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Christopher Lee interpretando "Drácula" (1958) |
O que hoje conhecemos como "vampiro"é um arquétipo presente em quase todas as culturas do mundo, Da Rússia à África, da Inglaterra à Malásia, as mais diversas mitologias criaram figuras de mortos que acordam para se alimentar dos vivos. Além dos seres sobrenaturais que atacam os humanos, as religiões antigas faiam de divindades que se nutrem do sangue a elas oferecido em ritual, como é o caso da egípcia Sekhmet Podemos encontrar referências a entidades "vampirescas" desde o período dos impérios mesopotâmicos, ha mais de 3.500 anos.
Os sumérios falavam de um espirito sugador de sangue, o Akhkharu. Os babilônicos acreditavam no Ekkimu, que saia da tumba para se alimentar de sangue humano fresco e em demônios femininos chamados Lilu, que atacavam durante a noite, matando mulheres grávidas e bebês. Há quem veja em tais demônios parte das características da hebraica Lilith, primeira mulher de Adão, que se vinga da humanidade criada pelo primeiro homem com sua segunda esposa, Eva.
Textos em sânscrito antigo, língua ritual do hinduísmo apresentam os vetalas, criaturas demoníacas, mas também com capacidade protetora, que habitavam cemitérios e se apoderavam dos corpos dos mortos, usando-os para matar crianças, provocar abortos e enlouquecer os vivos E n*re ou nas obras, os vetalas são citados no Baitalpachisi, livro do século VIII que narra as tentativas do rei Vikramaditya de capturar um desses seres, que repousava pendurado de cabeça para baixo na árvore de um cemitério. Segundo a tradição, os vetalas podem ser afastados por meio da entoação de mantras. Ainda na Índia, temos o Brahmarakshasa, criatura que, representada com a cabeça coroada por intestinos humanos, carregava um crânio como copo para beber sangue.
A palavra 'vampiro'é a ultima das denominações para os seres sugadores de sangue, e os primeiros registros da expressão datam do século XVIII. Não há certeza sobre a origem do termo. Sabe-se, apenas, que deriva de línguas eslavas, em que existe como vampir ou uipir. " provável que essas palavras tenham, derivado de wempti (beber) ou do turco uber (bruxa), dando origem a expressões como upior, upir, uípir, vampir. Nessas tradições linguísticas, os filhos de vampiros são chamados de dhampir, lampirovic ou vampirovíc.
AVE NOTURNA
Antes da aparição do nome "vampiro", o termo que designava as criaturas bebedoras úe sangue no Leste Europeu era o romeno strigoi ou strigo. A expressão tem raizes latinas e vem de strix, uma ave noturna que segundo os romanos se alimentava de sangue e carne humana. A palavra sobrevive em italiano como strega: bruxa.
O strigoi é um morto-vivo que na mitologia romena, tem cabelos vermelhos, olhos azuis e dois corações. Podia tornar-se invisível, rondando seus locais familiares em busca de alimentos que tendiam ser o sangue de seres vivos. Além disso, o strigoi podia transformar-se em animais como corujas, cães, ratos lagartos, lobos e, claro, morcegos. Também na Rússia havia cultos a seres bebedores de sangue. Em pleno século XI, o papa São Gregório VII ainda combatia as cerimônias pagãs nas quais a população local oferecia sacrifícios a essas criaturas.
Foi das lendas do leste europeu que se moldou a figura do vampiro moderno. mas ele não aparece apenas em textos eslavos. No século XII, dois cultos clérigos ing1eses, Walter Map e William de Newburgh, registraram a crença local em mortos que saiam de suas tumbas em busca de alimento. Por causa disso, os dois são vistos como cronistas do vampirismo, embora seus escritos não sejam tão claros quanto ao modo de agir dessas criaturas.
Nas Crônicas, como é chamada sua obra Historia Rerum Anglicarum, Newburgh menciona casos de mortos que voltam a vida (livros 22. 23 e 24) em narrativas muito mais ligadas às crenças religiosas oe bondade e obediência à igreja que propriamente a casos de "vampiros". "É verdade- e sei bem- que, se não fosse por muitos casos ocorridos em nossos dias e pelo confiável testemunho de pessoas responsáveis, não seria possível acreditar em tais fatos, isto é, que os corpos dos mortos pudessem levantar de seus túmulos, revividos por alguma força sobrenatural, andando pelos locais e causando pânico e até mesmo matando os vivos, e que retornando às suas covas, estas estariam abertas para recebê-los"· (Crônicas, livro 24)
O mito moderno do vampiro acabou surgindo de um amálgama de várias crenças. dando origem à figura que conhecemos hoje: o vivo malvado que, inconformado por estar morto, volta à vida. Torna-se imortal, movido pela necessidade de sangue humano para manter-se vivo, e contamina os vivos que suga, transformando-os em vampiros. Tem horror à luz e a crucifixos e morre apenas com uma estaca cravada no coração.
