sacerdócio feminino.
As sacerdotisas em potencial encontram fortes objeções também entre as próprias mulheres. Em Belo Horizonte, Maria lzabel Adami de Carvalho Potenza, colaboradora católica do jornal "Estado de Minas", onde escreve a coluna "Testemunho Cristão", acha uma "autêntica palhaçada" oferecer uma paróquia à mulher. "A ideia é tão absurda como substituir o pão e o vinho da Eucaristia por uma simples maçã ou goiaba."
Pontos a favor
Ao lado dessas desanimadoras objeções têm surgido ultimamente sinais alentadores de que o Vaticano está pelo menos preocupado em redimir a imagem feminina, aliviando-a do duro jugo imposto logo após a criação e introduzindo-a numa nova situação descrita por São Paulo:"Em Cristo não há mais nem judeu, nem grego, nem livre, nem escravo, nem homem, nem mulher". Nas cerimônias de casamento já não se insiste na exortação às mulheres para que sejam submissas ao marido, mas sim na necessidade de um amor e respeito mútuos. Hoje, durante a missa, uma mulher já pode ir à frente e fazer a leitura da epístola - privilégio reservado até pouco tempo apenas aos homens - sem as restrições existentes até o começo de 1968 (a leitora tinha de ser "uma mulher de certa idade e vestida à rigor").
A necessidade tomou comum a imagem de uma freira distribuindo a comunhão em lugares onde faltam padres. No Brasil, a iniciativa de entregar uma paróquia aos cuidados de freiras partiu, em 1963, de Dom Eugênio de Araújo Sales, cardeal-arcebispo de Salvador, então arcebispo de Natal: no município de Nísia Floresta, Rio Grande do Norte, quatro irmãs da Congregação de Jesus Crucificado deixaram seus conventos para assumir todos os encargos do padre, que passava por lá apenas para confessar ou rezar a missa. A frequência de homens à igreja, ao contrário do que temia a diocese, aumentou, e com ela a colaboração nas atividades de assistência social.
Para levar mais adiante essas conquistas, as defensoras do sacerdócio feminino citam também argumentos numéricos: de 250 milhões de católicas no mundo todo, perto de 35 milhões pertencem a organizações femininas leigas. O número de freiras chega a 1 milhão. E do total de católicos praticantes estima-se que dois terços sejam mulheres. "Até o presente", conclui a filosofa francesa Yvonne Pellé-Douel, "foi a metade do povo de Deus que legislou para a totalidade."
Mas o principal, na opinião de Marlene Tuininga, é a necessidade de desmistificar a mulher: "Fazê-la descer do pedestal de Maria, levantá-la da sua queda no Paraíso, para que contribua em toda a sua medida de ser humano".
Texto sem autoria identificada, publicado na revista "Veja", n.89, 20 de maio de 1970, Editora Abril, São Paulo, excertos pp. 59-62. Digitado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa. A ortografia foi atualizada pelo digitador.