O mito ganhou força no fim do século XIX, quando os vampiros cheegaram à maior das cidades de então: Londres. Em 1885. Emily Laszowska Gerard publicou Superstições da Transilvânia, obra na qual chamava o vampiro de "nosferatu" uma variante do latim "nesuferit" que significa "sem sofrimento". A versão definitiva do bebedor de sangue moderno porém, surgiu em 1897, quando o escritor irlandês Abraham Bram Stoker publicou o romance Drácula, que apresenta o conde Drácula, maléfico e violento vampiro que mora em um castelo da Transilvânia.
O fato de ter realmente existido um nobre, Vlad Tepes, governador da Transilvânia entre 1431 e 1435, que foi apelidado de Drácula (filho do dragão ou filho do demônio) e empalou centenas de inimigos, sugeria que a novela havia se inspirado no conde Vlad. Na realidade, como explica e documenta a estudiosa Elisabeth Miller, em seu livro Drácula & Nonsense. Bram Stoker pretendia chamar seu personagem de Count Wampyr, mas afinal batizou-o com o apelido do sanguinário conde Vlad Tepes, ou Drácula, o empalador. Por mais sanguinário que tenha sido o Drácula real, nada indica que ele bebesse o sangue de quem assassinava.
Foi também no século XIX que os vampiros passaram a ser associados a morcegos. Até então essa conexão não existia. Ela só surgiu com a descoberta de três espécies hematófagas (que se alimentam de sangue) do animal nas Américas do Sul e Central. Ao identificarem o Desmodus rotundus, o Diaemus youngi e o Dipnylla ecaudata, naturalistas europeus os apelidaram de morcegos-vampiros.
No início do século XX, portanto, o vampiro já havia adquirido a forma atual: imortal, alimentado por sangue humano, com força sobre-humana, capaz de transformar em vampiro aqueles de quem se alimenta; voa como um morcego; tem perfeita visão noturna; teme o crucifixo e a luz do dia; dorme em um caixão funerário; e só pode ser morto com uma estaça cravada no coração.
Nessa época também, o personagem adquiriu glamour hollywoodiano, adotando a capa preta e certo charme que muitas vezes o torna irresistível, sobretudo para as mulheres. Ao mesmo tempo, surgiu a figura da insinuante "devoradora de homens" que passou a ser chamada de "vamp". Essa imagem do vampiro sedutor começou a ganhar força a partir da década de 1930,quando foi filmada a primeira versão de Drácula em Hollywood, com Béla Lugosi no papel principal.
A RODA DA VIDA
Apesar de terem assumido diversas formas ao longo da história, as lendas de vampiros têm um significado que atravessa os séculos. Essas narrativas não retratam a apenas o medo da morte e a proteção da vida, representada pelo sangue E as evoluíram da certeza de que, para manter a vida na Terra, é necessário morrer, na eterna roda de nascimentos que substituem as mortes. Na tentativa de impedir tal ciclo e conquistar a vida eterna, ou de obter graças dos deuses, as diferentes culturas ofereceram primeiro o próprio sangue, depois o de animais e, por fim, passaram a ofertar simbolicamente o vinho. A transubstanciação do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo, que se deve comer e beber para garantir a vida eterna no corpo da igreja, é a perfeita alegoria da relação entre morte, vida e renascimento.
Do ponto de vista psicológico e possível relacionar a mitologia dos vampiros ás questões de vida e morte. Dependendo da abordagem. porém, a lenda pode adquirir significados diferentes. Freudianos tendem a relacioná-la ao temor é ao fascínio do sexo. Junguianos, por sua vez, o associam à "sombra" espécie de lado obscuro que todos nós, temos difícil e enfrentar, que pode fazer de nós seres predadores parasitas e antissociais. De certa maneira, essa conotação foi incorporada á linguagem cotidiana, pois é corrente falar-se em vampirismo econômico, vampirismo moral, vampirismo sexual, e assim por diante.
Hoje, o que preocupa é a difusão da crença entre indivíduos que não distinguem lendas e seus significados, da realidade. Atualmente existem diversos grupos e associações de 'vampiros', inclusive com crimes a eles atribuídos. Alguns, fascinados pela questão, chegam a ligar o vampirismo a Caim, baseados na leitura do Livro de Nod, obra lendária que supostamente contém ensinamentos sobre o vampirismo acumulados desde a Antiguidade. Filmes recentes conferem ainda mais encanto ao mito. Tudo isso nos faz ver que a elucidação do significado de nossas mitologias devem ser levado bem mais a sério.
Texto de Marlene Suano publicado no revista "História Viva", maio 2010, ano VII, n. 79, excertos pp. 50-57. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.